Ao refletir sobre a atuação da polícia, o professor e doutor em Sociologia Marcos Rolim faz uma ponderação importante: “Será preciso uma profunda reforma de nosso modelo de polícia e a conquista de um padrão civilizatório para a atividade policial, o que envolve também a garantia dos direitos humanos dos profissionais da segurança”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que não há como sensibilizar policiais em relação aos direitos humanos sem que antes seja tratada a violação pela qual eles passam dentro das próprias corporações. “Ainda hoje, no Brasil, há casos de policiais desrespeitados e humilhados por seus superiores”, ressalta.

O Brasil tem uma das polícias mais violentas do mundo. Rolim diz que esse fenômeno é explicado, em parte, pela ausência de uma cultura democrática e pela sobrevivência de valores que legitimam a violência do Estado. As medidas para contornar este problema não são simples. “Uma grande parte dos profissionais da área da segurança pública no Brasil foi colonizada por um discurso contra os direitos humanos produzido por grupos de extrema direita vinculados historicamente à tortura e às execuções”, destaca.

Os excessos cometidos pela polícia resultam, conforme Rolim, “da ausência de políticas públicas de segurança e da ausência de um controle externo efetivo sobre a atividade policial”. A situação se agrava porque “em todas as polícias do mundo, há uma cultura institucional reproduzida à margem dos códigos legais”. Entre as possíveis medidas para qualificar o serviço, ele defende a exigência de formação superior em Segurança Pública como requisito para os processos de seleção. Rolim observa que hoje ocorre o contrário, pois são recrutadas pessoas sem qualquer formação na área. “Depois, passamos a vida inteira tentando formá-la em um ambiente viciado pelo preconceito e pelo desprezo ao conhecimento”, analisa.

Rolim é categórico ao dizer que mecanismos de fiscalização da atividade policial não funcionam. “Constitucionalmente, o Ministério Público é o órgão encarregado do controle externo da atividade policial. Na prática, esse controle não é feito”. Ao mesmo tempo, reconhece que mudanças são viáveis: “É completamente possível alterar as práticas policiais, ainda que suas convicções e valores permaneçam os mesmos. As experiências de reformas das polícias em todo o mundo o confirmam”.

Marcos Rolim é doutor e mestre em Sociologia (UFRGS), especialista em Segurança Pública (Oxford, UK), jornalista (UFSM), professor do Centro Universitário Metodista (IPA) e membro do Centro Internacional para Promoção dos Direitos Humanos (CIPDH). Foi vereador em Santa Maria (RS) entre 1983 e 1988 e deputado estadual do Rio Grande do Sul de 1990 a 1994. Na Assembleia Legislativa, presidiu a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos durante seis anos. Em 1998, elegeu-se deputado federal. Durante o mandato na Câmara dos Deputados, presidiu a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e foi vice-presidente da Comissão de Constituição e Justiça. Em 1999, recebeu o Prêmio Unesco em Direitos Humanos no Brasil.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Por que, no Brasil, há tanto preconceito às temáticas relacionadas a direitos humanos?

Marcos Rolim - Para se compreender esse resultado, é preciso ter presente a formação histórica e social brasileira. Três elementos me parecem fundamentais: a) o fato de que tivemos origens particularmente violentas associadas ao genocídio dos povos indígenas e a mais de três séculos de escravidão; b) o fato de que o Estado brasileiro surgiu de cima para baixo como uma transposição do Estado português para a colônia, sem protagonismo da sociedade civil. Em certa medida, pode-se inclusive dizer que o Estado brasileiro antecede a sociedade civil; e c) o fato de que carecemos, como nação, de uma cultura democrática e liberal. Nas últimas décadas, além desses componentes históricos, há que se ressaltar também o papel deformador cumprido por grande parte dos chamados meios de comunicação social, que sempre ofereceram palco e audiência para o discurso anti-humanista e proponente da violência.

 

IHU On-Line - A compreensão da importância dos direitos humanos não deveria ser indissociável da formação e da prática de servidores públicos que atuam como policiais? Por que os agentes de segurança têm uma relação de confronto com os direitos humanos?

Marcos Rolim - Sim, deveria. Na verdade, o compromisso com os direitos humanos tem tudo a ver com a garantia da segurança pública. Segurança é um dos direitos humanos fundamentais e, quando enfrentamos uma crise como a que temos vivido no Brasil na área, são os direitos humanos que são diretamente atingidos. Todas as vítimas de crimes e da violência disseminada foram violadas em seus direitos fundamentais. Uma grande parte dos profissionais da área da segurança pública no Brasil foi colonizada por um discurso contra os direitos humanos produzido por grupos de extrema direita vinculados historicamente à tortura e às execuções. Natural que esses grupos não tenham qualquer apreço pelos direitos humanos. É o que eles têm em comum com os demais bandidos. O que é uma lástima é que um discurso tão raso e tão manipulatório seja repetido também por profissionais honestos e comprometidos com a lei. Aqui será preciso uma profunda reforma de nosso modelo de polícia e a conquista de um padrão civilizatório para a atividade policial, o que envolve também a garantia dos direitos humanos dos profissionais da segurança.

 

IHU On-Line - Autoritarismo e independência são traços definidores das polícias Militar e Civil no Brasil?

Marcos Rolim - Penso que essas características sejam resultantes da ausência de políticas públicas de segurança e da ausência de um controle externo efetivo sobre a atividade policial. Polícias tendem a ser autoritárias e a atuar com independência indevida sempre que não possuem um quadro claro de referências normativas e sempre que o ambiente político não lhes exigir os procedimentos básicos de accountability . É o que ocorre no Brasil, onde o grau de regulação da atividade policial é baixíssimo (não temos sequer um boletim de ocorrências padronizado no país) e onde as polícias atuam, a rigor, sem prestar contas do que fazem à população. No caso brasileiro, a ausência de uma cultura democrática e a sobrevivência de valores que legitimam a violência do Estado se somam para que tenhamos algumas das polícias mais violentas do mundo.

 

IHU On-Line - No Rio Grande do Sul, a Polícia Militar também é conhecida por Brigada Militar. A corporação gaúcha cumpre, por lei, o mesmo papel das de outros Estados. Na prática, há alguma peculiaridade que a diferencie das demais?

Marcos Rolim - Penso que existam algumas peculiaridades significativas. É possível, por exemplo, que a Brigada Militar possua uma legitimação social maior do que a média das PMs nos demais estados. Essa hipótese precisaria ser demonstrada por estudos comparativos, mas não seria surpreendente se fosse confirmada. A Brigada Militar possui, também, historicamente, baixos níveis de letalidade quando comparada às PMs de estados como São Paulo e Rio de Janeiro. O fato é que a corporação padece dos mesmos problemas das demais e tem, ao que tudo indica, piorado nos últimos anos. Atualmente, a sensação que se tem é que há mais violência e mais corrupção na Brigada do que em épocas passadas.

 

IHU On-Line - No governo Olívio Dutra, quando o desembargador aposentado José Paulo Bisol  foi secretário da Justiça e da Segurança (1999-2002), os policiais receberam aulas de direitos humanos. O senhor acompanhou esta experiência? Tem memória de como foi?

Marcos Rolim - Na época, eu exercia o mandato de deputado federal e só pude acompanhar aquela experiência a distância. Pelo que percebi, foi importante ter introduzido determinadas iniciativas como, por exemplo, noções sobre homofobia e direitos das travestis na formação de policiais. O problema é que esse tipo de iniciativa não produz efeitos significativos e pode mesmo aumentar a rejeição da subcultura policial ao garantismo . Para sensibilizar os policiais a respeito dos direitos humanos, é preciso, primeiro, tratar da realidade de violação que eles, policiais, experimentam dentro de suas próprias corporações. Ainda hoje, no Brasil, há casos de policiais desrespeitados e humilhados por seus superiores. Como regra, nossos policiais sentem-se desprotegidos e temem ser abandonados por suas corporações no momento em que mais precisarem delas. Ao mesmo tempo, é preciso ter claro que são as regras que operam nas instituições que devem promover uma cultura de direitos humanos. Um policial que valorize os direitos humanos e que se comporte de forma coerente com uma posição garantista não é valorizado pelas regras atuais de nossas polícias. Se o ambiente profissional valoriza a prisão, não a prevenção, se um policial que executa um suspeito rendido recebe uma medalha, não há palestra sobre direitos humanos que resolva. 

 

IHU On-Line - E atualmente, de que maneira as questões relacionadas a direitos humanos são discutidas no processo formativo dos policiais e durante o exercício profissional?

Marcos Rolim - Todas as polícias brasileiras possuem matérias relativas a direitos humanos em suas academias. Na prática, isso não produz efeito algum pelos motivos mencionados na resposta anterior. O clima de radicalização política no Brasil e a emergência de um discurso fascista na cena pública têm tornado o problema ainda mais grave. Os policiais percebem que há, na opinião pública, uma grande legitimação à violência policial (desde que contra suspeitos pobres). Se perceberem também que seus superiores e seus governantes não estão dispostos a punir os policiais que abusam de sua autoridade e que violam a lei, teremos uma “tempestade perfeita”, e os indicadores de violência policial irão subir.

 

IHU On-Line - O governador do Rio Grande do Sul tem controle sobre a Brigada Militar?

Marcos Rolim - Em tese, sim. Na prática, não se sabe, porque o governo não exerce sobre a atuação das polícias — seja civil, seja militar —  qualquer governo. Essa tem sido, na prática, a conduta de todos os governos que delegam às polícias o governo na área da segurança pública como forma de evitar desgastes com as corporações.

 

IHU On-Line - E o comandante da Brigada Militar e o chefe da Polícia Civil conseguem incidir na maneira como seus subordinados agem na ponta, no dia a dia?

Marcos Rolim - O comandante da Brigada possui uma capacidade maior de incidência sobre seus subalternos por conta da tradição de hierarquia e disciplina da corporação. Um bom comandante é, nesse sentido, algo muito importante. A Polícia Civil é menos permeável à ação do chefe de Polícia e tende a se organizar em “feudos” em torno das delegacias e de grupos de influência formados por delegados. A Polícia Civil do Rio Grande do Sul tem, entretanto, se modernizado bem mais do que a Brigada, e há uma nova geração de policiais com uma visão mais aberta e crítica, o que é uma importante novidade no estado.

 

IHU On-Line - A ideia é não cair em teorias conspiratórias, mas faz sentido pensar que os policiais, tanto civis quanto militares, obedecem a códigos e ordens que necessariamente não sejam oficiais e previstos na legislação?

Marcos Rolim - Em todas as polícias do mundo, há uma cultura institucional reproduzida à margem dos códigos legais. Na literatura, se usa a expressão “cultura da cantina” (canteen culture) para designar esses valores que sobrevivem fora dos regulamentos. Essa subcultura é racista, misógina e homofóbica e projeta a atividade policial nos marcos de “valores guerreiros”. O problema efetivo é quando as instituições passam a funcionar reproduzindo essa subcultura. No caso brasileiro, os mecanismos de controle social não operam sobre as polícias, e a transparência das instituições é praticamente nula, o que reforça a subcultura.

 

IHU On-Line - Falta autocrítica aos sucessivos comandos das polícias? E para os integrantes das corporações?

Marcos Rolim - Há muitas carências na formação dos nossos policiais. Quando passamos a conhecê-las mais propriamente, nos damos conta também das virtudes que muitos policiais possuem. Uma qualificação mais ampla só poderá ser assegurada aos policiais quando a formação superior em Segurança Pública for a exigência básica para os processos de seleção. Em uma situação ideal, todos aqueles que desejassem seguir uma carreira na área (como policiais, como agentes penitenciários, como bombeiros, como guardas municipais) deveriam ser bacharéis em Segurança Pública. As academias policiais apenas especializariam os já formados. Hoje, fazemos o inverso: recrutamos mão de obra sem qualquer formação em segurança pública e, depois, passamos a vida inteira tentando formá-la em um ambiente viciado pelo preconceito e pelo desprezo ao conhecimento.

 

IHU On-Line - A corrupção dentro da Polícia Civil é algo sem controle? Por quê?

Marcos Rolim - Desconheço estudos que demonstrem isso ou que identifiquem diferenças de nível de corrupção entre polícias civis e polícias militares. Aparentemente, há situações mais e menos graves de corrupção em cada estado da federação. Muitos policiais, em todo o Brasil, recebem propina de traficantes; há máfias com a participação de policiais e ex–policiais, como as milícias no Rio, e há grupos de extermínio formados por policiais. Tomando essas três situações, poderíamos falar em três níveis de corrupção, em escala crescente. Alguns estados estão no primeiro nível, outros chegaram ao terceiro. O que assusta é que parece haver uma progressão natural de um nível para o outro, o que significa afirmar que, se não tivermos uma reforma do modelo de polícia no Brasil, todos os estados tendem a chegar ao pior nível.

 

IHU On-Line - A tortura adotada como instrumento para obter informações e execuções sumárias disfarçadas de morte em combate são expressões graves dos excessos cometidos pelos policiais, mas a lista de arbitrariedades vai além. Quais os mecanismos de controle da atividade policial? Eles funcionam?

Marcos Rolim - Não funcionam. Constitucionalmente, o Ministério Público é o órgão encarregado do controle externo da atividade policial. Na prática, esse controle não é feito.

 

IHU On-Line - Em registros de operações policiais, os homicídios cometidos por agentes são registrados como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, o que sugere legalidade para o ato e a possibilidade de absolvição do autor. É difícil condenar um policial que comete excesso?

Marcos Rolim - É difícil obter a condenação nas circunstâncias em que a vítima é suspeita da prática de um crime. Nesses casos, o Tribunal do Júri tende à absolvição. Antigamente, policiais militares eram julgados pela Justiça Militar no caso de homicídios. Depois que a competência passou ao Tribunal do Júri, o percentual de condenações caiu. Penso que esse dado revela a complexidade do tema.

 

IHU On-Line - A insatisfação da sociedade com a violência e o sentimento de que algo deve ser feito funcionam como uma espécie de salvo-conduto para os policiais agirem livremente?

Marcos Rolim - Sim. Há uma enorme margem de legitimação social para as práticas abusivas e para a violência policial sempre que os suspeitos são pobres.  Muitas vezes, a população é mais violenta que os policiais.

 

IHU On-Line - Há possibilidade de os policiais da atualidade operarem em bases menos violentas e comprometidas com o respeito à vida, ou isso se trata de um projeto para as novas gerações de agentes?

Marcos Rolim - É completamente possível alterar as práticas policiais, ainda que suas convicções e valores permaneçam os mesmos. As experiências de reformas das polícias em todo o mundo o confirmam.

 

IHU On-Line - A desmilitarização da polícia é apontada como algo positivo para combater as arbitrariedades e os excessos cometidos pelos agentes de segurança do Estado, mas as perspectivas de que isso ocorra são mínimas, pelo menos atualmente. Sendo assim, o que pode ser feito para reverter o histórico de violência das corporações, mesmo que mantida a natureza militar?

Marcos Rolim - Penso que seja uma ilusão imaginar que a violência policial seja explicada pelo caráter militar da polícia. As polícias civis também possuem histórico de violência, e o tema é tão desafiador nelas quanto nas Polícias Militares. O tema da desmilitarização é importante para que possamos ter democracia nas polícias, para que os abusos contra os próprios policiais sejam reduzidos dentro das corporações e para que tenhamos uma polícia de caráter comunitário, próxima das pessoas e respeitada por elas, não temida. Um dos nossos problemas é que o modelo de polícia que temos foi constitucionalizado. Por isso, sua mudança estrutural depende de reforma constitucional, o que é sempre muito complicado. No quadro atual do Congresso Nacional, qualquer reforma na área criará uma realidade pior por conta da hegemonia de extrema direita que se formou em torno desse tema.  

O que se pode fazer é construir uma política de segurança efetiva nos estados e nos municípios, permitindo que os policiais percebam o quanto é possível avançar na luta contra o crime e a violência a partir dos recursos de Inteligência e da prevenção. Ao lado disso, devemos criar mecanismos de aproximação dos policiais com as comunidades, o que irá viabilizar formas de controle social. Os gestores, por seu turno, devem produzir uma mensagem clara para os policiais de que atos abusivos e violentos não serão tolerados. A mídia deveria tratar cada caso de violência policial como um escândalo, e todos devemos pressionar para que atos do tipo não permaneçam impunes. Há um espaço legislativo para aprovar leis estaduais que regulem um policiamento democrático, podemos criar prêmios para boas práticas policiais e valorizar os profissionais que atuam corretamente etc. ■

Adilson Paes de Souza destaca que, para se ter uma corporação eficiente, antes de tudo é preciso transparência

O tenente-coronel Adilson Paes de Souza trabalhou por 30 anos na Polícia Militar de São Paulo. Portanto, conhece intimamente o funcionamento da corporação. Na metade da sua carreira, passou a olhá-la criticamente, quando não ficava mais satisfeito com as explicações que as autoridades forneciam sobre determinadas ocorrências policiais. Para aprofundar seu questionamento, em sua pesquisa de mestrado, tratou do desempenho da polícia em sua função social de proteger os cidadãos. No seu entendimento, a polícia falha neste papel, e as pessoas não confiam nela. “Todos se sentem mais inseguros. As pessoas evitam comunicar a ocorrência de delitos à polícia (subnotificação), pois sabem que, além de levar um tempo excessivo para efetuar o registro, além de serem tratadas de maneira não adequada, de nada adiantará. As taxas de elucidação de delitos são pífias. No caráter preventivo ocorre o mesmo, nunca há viatura disponível. A tarefa preventiva praticamente inexiste”, descreve em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ao pensar um modelo ideal para a polícia no Brasil, Souza destaca que, antes de mais nada, é preciso transparência. O caminho para isso seria a desmilitarização. “Esse é um conceito amplo, muito difundido e muitas vezes mal-empregado”, avalia. Ele defende a revogação da legislação que regula as forças policiais, elaborada em 1969, durante o período ditatorial. “Assim teremos uma polícia de caráter civil (não quer dizer sem uniforme, sem o qual não há como realizar o policiamento ostensivo).” O policial destaca a importância de haver um efetivo controle da sociedade sobre a polícia, situação que não ocorre, pois não há transparência, nem prestação de contas.

Souza aponta que atividade policial é estressante por natureza, por isso que, além de uma boa formação com efetiva participação da sociedade, “é necessário haver um sistema de amparo à saúde psíquica deste policial”. Ao mesmo tempo, para barrar os crimes cometidos por PMs, reforça a importância de haver limites à atuação policial e uma efetiva punição daqueles que transgredirem as normas e cometerem excessos, eliminando a impunidade.

Adilson Paes de Souza é tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo. Possui mestrado em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É bacharel em Direito pelo Centro Universitário Faculdades Metropolitanas Unidas. Integra a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Autor de O Guardião da Cidade - Reflexões Sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Editora Escrituras, 2013, 256 páginas), fruto de sua dissertação de mestrado intitulada A Educação em Direitos Humanos na Polícia Militar.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual o papel da Polícia Militar?

Adilson Paes de Souza - Na Constituição Federal (artigo 144, § 5º), compete a ela o policiamento ostensivo e a manutenção da ordem pública. Esse último conceito é bem amplo e dá margem a uma ampla gama de interpretações, desde a atuação nas manifestações públicas, nos eventos realizados nos logradouros públicos, nos eventos esportivos etc. Tem-se utilizado desse argumento para permitir ou não a realização de atos públicos e, até mesmo, determinar o percurso que deve ser utilizado.

 

IHU On-Line - No que consiste o caráter militar da Polícia Militar?

Adilson Paes de Souza - Consiste em dar uma atuação mais militarizada da Polícia Militar junto à população. Em 1969, foi editado o Decreto-Lei Nº 667, baseado expressamente no AI-5  e que estabelecia uma nova estrutura às polícias militares e aos corpos de bombeiros militares. Com esse decreto, eles passaram a ter estrutura e designação de postos e graduações semelhantes ao Exército. Na nossa Constituição, as polícias militares são consideradas forças auxiliares e reserva do Exército. Os policiais militares são considerados militares estaduais.

Na verdade, o Decreto-Lei 667/69 foi editado sob a influência da Doutrina de Segurança Nacional , que embasou não somente o golpe, mas toda a ditadura militar. Deu-se uma nova forma de atuação às polícias, para que fossem empregadas, em conjunto com as Forças Armadas, no combate aos subversivos, tidos como inimigos internos da nação. Nesse contexto, boa parcela da população era vista como suspeita e sofria os impactos da atuação das forças de segurança. Esse quadro permanece até hoje. O referido decreto está em plena vigência até os dias atuais, tendo sobrevivido ao dito processo de redemocratização do país.

 

IHU On-Line - As polícias militares e os corpos de bombeiros são coordenados pela Inspetoria Geral das Polícias Militares – IGPM, órgão criado em 1967 pelo Exército Brasileiro. Para além de um organograma, na prática, o que isso impacta no funcionamento dos policiais e dos bombeiros?

Adilson Paes de Souza - No controle das Forças Armadas sobre o efetivo e a aquisição de bens pelas polícias militares. Para adquirir desde viaturas, até munição, precisa de autorização do Exército. Para aumentar o efetivo, idem. Periodicamente são enviados relatórios de controle à IGPM, bem como há visitas de inspeção em determinadas unidades da polícia.

 

IHU On-Line - O que significa desmilitarizar a polícia?

Adilson Paes de Souza - Esse é um conceito amplo, muito difundido e muitas vezes mal-empregado. Para mim, significa banir da vida da nossa sociedade a Doutrina de Segurança Nacional, começando pela revogação do Decreto-Lei 667/69, já mencionado. Assim teremos uma polícia de caráter civil (não quer dizer sem uniforme, sem o qual não há como realizar o policiamento ostensivo), diferentemente do estabelecido pelo referido decreto. Com efetivo controle da sociedade, o que não ocorre hoje, pois não há transparência e prestação de contas. Que trate os cidadãos como tais, e não como inimigos da sociedade. Enfim, uma polícia que tolere e aceite o contraditório.

 

IHU On-Line - A ideia é não cair em teorias conspiratórias, mas faz sentido pensar que os policiais, tanto civis quanto militares, obedecem a códigos e ordens que necessariamente não sejam oficiais e previstos na legislação?

Adilson Paes de Souza - Sim, o espírito de corpo cria regras próprias. Nos Estados Unidos, eles chamam de blue curtain. Isso é típico de instituições fechadas, principalmente naquelas calcadas na estética militar e que se veem em uma guerra constante.

 

IHU On-Line - Falta autocrítica aos sucessivos comandos das polícias? E para os integrantes das corporações?

Adilson Paes de Souza - Não tenho dúvidas. Nunca se admite o erro. Sempre há menção às falhas individuais e não às falhas do sistema. Sempre dizem que a formação é perfeita, contudo não permitem a participação da sociedade na elaboração e na avaliação do sistema de formação dos policiais. Justamente a sociedade, para utilizar uma linguagem do mercado, que é a principal cliente da polícia.

 

IHU On-Line - O senhor é um oficial da Polícia Militar que critica a violência da corporação, o que lhe transforma em uma voz dissonante. Isso acarretou problemas ou animosidades com seus colegas?

Adilson Paes de Souza - Oficialmente não, mas chegaram ao meu conhecimento críticas bem negativas a meu respeito. Mas também chegaram muitas críticas bem positivas, não só aqui de São Paulo, mas de outros estados da federação.

 

IHU On-Line - Quando começaram suas críticas à corporação para a qual dedicou 30 anos de serviço?

Adilson Paes de Souza - Mais ou menos na metade da minha carreira, quando as explicações que as autoridades forneciam, sobre determinadas ocorrências policiais, não mais me satisfaziam.

 

IHU On-Line - Em seu livro O Guardião da Cidade- Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Escrituras, 2013), baseado em sua dissertação defendida na Universidade de São Paulo, o senhor trata do desempenho da polícia em sua função social de proteger os cidadãos. Qual a sua análise sobre o trabalho da corporação?

Adilson Paes de Souza - Ela falha nesse papel. As pessoas não confiam na polícia (ver dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública ). Todos se sentem mais inseguros. As pessoas evitam comunicar a ocorrência de delitos à polícia (subnotificação), pois sabem que, além de levar um tempo excessivo pata efetuar o registro, além de serem tratadas de maneira não adequada, de nada adiantará. As taxas de elucidação de delitos são pífias. No caráter preventivo ocorre o mesmo, nunca há viatura disponível. A tarefa preventiva praticamente inexiste.

 

IHU On-Line - No seu livro, o senhor também aponta caminhos para construir uma polícia mais humana. Que caminhos são estes? Que desenho pode ser considerado ideal para uma instituição destinada a atuar na segurança pública no Brasil?

Adilson Paes de Souza - Antes de mais nada, é preciso transparência. O que não há. No estado de São Paulo, um decreto do governo declarou que os currículos das escolas de formação da polícia são documentos secretos. Não há prestação de contas sobre investigações instauradas contra policiais militares. Há um distanciamento da sociedade. Na Irlanda do Norte, reformaram a polícia e criaram uma Comissão Independente de Polícia, composta por membros da sociedade sem vínculos com o governo. Pode ser uma boa ideia.

 

IHU On-Line - A hierarquia é um dos pilares do Exército e da Polícia Militar. Ela deve ser mantida com a mesma primazia, no caso de ocorrer a desmilitarização das corporações policiais no Brasil?

Adilson Paes de Souza - Não há instituição sem hierarquia. Contudo, ela não pode ser, por si só, uma fonte de arbítrio e de abusos. Daí a importância de um efetivo controle externo.

 

IHU On-Line - Durante a ditadura, a tortura foi usada como uma política de Estado aplicada pelo Exército e pelos órgãos de repressão. A rigor, nunca houve uma condenação da tortura no país, mesmo ela sendo considerada ilegal. Isso não favorece a continuidade dessa prática?

Adilson Paes de Souza - Sim. Transmite a mensagem de estímulo e de acobertamento dessas práticas, de que há um sistema que assegura impunidade.

 

IHU On-Line - Pode-se afirmar que as manifestações ocorridas a partir de junho de 2013 inauguraram um novo tempo na Polícia Militar, no que tange às táticas empregadas e ao grau de violência?

Adilson Paes de Souza - Creio que não. Apenas as tornou mais visíveis. Escancarou o que já existia.

 

IHU On-Line - Qual o limite de um policial em serviço?

Adilson Paes de Souza - A lei. Fora disso, ele é igual ou pior que um infrator da lei. Espera-se muito dele, tanto é que ele é um dos poucos agentes públicos que possui autorização legal para portar arma de fogo e para interferir na vida das pessoas.

 

IHU On-Line - Que preparo o policial deve ter para cumprir os limites aludidos na questão anterior, principalmente em situações de grande tensão e violência inerentes à atividade?

Adilson Paes de Souza - Além de uma boa formação, e isso só será possível com a efetiva participação da sociedade, é necessário haver um sistema de amparo à saúde psíquica deste policial. Não somente após o seu envolvimento em ocorrências graves, mas também de forma periódica e preventiva, o que, de fato, não existe. Penso em algo que atue na detecção do problema antes que ele ecloda. A atividade policial é estressante por natureza.

 

IHU On-Line - Quando um policial é morto em serviço, seus colegas reagem com rapidez em busca de vingança, e o autor do crime inicial acaba, quase sempre, assassinado. Na população, percebe-se uma sensação de vitória, como se fosse uma conta de “menos um”. Como deter a sanha vingativa dos policiais, de maneira que os ritos legais sejam cumpridos?

Adilson Paes de Souza - Através da sedimentação, na formação, dos limites da atuação policial e através da efetiva punição daqueles que transgredirem as normas e cometerem excessos. Ou seja, com o fim da impunidade.

 

IHU On-Line - De que maneira as questões relacionadas a direitos humanos são discutidas no processo formativo dos policiais e durante o exercício profissional?

Adilson Paes de Souza - De maneira meramente formal, protocolar. Os currículos reservam baixa carga horária, e os conteúdos das disciplinas são inadequados.

 

IHU On-Line - Em registros de operações policiais, os homicídios cometidos por agentes são registrados como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, o que sugere legalidade para o ato e a possibilidade de absolvição do autor. É difícil condenar um policial que comete excesso?

Adilson Paes de Souza - Esses eufemismos procuram retirar a carga negativa da atuação do policial. Ele sempre será vítima. Creio que, nas condições atuais, é bem difícil condenar. As apurações, quando há, são mal feitas, o que acarretará em grande chance de absolvição no Tribunal do Júri.

 

IHU On-Line - Em setembro, o Judiciário paulista anulou a sentença condenatória de 74 policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 presos da Casa de Detenção de São Paulo foram mortos. A decisão passa que recado para a sociedade e para os integrantes das corporações?

Adilson Paes de Souza - No último relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há uma pesquisa em que 57% dos entrevistados eram a favor da tese “bandido bom é bandido morto”. É essa a mensagem que essa sentença transmitiu à sociedade em geral.

 

IHU On-Line - A desmilitarização da polícia é apontada como algo positivo para combater as arbitrariedades e os excessos cometidos pelos agentes de segurança do Estado, mas as perspectivas de que isso ocorra são mínimas, pelo menos atualmente. Sendo assim, o que pode ser feito para reverter o histórico de violência das corporações, mesmo que mantida a natureza militar?

Adilson Paes de Souza - A aplicação da lei para todos, de maneira indistinta. Como? Que o Ministério Público efetivamente cumpra a missão constitucional de exercer o controle externo da atividade policial (artigo 129, inciso VII), de fato. Que os Programas Estaduais de Direitos Humanos dos estados sejam efetivamente implantados. O do Estado de São Paulo existe desde 1997 e até hoje não foi implantado.

 

IHU On-Line - Uma série de projetos de Emenda à Constituição - PEC tramitaram ou estão tramitando no Congresso Nacional tratando da desmilitarização da polícia e temas correlatos. Qual a sua análise sobre essas PECs? Elas permitem avanço?

Adilson Paes de Souza - A única que contempla uma reforma efetiva e necessária do sistema de segurança pública do Brasil é a PEC 51 . Não conheço todas as demais, mas, das que tomei conhecimento, não produzirão, ao meu ver, mudanças significativas necessárias. ■

Para Alberto Kopittke, infelizmente o Ministério Público não assumiu sua competência como órgão de controle externo das polícias, definido pela Constituição, e o país ficou praticamente sem nenhum tipo de controle externo sobre o uso da força

Alberto Kopittke já trabalhou na área de segurança em nível federal, quando foi diretor do Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça. Atualmente, é secretário de Segurança Pública do município de Canoas. Esta trajetória de gestão, mais as pesquisas que desenvolve em âmbito acadêmico, lhe credenciam a discutir as temáticas a partir de um foco relativamente novo, que é o papel dos municípios. “As secretarias municipais de Segurança Pública começaram a surgir há 20 anos, quando teve início no país uma nova concepção de que segurança é compreendida como algo muito mais amplo do que apenas as ações policiais e do sistema prisional”, afirma em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Para reduzir a violência, Kopittke defende que “é preciso implementar um conjunto amplo de ações, especialmente nos territórios onde a violência mais cresce. Nessa nova visão, prevenção e repressão devem caminhar juntas, de forma planejada e integrada em cada território”. As guardas municipais têm espaço em um novo modelo, “como implementadoras de toda a política de prevenção à violência, utilizando o que se aprendeu no mundo sobre policiamento comunitário e trabalho junto aos jovens, enquanto as PMs seguem fazendo o trabalho mais direto de repressão à criminalidade”.

Kopittke avalia que o “grande sucesso da ditadura foi fazer uma transição negociada em que não houve efetivamente nenhuma ruptura com o imaginário militarista, e as pessoas continuaram acreditando que segurança pública é colocar tropa nas ruas e matar inimigos”. Mas também critica os movimentos sociais, que teriam errado ao não aprofundarem o debate sobre segurança. Isso abriu espaço para forças autoritárias manterem forte hegemonia e agora voltaram a ter força política.

Uma das saídas que aponta para o problema da violência policial é democratizar as corporações, de maneira que tenham “controle externo sobre o uso da força, transparência, formação e modelo de governança”. No entanto, aponta que “o controle externo sobre o uso da força continua sendo um tabu no Brasil”.

Alberto Kopittke é advogado, doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Foi diretor do Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública - Ministério da Justiça e diretor executivo do Consórcio Metropolitano Granpal. Atualmente, é secretário de Segurança Pública no município de Canoas.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Não é comum haver secretarias de segurança em municípios. Qual a vantagem de criá-las neste âmbito?

Alberto Kopittke - As secretarias municipais de Segurança Pública começaram a surgir há 20 anos, quando teve início no país uma nova concepção de que segurança é compreendida como algo muito mais amplo do que apenas as ações policiais e do sistema prisional. Isso se fortaleceu a partir do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania, o Pronasci , na gestão do ministro Tarso Genro , no segundo governo Lula , e que infelizmente durou apenas entre 2007 e 2010. Essa visão vem de experiências exitosas implementadas em várias cidades dos Estados Unidos e em outras como Bogotá e Medelín. Essas experiências mostraram que, para reduzir a violência, é preciso implementar um conjunto amplo de ações, especialmente nos territórios onde a violência mais cresce. Nessa nova visão, prevenção e repressão devem caminhar juntas, de forma planejada e integrada em cada território. 

Esse conceito fica muito claro quando vemos diversas vezes que a polícia faz grandes operações em determinadas comunidades, mas, como não é implementado nenhum outro serviço público especialmente voltado para os jovens dessas comunidades, a violência se mantém estabelecida ali, e a polícia tem que refazer o trabalho muitas e muitas vezes, sem qualquer resultado concreto. É preciso articular desde iluminação, pavimentação, educação, saúde, assistência social e saúde mental. Nessa perspectiva, a secretaria municipal de Segurança Pública tem um grande papel de integração entre as outras pastas e com as polícias, especialmente a Militar e a Civil, para que as estratégias sejam pensadas em conjunto, e os resultados se potencializem. 

 

IHU On-Line - A vida das pessoas ocorre nos municípios. Unidades federativas e União são instâncias muito abstratas para o cidadão. Os municípios não deveriam ter mais responsabilidades no que concerne à segurança pública?

Alberto Kopittke - A Colômbia criou um novo modelo bastante interessante e que deu resultados importantes. Não houve nenhuma modificação institucional na Polícia Nacional, que continuou com o mesmo modelo nacional de comando, mas em cada município ela obrigatoriamente deve estar sob a orientação da política de segurança definida pelo prefeito. Isso possibilitou as grandes estratégias de prevenção à violência em Bogotá e Medelín, onde os prefeitos conseguiram fazer um grande planejamento casando ações de repressão com ações de reforma urbana e políticas de prevenção à violência. Assim, os índices de violência caíram mais de 80%. 

Infelizmente o governo Dilma , em vez de realizar os ajustes do Pronasci e seguir consolidando uma nova visão de segurança, a partir dos municípios e das forças locais de segurança, decidiu pelo caminho da militarização da segurança. O Pronasci deveria ter evoluído para uma política de Estado, criando um grande sistema nacional de financiamento de políticas de prevenção à violência nos territórios mais vulneráveis, criando o Sistema Único de Segurança Pública - SUSP, que o Luiz Eduardo Soares  propôs ainda em 2003. Assim como ocorre no Sistema Único de Saúde - SUS, em nível federal seriam definidas as tipologias e equipamentos da política de prevenção, como os programas de desmobilização de jovens envolvidos com o tráfico, nas casas de juventude ou os Centros de Mediação de Conflito, e em nível municipal se faria a implementação e a integração dessas ações juntos com as polícias estaduais. 

 

IHU On-Line - Que papel as guardas municipais podem desempenhar no campo da segurança pública?

Alberto Kopittke - O grande erro que não podemos cometer é confundir o papel dos municípios com simplesmente tornar as guardas municipais pequenas novas polícias militares. Isso é fruto da velha visão equivocada que resume segurança pública ao papel das polícias e, dessa forma, alguns prefeitos interpretam o seu papel na segurança como simplesmente colocar mais “policiamento” na rua. Dessa forma se cria um clima de confronto e não uma integração entre a cidade e as forças estaduais, e as guardas podem acabar absorvendo alguns problemas das polícias militares, sem absorver as suas qualidades. As guardas têm um grande e fundamental espaço em um novo modelo, como implementadoras de toda a política de prevenção à violência, utilizando o que se aprendeu no mundo sobre policiamento comunitário e trabalho junto aos jovens, enquanto as PMs seguem fazendo o trabalho mais direto de repressão à criminalidade. A guarda é um novo ator, que pode escolher se absorve o antigo modelo ou terá a ousadia de criar uma nova concepção de segurança, integrada e pró-ativa.

 

IHU On-Line - Não é raro o cidadão comum pensar que a proposta de desmilitarizar a polícia signifique extingui-la. Como ampliar este debate? A quem caberia promover essa discussão?

Alberto Kopittke - O grande sucesso da ditadura foi fazer uma transição negociada em que não houve efetivamente nenhuma ruptura com o imaginário militarista, e as pessoas continuaram acreditando que segurança pública é colocar tropa nas ruas e matar inimigos. Mas os movimentos sociais também erraram ao não se aprofundar no debate sobre segurança e acabaram deixando um grande vácuo, onde as forças autoritárias continuaram mantendo uma forte hegemonia e que agora voltaram a ter força política, muito porque as forças progressistas não ofereceram uma alternativa concreta para enfrentar o fenômeno da violência, a partir das premissas democráticas. Infelizmente a esquerda brasileira tratou o problema da segurança como consequência dos problemas sociais e como mera ferramenta de controle da ordem social, sem se aperceber a gravidade e a especificidade do fenômeno da violência nas sociedades contemporâneas, além da grande importância de responder ao sentimento de medo e insegurança.

Embora historicamente o surgimento da polícia esteja exatamente relacionado ao afastamento das Forças Armadas da vida interna dos países, o debate sobre a desmilitarização da segurança pública não deve se confundir com o debate sobre “terminar” com as polícias militares. É verdade que vários países continuam tendo polícias militares, construídas ao longo de sua história, e conseguiram consolidar suas democracias. A grande diferença é que essas polícias militares se tornaram democráticas em seu modelo de gestão. 

Democratizar as polícias significa controle externo sobre o uso da força, transparência, formação e modelo de governança. O controle externo sobre o uso da força continua sendo um tabu no Brasil. Para usar o famoso (e desconhecido) exemplo de Nova York. Em relação à transparência: desde 1973, a polícia é obrigada a publicar um relatório anual sobre cada um dos disparos de arma de fogo efetuados, o que teve um imenso impacto na queda do número de pessoas mortas pela polícia e de policiais mortos em serviço. Sobre o controle: em 1983, a prefeitura de Nova York criou uma ouvidoria externa (Civilian Complaint Review Board), que hoje possui 260 investigadores que não são policiais e recebem as queixas das pessoas contra abuso de autoridade, corrupção e discriminação das polícias, os quais elaboram processos que são julgados por 13 membros, sendo cinco nomeados pelo prefeito, quatro pela Câmara de Vereadores e três pelo chefe de polícia, sendo que nenhum pode ser policial. 

E sobre o modelo de governança: a grande revolução que William Bratton  trouxe a partir de 1993 foi a implementação do CompStat, um modelo de gestão que utilizou os novos sistemas de bancos de dados e georreferenciamento online, para que cada unidade da polícia prestasse contas sobre as suas metas e resultados. Esses três processos, conquistados através de muita pressão dos movimentos sociais, “desmilitarizaram” a Polícia de Nova York, isto é, fizeram ela se abrir para a sociedade, se adaptar aos novos modelos de gestão, de controle e de transparência para compartilhar com as comunidades a superação da violência. E os resultados aconteceram.

 

IHU On-Line - As polícias Militar e Civil deveriam atuar de maneira complementar, mas nem sempre isso ocorre, não sendo raro conflitos explícitos entre as duas corporações. Isto não corrobora a tese não apenas da desmilitarização, mas de unificação das duas polícias?

Alberto Kopittke - Por mais que o debate teórico sobre a unificação das polícias tenha fundamento, eu considero um equívoco se debater a supressão de qualquer instituição, por dois motivos: primeiro, porque as instituições policiais fazem parte do imaginário e das tradições de cada estado brasileiro, pois elas foram organizadas no período de formação do Estado moderno brasileiro. David Bayley  fez um grande estudo sobre 70 países e identificou que praticamente nenhuma polícia criada na formação dos Estados modernos foi suprimida. Nem mesmo grandes revoluções ou quedas de regime suprimiram instituições policiais, com exceção das polícias políticas, é claro. O segundo motivo é que esse debate produz imensas resistências e acaba travando o verdadeiro debate, que é o debate sobre o modelo de gestão das polícias. Seja uma, duas ou várias polícias, nada vai mudar se não tivermos um modelo de gestão democrático, como expus na resposta acima. 

 

IHU On-Line - Faz sentido os bombeiros estarem vinculados a uma estrutura militar?

Alberto Kopittke - Os bombeiros são o pilar central de um outro sistema fundamental que é a defesa civil. O foco da segurança pública é a redução da violência, enquanto o da defesa civil é a prevenção a acidentes e catástrofes naturais. Obviamente que os dois sistemas devem caminhar junto, mas são coisas bem diferentes. Enquanto a defesa civil faz uso de muito conhecimento das áreas de engenharia, por exemplo, a segurança pública deveria fazer uso de psicologia, psiquiatria e ciências sociais. No entanto, continuarem militares já diz respeito a outros fatores, como os seus direitos e sua história, mas efetivamente não faz sentido os bombeiros estarem dentro das polícias militares.

 

IHU On-Line - Há um nítido recorte social nas pessoas mais atingidas pela ação policial, que incide principalmente sobre negros e pobres. Por exemplo: a questão das drogas, que é tratada apenas como um problema policial, e não social. A polícia é discriminatória?

Alberto Kopittke - Desde o início dos anos 1970, quando o trabalho policial começou a ser objeto de pesquisa e a ser mensurado e analisado cientificamente, percebeu-se que o uso da força, assim como o uso do direito, o acesso a saúde e tantos outros aspectos, é muito influenciado pelos padrões de estigmatização e diferença social. Quanto mais reativo for o modelo de policiamento, isto é, quanto mais a polícia apenas atuar de forma reativa às ocorrências de crime ou simplesmente fazendo abordagens sem um planejamento devidamente orientado, mais discricionários são os seus critérios de escolha sobre o que e quem deve ser “enquadrado” e, portanto, maior a possibilidade de que ocorram arbitrariedades contra grupos socialmente vítimas de preconceito. 

Um dos grandes erros de governos progressistas no Brasil foi achar que apenas a educação policial é capaz de mudar esse padrão. O que efetivamente muda esse padrão são atuações proativas das polícias, isto é, ações planejadas, com focos bem definidos e integrados com as demais políticas. Em vez de fazer 20 operações de entrada no mesmo território, é muito mais eficiente fazer uma grande entrada de forma integrada. Além, é claro, do controle social externo forte.

 

IHU On-Line - A sensação crescente de medo e de insegurança respalda o recrudescimento de medidas de segurança e a criação de dispositivos de controle e de vigilância. Nesse contexto, os policiais não estariam se sentindo autorizados tacitamente para ir além da legalidade?

Alberto Kopittke - O vácuo produzido com o fim do Pronasci e o fato de o Governo Federal não ter apresentado nenhuma política nacional de segurança pública abriu espaço muito grande para o fortalecimento do discurso populista e autoritário sobre segurança, do tipo “bandido bom é bandido morto”. Esse discurso (e essa prática), na verdade, nunca deixaram de estar presentes no país. Desde nossa formação escravagista, as forças de segurança são pressionadas a “dar lições” através da violência. A ditadura piorou muito esse quadro, ao empoderar os policiais mais violentos, tanto nas polícias militares quanto nas civis, para fazer o “serviço sujo” que as Forças Armadas não queriam fazer diretamente. Na redemocratização, essas pessoas não foram julgadas, nem punidas. Pelo contrário, se mantiveram em posições de chefia e sendo as grandes vozes da experiência para dentro da polícia. 

Infelizmente, o Ministério Público não assumiu de fato sua competência como órgão de controle externo das polícias, definido pela Constituição, e o país ficou praticamente sem nenhum tipo de controle externo sobre o uso da força. A grande vitória da ditadura foi fazer as polícias acharem que quem defende o controle da atividade policial defende bandidos, o que na prática é o inverso, pois quanto mais legitimidade social a polícia tiver junto aos setores mais vulneráveis, menos o crime vai crescer, mais valorizada será a polícia e melhor satisfação terá o policial em realizar o seu trabalho. ■

José Vicente da Silva Filho defende a fundação de uma polícia única, com um grande ramo uniformizado e outro de investigação

José Vicente da Silva Filho é coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo e especialista em temas relacionados à segurança. Da combinação dessas experiências, parte sua convicção em garantir que a militarização não é um aspecto negativo das polícias brasileiras. “Profissões armadas – portanto, com o poder máximo de uso da força - precisam do controle severo que a sólida hierarquia e a disciplina rigorosa propiciam”, garante, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “A verdadeira questão não é a desmilitarização, mas a fundação de uma polícia única, sem adjetivos, nem militar, nem civil, uma polícia do estado A ou B, com um grande ramo uniformizado e outro de investigação. Não seria militar, mas seria muito mais parecida com as atuais polícias militares do que com as polícias civis.”

Ao ser questionado acerca de abusos cometidos dentro das corporações por conta da excessiva hierarquia, o coronel é taxativo ao classificar essa avaliação de “equivocada e preconceituosa”. Ele se respalda em autores que estudaram organizações militares e o comportamento de seus integrantes, concluindo que “o entendimento do comportamento nessas instituições tem relações com a preparação para viver sob medo intenso e elevado grau de risco de morte”. Em situações de grande tensão, exemplifica José Vicente, “as pessoas tendem a desorganizar seu comportamento”, então “a disciplina austera e obediência imediata são vitais para manter a organização funcional”. O oficial reformado afirma que no militarismo há camaradagem, “até pelas condições de perigo”, situação rara no meio civil, “onde são clássicas as histórias de assédio moral que subsidiam muitas ações trabalhistas”.

José Vicente da Silva Filho é coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo. Tem graduação em Psicologia e mestrado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo - USP, graduação em Curso de Formação de Oficiais pela Academia de Polícia Militar do Estado de São Paulo. Foi secretário Nacional de Segurança Pública durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Consultor contratado do Banco Mundial para assuntos de organização e operação policial, tendo realizado missão junto ao governo da África do Sul para reestruturação da segurança da região metropolitana de Joahnnesburgo. Professor no Centro de Altos Estudos de Segurança da Academia da Polícia Militar de São Paulo. Tem aproximadamente 150 trabalhos publicados (papers, artigos).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - A Polícia Militar é subordinada diretamente ao Executivo de cada Estado, mas, indiretamente, é subordinada também ao Exército, de quem segue estrutura similar (hierarquia, patentes, fardamento etc.). O senhor considera acertado este modelo?

José Vicente da Silva Filho - Não existe essa subordinação ao Exército. É desinformação grosseira. Desde 1988, os governadores têm plena e total autoridade sobre seus policiais, não tendo que relatar ou pedir permissão ao Exército para qualquer iniciativa na área da segurança pública. A exceção óbvia fica para situações extremas em caso de guerra externa ou convulsão interna, como ocorre em qualquer país. Vamos lembrar que há pouco tempo a França decretou estado de emergência depois de ataques terroristas com fortes restrições militares. A similaridade da estrutura da polícia uniformizada não difere muito de outras polícias no mundo. Provavelmente a polícia mais respeitada das américas seja a polícia chilena, os Carabineros, que têm até postos de general, como também os Carabinieri italianos, a Guardia Civil espanhola (militar, apesar do nome), a Gendarmerie francesa, a Polícia Montada canadense. As polícias americanas utilizam os uniformes e muitas designações militares (sargentos, tenentes, capitães) e utilizam os mesmos símbolos da hierarquia militar. O modelo é muito similar aos padrões de polícias existentes no mundo, como as que conheci em alguns países (Argentina, França, Inglaterra, Holanda, Espanha, África do Sul e Estados Unidos, onde visitei as seis mais importantes organizações policiais locais e o FBI).

 

IHU On-Line - Com a redemocratização, lentamente as marcas do período ditatorial precisaram ser extirpadas das estruturas públicas do país. No que tange às polícias Militar e Civil, como foi este processo? Ainda há resquícios do arbítrio nessas duas corporações?

José Vicente da Silva Filho - Muitas das polícias civis e militares existiam há mais de um século antes que se instalasse o governo militar, ou seja, não foram criadas pelos militares. Se houvesse arbítrio nessas instituições, como sugere o clichê, estamos colocando em dúvida as instituições do Ministério Público e do Judiciário a quem competem as medidas corretivas que as leis exigem.

A imprensa também amadureceu e se fortaleceu em sua independência para denunciar arbítrios como desvios institucionais. Não se pode confundir eventuais excessos de força – preocupação constante em qualquer polícia no mundo – com padrões amplamente adotados numa organização que recebe diferentes níveis de vigilância externa: Ministério Público que tem obrigação constitucional de fiscalizar as polícias, corregedorias, ouvidorias, entidades sócias como OAB, Humans Right Watch etc. O que faltou no processo de redemocratização e na Constituição de 1988 foi desenhar uma nova polícia em formato único, como são as polícias do mundo, com um ramo uniformizado (85% do efetivo) e outro de investigação (15%). O modelo atual de duas organizações é bizarro, caro e, de maneira geral, ineficiente.

 

IHU On-Line - A hierarquia das Forças Armadas cria situações de abuso interno de poder. Os trotes talvez sejam a faceta mais conhecida desta distorção, em que o detentor de patente superior se sente à vontade até mesmo para humilhar seus subalternos. Essa prática se processa também nas polícias militares. Isso não incute no policial a ideia de que ele pode fazer o que quiser com alguém considerado inferior a ele?

José Vicente da Silva Filho - Essa avaliação é equivocada e preconceituosa. Autores – principalmente norte-americanos – que se debruçaram sobre as organizações militares e o comportamento de seus integrantes mostram que o entendimento do comportamento nessas instituições tem relações com a preparação para viver sob medo intenso e elevado grau de risco de morte. As pessoas tendem a desorganizar seu comportamento sob severa tensão (podemos lembrar de pais enfurecidos que batem em seus filhos que mal começaram a andar), e a disciplina austera e obediência imediata são vitais para manter a organização funcional em momentos de alta tensão. Não se preparam pessoas para situações extremas por Power Point, como não se ensina nadar por manuais. Nos tempos modernos, com policiais e militares mais esclarecidos, as relações entre superiores e subordinados estão cada vez mais respeitosas. Claro que existem polícias civis e militares que desprezam subordinados e não lhes dão o suporte e respeito que merecem. Há no militarismo uma camaradagem – até pelas condições de perigo – que raramente se observa no meio civil, onde são clássicas as histórias de assédio moral que subsidiam muitas ações trabalhistas. Fiz pesquisas sobre a pressão indevida de superiores no trabalho (harassment) no site Deepdyve.com e encontrei 1.337 estudos sobre assédio no trabalho, 146 sobre assédio no meio militar e 37 estudos no meio policial.

 

IHU On-Line - O senhor já declarou que a desmilitarização não é a resposta para os problemas da polícia no país. Por quê?

José Vicente da Silva Filho - Por um motivo simples: alguém ofereceu um modelo alternativo de como seria essa polícia não militar? Como seria essa polícia desmilitarizada? O capitão passaria a ser um inspetor? Ou não haveria hierarquia, mas tudo dirigido por comitês, como sugeriu o candidato Freixo , no Rio? Os regulamentos disciplinares seriam abolidos? E por que não se questiona a ineficiência, a burocracia e o elevado grau de corrupção das polícias civis? Por que questionar apenas uma delas?

Desmilitarizar sem um modelo seguro de transição é instituir o caos em organizações grandes e armadas. Profissões armadas – portanto, com o poder máximo de uso da força - precisam do controle severo que a sólida hierarquia e a disciplina rigorosa propiciam. O Exército americano vem desenvolvendo um novo padrão de liderança baseado no respeito e na competência do subordinado, mesmo sem abrir mão da disciplina e da hierarquia tradicional. A questão vai além; a verdadeira questão não é a desmilitarização, mas a fundação de uma polícia única, sem adjetivos, nem militar, nem civil, uma polícia do estado A ou B, com um grande ramo uniformizado e outro de investigação. Não seria militar, mas seria muito mais parecida com as atuais polícias militares do que com as polícias civis.

 

IHU On-Line - Na condição de coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, o senhor conhece intimamente a instituição. Quais são os principais problemas da corporação?

José Vicente da Silva Filho - Embora haja similaridade de estrutura e processos de trabalho, há muitas diferenças nas condições de trabalhos e nos problemas na variedade de unidades federativas. Em termos gerais, os principais problemas, em meu ponto de vista:

a. Os padrões de violência do país, que sujeitam os policiais - principalmente os PMs que atuam diretamente nas ruas - a alto risco e intenso estresse funcional.

b. A impunidade decorrente principalmente da legislação criminal (por exemplo, prisão por porte ilegal de arma tem liberdade imediata com pagamento de fiança; criminosos violentos alcançam a liberdade com o cumprimento de um sexto da pena, prescrição de homicídio etc.) é estímulo ao crime, associada a deficiências do aparato policial e lentidão da Justiça. Ou seja, sobra muito do controle para a polícia na rua.

c. Os policiais militares geralmente trabalham em regime extenuante (12 horas de trabalho), ganham pelo menos um terço de seus colegas policiais civis e acabam trabalhando nas horas de folga para complemento de salários, o que incrementa a fadiga.

d. Em muitos estados, o treinamento é insuficiente ou de má qualidade, criando dificuldades acentuadas para o desempenho profissional. Em São Paulo, o treinamento básico para o soldado é de dois anos, mas frequentemente a formação é de seis meses, tendo ocorrido até em três meses no Ceará. No treinamento de São Paulo, a programação é de 700 tiros, mas é comum o treino de 50 tiros em outros estados.

e. Por falta de visão de como deve ser a organização e gestão do aparato policial, muitos governos estaduais encurtam responsavelmente a formação policial ou investem em unidades especializadas (tipo Bope) ou em aparatos de marketing de segurança.

f. Há outro problema sério nas polícias Civil, Militar e Federal, a falta de preparo para gestão, seja operacional, seja financeira ou de recursos humanos. Quando a polícia reclama que falta papel higiênico, ela está confessando seu fracasso em gestão.

 

IHU On-Line - As críticas comumente feitas à Polícia Militar, e que acabam alimentando o debate acerca da desmilitarização, procedem ou resultam de desinformação e preconceito?

José Vicente da Silva Filho - As duas, com certeza. Falar em desmilitarização, como já mencionei, como se fosse um mal em si mesmo, é preconceito. Os excessos e distorções de comportamento disciplinar ocorrem, mas ocorreriam mesmo sem a configuração militar por características do próprio ambiente policial muito burocratizado, cheio de normas e problemas em penca. Uma pesquisa no site Deepdyve mostra 530 estudos sobre suicídio de policiais, abrangendo polícias de vários países, a maioria sem característica militar. Deixo a seu critério a questão da desinformação: quanto dos dados que mencionei aqui – e que são públicos – você conhecia ou procurou para embasar as questões?

 

IHU On-Line - O que permitiu o surgimento de esquadrões da morte dentro das polícias? 

José Vicente da Silva Filho - Isso ocorreu por estímulo ou tolerância das autoridades políticas de então. Quando o Ministério Público de São Paulo e depois o Departamento de Homicídios da Polícia Civil e o empoderamento das corregedorias resolveram dar um basta, o problema praticamente acabou. O que ainda ocorre é a ação esporádica de policiais que cometem barbaridades, como fenômenos isolados. Desconheço existência desses grupos criminosos na atualidade. 

 

IHU On-Line - A impunidade é suficiente para explicar execuções e outros crimes cometidas por policiais?

José Vicente da Silva Filho - Desconheço alguma execução ou crime esclarecido praticado por policial (portanto com autoria claramente definida) que tenha ficado impune. Impunidade é fator gerador de crime para qualquer tipo de criminoso. Perversões de personalidade também explicariam muitos crimes. Nas polícias, são fatores críticos para reduzir crimes: seleção rigorosa, treinamento de qualidade, eficiência de supervisão nos trabalhos policiais e disciplina severa. Em Nova York, um policial pode ser demitido se aceitar um lanche grátis.

 

IHU On-Line - Os policiais recebem treinamentos similares aos das Forças Armadas, que se preparam para combater o “invasor externo”. Esta lógica bélica ajuda a explicar por que os PMs costumam ser violentos em situações distintas quanto uma manifestação em vias públicas ou um enfrentamento com criminosos armados?

José Vicente da Silva Filho - Pode mostrar algum exemplo desse suposto treinamento similar aos das Forças Armadas? E para combater invasor externo? Desafio a mostrar um único nas unidades federativas. Nas quase 2 mil horas de treinamento do policial militar em São Paulo, não há uma só aula de preparo militar.

Quando se fala “costuma”, emite-se um julgamento com suposição de algo constante, que ocorre na maioria das vezes. Ou, pelo menos, um em cada quatro (25% dos casos)? Que tal analisar com fatos? Em 2015, a polícia paulista prendeu 189 mil criminosos em flagrante ou procurados com mandado de prisão; não eram meros suspeitos. Em quantas prisões ocorreram mortes em confronto? Se ocorresse mortes em 10%, teríamos 18 mil mortes; 1% seriam 1.890. Foram 607 casos, ou 0,32%. Em que porcentagem das manifestações as polícias se excederam? Em São Paulo, a Polícia Militar acompanhou 6.148 manifestações de 2013 a 2015. Em quantas ocorreram problema graves, já que a polícia “costuma ser violenta”? Se fosse violenta em 10% das manifestações, teríamos mais de 600 casos de abusos ou uso excessivo de força. Na capital paulista, ocorreram 768 manifestações de janeiro a setembro de 2016 e apenas em 68 (8,8%) ocorreram situações que exigiram uso da força. Isso confirma o “costumam ser violentos”? Em São Paulo, a Polícia Militar aborda 1 milhão de pessoas por mês; se ela costumasse ser violenta, não seria um banho de sangue?

 

IHU On-Line - Qual a sua análise sobre o trabalho da Justiça Militar?

José Vicente da Silva Filho - Absolutamente desnecessário. Entendo que é mais prático demitir um policial insubordinado do que condená-lo à prisão por crime militar.

 

IHU On-Line - Em julho de 2013, a Human Rights Watch enviou uma carta ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), apresentando sua preocupação com o número expressivo de suspeitos que eram mortos por policiais. A organização internacional cobrou investigação desses casos, que indicariam um “claro padrão de execução de vítimas”. Também destacou temor com a letalidade do trabalho das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). Na sua análise, expedientes deste tipo surtem algum efeito ou os governos são blindados a críticas?

José Vicente da Silva Filho - Isso teria que ser perguntado aos governos. O que seria “número expressivo”? E a cobrança não deveria ser ao governador, mas aos órgãos que investigam e julgam todos os casos. Em todos os casos de morte por policiais, são instaurados inquéritos, e todos os inquéritos são encaminhados ao Ministério Público, e esse deve relatar ao juiz. Posso garantir que, na maioria dos estados, há absoluta intolerância com os crimes praticados por policiais.

 

IHU On-Line - O que pode ser feito para reverter o histórico de violência das corporações, mesmo que mantida a natureza militar?

José Vicente da Silva Filho - Primeiro, mitigar as condições que geram a elevadíssima violência no país, que vitimam mortalmente mais de 100 mil brasileiros por ano (incluindo a violência no trânsito) e tornam o policial brasileiro o mais agredido e morto no mundo. A polícia que temos é reflexo da sociedade que somos, de suas mazelas, de suas leis e justiça criminal defasadas e ineficientes para controle do crime, de suas autoridades que gerenciam mal os problemas sociais e de segurança, de suas corporações, das incompetências políticas que nos governam. Segundo, oferecer condições decentes de trabalho ao policial e treinamento de alta qualidade. ■

Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do IHU.

Depois de cinco anos de seca no Nordeste, a possibilidade de um colapso é significativa

Entrevista especial com David Ferran, graduado em Meteorologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Geociências pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos.

Publicada em 11-11-2016

Os cinco anos consecutivos de seca no Nordeste brasileiro são explicados pela presença do El Niño e pela não ocorrência do fenômeno climático La Niña, que “favorece bastante a ocorrência de chuvas” no Nordeste, diz David Ferran à IHU On-Line, na entrevista concedida por telefone. Segundo ele, a não ocorrência do fenômeno se deve a “uma condição de neutralidade no Oceano Pacífico” e de uma “configuração das temperaturas do Oceano Atlântico tropical”.

Eleição de Trump expressa o ressentimento racializado e de classe nos EUA

Entrevista especial com Idelber Avelar, professor de teoria literária e estudos culturais na Tulane University, em New Orleans, EUA, e doutor em Estudos Espanhóis e Latino-Americanos pela Duke University.

Publicada em 10-11-2016

A eleição de Donald Trump como o novo presidente dos Estados Unidos, “foi a maior surpresa eleitoral” do país “desde a famosa virada de Harry Truman sobre Thomas Dewey, em 1948”, diz Idelber Avelar à IHU On-Line. Na entrevista, concedida por e-mail, Avelar faz uma primeira análise das eleições norte-americanas e frisa que “o perfil do eleitorado de Trump é muito mais complexo e plural do que algumas análises apressadas têm sugerido”.

A gastronomia como uma via para resgatar a dignidade humana

Entrevista especial com David Hertz, formado em Gastronomia pelo Centro Universitário Senac - Águas de São Pedro, em São Paulo. É o fundador da Gastromotiva e o impulsionador do Movimento da Gastronomia Social no Brasil e no Mundo.

Publicada em 9-11-2016

Utilizar a gastronomia como “ferramenta para transformação social” é uma das propostas da organização italiana Food for Soul, criada pelo chef italiano Massimo Bottura, e desenvolvida no Brasil pelo chef David Hertz, através do projeto Refettorio Gastromotiva. Inspirado nos pilares de nutrição e dignidade, reeducação de desperdício de alimentos, capacitação da juventude e educação e saúde, o projeto tem como objetivo se engajar na luta “contra o desperdício de alimentos, a má nutrição e a exclusão social”, servindo almoço para a população em situação de vulnerabilidade.

Nordeste brasileiro vive quinto ano de seca e se não chover nos próximos dias, não há plano B

Entrevista especial com João Suassuna, engenheiro agrônomo, pesquisador da fundação Joaquim Nabuco, no Recife, e especialista em convivência com o semiárido.

Publicada em 8-11-2016.

O setentrional nordestino, que há cinco anos vem enfrentando situações de seca, está em “estado de emergência” e muitos dos municípios da região, como o de Campina Grande, na Paraíba, que tem aproximadamente 355 mil habitantes, e Caruaru, em Pernambuco, com quase 300 mil habitantes, enfrentam problemas de abastecimento de água para o consumo, informa à IHU On-Line, na entrevista, concedida por telefone. Na avaliação do pesquisador, “o maior problema da seca é que não há gestão dos recursos hídricos”, e em muitos municípios, frisa, se não chover o percentual esperado para este mês, “não há um plano B”.

Em seu microcosmo, a esquerda fala para si mesma, sem uma real conexão com a sociedade

Entrevista especial com Salvador Andrés Schavelzon, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ e graduado em Ciências Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires.

Publicada em 7-11-2016

A esquerda brasileira parece estar numa “bolha” e, em geral, suas discussões “giram em torno” de saber quem estará no comando nos próximos anos, “se haverá uma renovação dentro do PT, se será criado um novo partido, ou se o PSOL vai crescer. Mas todas essas discussões dão a impressão de serem cada vez mais marginalizadas, (...) sem conexão com a classe trabalhadora”, “sem uma real conexão com a sociedade”, constata o antropólogo argentino Salvador Andrés Schavelzon. Na entrevista, concedida pessoalmente à IHU On-Line, avalia que “o fenômeno importante dessas eleições” é o fato de que “as maiorias e as classes populares subalternas ou votam na direita ou não votam”, o que confirma a tese de que a esquerda, cada vez mais, “é uma expressão da classe média progressista”.