“A hospitalidade não traduz apenas a maravilha do encontro com o outro, mas também a agonia de estar diante de um ‘estranho’ que bate à nossa porta”, escreve Faustino Teixeira em artigo exclusivo à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, “abraçar a hospitalidade ganha um significado muito especial nos tempos atuais, envolvendo também o desafio de habitar a Terra com sentido, acolhendo a “textura do mundo da vida”.
Faustino Teixeira é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – PPCIR-UFJF, pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Entre suas publicações, encontram-se Teologia e pluralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012); Catolicismo plural: dinâmicas contemporâneas (Petrópolis: Vozes, 2009); Ecumenismo e diálogo inter-religioso (Aparecida do Norte: Santuário, 2008); Nas teias da delicadeza: Itinerários místicos (São Paulo: Paulinas, 2006); No limiar do mistério. Mística e religião (São Paulo: Paulinas, 2004); e Os caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2012). Publicou, em coautoria com Renata Menezes, Religiões em Movimento. O Censo de 2010 (Petrópolis: Vozes, 2013).
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A hospitalidade envolve uma “dádiva de si”, tendo uma grande familiaridade com a abertura ao outro e ao diálogo. No campo das religiões, a hospitalidade ganha um significado essencial. A acolhida ocorre no “solo sagrado” do outro, implicando um gesto magnífico, que coloca o sujeito diante de um risco preciso, que revolve toda a sua autocompreensão. A hospitalidade não traduz apenas a maravilha do encontro com o outro, mas também a agonia de estar diante de um “estranho” que bate à nossa porta. Há uma dimensão de tensão ou mesmo altercação na relação que se estabelece. O desafio já começa na soleira da porta, “naquela porta à qual se bate e que vai abrir um rosto desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos, entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira é a etapa decisiva semelhante a uma iniciação” . [1]
O caminho que se abre pode ser o diálogo, que começa a ocorrer quando a recepção se dá de forma sutil, delicada, cuidadosa e amorosa. Há que bater “devagar” na porta do outro, sem muito ruído, de forma a favorecer um intercâmbio vital. Entrar no novo circuito envolve “renunciar a se impor”, mantendo delicadamente o direito à diferença, a preservação de certa distância. O caminho é tortuoso, e exige escuta e paciência. Há que buscar por todos os meios quebrar as amarras da violência que estão implícitas em toda dinâmica da hospitalidade. É um mundo novo que se anuncia, exigindo delicadeza e cuidado. Daí ser o diálogo uma frágil “zona de passagem”, de “aventura, espanto e inquietação”. [2]
O diálogo é uma “cartografia inacabada”, que vai se tecendo com as linhas da humildade e generosidade. Os interlocutores são convidados a alçarem o olhar, vislumbrarem novos patamares de significado, refletirem sob nova luz. Aí pode então ocorrer o milagre de um encontro, que preserva simultaneamente o autorrespeito genuíno e a autoexposição ao outro. No cerne do diálogo está uma acolhida, está a presença de um rosto que convida, de um olhar que indaga e provoca o mover dos lábios.
São inúmeros e exemplares os casos de exercício dialogal, de realização de uma hospitalidade sagrada, como a de buscadores que se inserem nas inúmeras tradições espirituais. Nos diversos itinerários, o diálogo encarna a virtude maior entre as culturas: a hospitalidade. Pois é preciso abrir as portas da casa, oferecer ao hóspede o quarto mais arejado e luminoso. O diálogo nasce entre dois rostos, entre duas casas, entre duas tradições. E contribui para uma cultura da paz (...) . [3]
O diálogo comporta algo mais que uma interlocução humana, vai além, e traduz um “ato religioso”, na medida em que evoca um Mistério maior. Indica o traço contingente que habita em qualquer experiência religiosa particular. Suscita indagação, abertura permanente, ou como mostra Gadamer [4] , expansão da individualidade. O que se busca, intensivamente, é a verdade que habita na dinâmica mesma da sinfonia do encontro. Disse a respeito Montaigne [5] : “Eu festejo e acaricio a verdade em qualquer lugar que a encontrar, e para lá me dirijo alegremente, e lhe estendo minhas armas vencidas, de longe, assim que a vejo se aproximar (...)”. [6]
São ricos os exemplos de buscadores que viveram intensamente a prática da hospitalidade [7]. No âmbito do cristianismo, e em particular no diálogo com o islã, aparecem figuras notáveis como Louis Massignon [8] (1883-1962), que abraçou com vigor esse tema, fazendo dele a ária de sua vida. Para ele, a hospitalidade envolvia uma saída de si mesmo, uma “expatriação interior” para poder assumir o outro com alegria e gratuidade. Entendia que o verdadeiro encontro com o outro não acontece mediante o caminho de sua anexação, mas no deixar-se hospedar por ele. O caminho indicado é o do coração, que é o lugar privilegiado de acesso ao “segredo divino”. Hospitalidade, Misericórdia e Compaixão são palavras que se irmanam. Assumir a hospitalidade é deixar-se tomar pelo apelo solene dos Abdâl, ou seja, daqueles que foram escolhidos por Deus para sanar as feridas do mundo mediante o dom de si. Foi desta palavra, Abdâl — plural de badal —, que Massignon tirou a inspiração para a sua experiência espiritual mais forte, a Badaliya, um mosteiro espiritual, uma comunidade de pessoas dedicadas ao caminho da oferta ao islã.
Experiência comunitária
Há também o exemplo precioso de Christian de Chergé [9] (1937-1996), o monge-mártir de Tibhirine (Argélia). No compromisso assumido pela comunidade trapista com os irmãos muçulmanos da região algo de maravilhoso aconteceu, como passo de gratuidade e hospitalidade. Os laços comunitários que se estabeleceram naquela difícil região foram tratados de forma singela no filme de Xavier Beauvois [10], Homens e deuses [11] (2010), num envolvimento amoroso, de compromisso e entrega excepcionais. Para Chergé, a dinâmica de hospitalidade era o horizonte da experiência comunitária, algo central para ele. Dizia não haver fronteiras de tempo ou espaço para o exercício do amor e da misericórdia. Uma acolhida marcada pela pura gratuidade, como um dom que não implica reciprocidade. Ele dizia que essa acolhida brota límpida do coração do evangelho, daí o desafio de “aprender a exercê-la sem exigir reciprocidade, em nome Daquele que veio a nós gratuitamente”. [12]
Os exemplos de dedicação à hospitalidade falam muito mais forte que as teorias a respeito, não há dúvida sobre isso. Nesse percurso de dedicação à alteridade pode ainda ser lembrado o nome de Serge de Beaurecueil [13] (1917-2005). Foi um frade dominicano que dedicou sua vida a essa aventura de amor aos amigos muçulmanos. Na trilha de outros buscadores, pôde perceber que há sempre a presença de um outro a desvelar facetas inéditas do Mistério sempre maior. Foi assim que, partindo de uma grande devoção à mística sufi, encontrou o caminho do serviço junto aos meninos de Cabul, no Afeganistão. Dizia que no momento derradeiro, a pergunta essencial vai incidir não sobre a religião abraçada, mas sobre o movimento de “partilha do pão e do sal”. Um passo essencial para a sua conversão espiritual ocorreu numa situação cotidiana, de convivência com um dos meninos da região, Ghaffâr, que favoreceu sua ampliação olhar. Num certo dia, o garoto disse: “Você aceitaria que eu fizesse uma refeição em sua casa e depois viesse lanchar na minha? Poderíamos assim partilhar o pão e o sal, o que sela entre nós a amizade, a união dos destinos”. Esse menino morreria pouco tempo depois, num acidente automobilístico. O gesto acenado pelo garoto ganhou um significado sacramental para o dominicano, com notáveis irradiações. Num de seus livros, dirá:
Ghaffâr, sem dúvida alguma, favoreceu-me a chave de compreensão. Estava aqui para partilhar a vida dos afegãos na banalidade de seus acontecimentos cotidianos, e simplesmente partilhar o alimento... Uma tal partilha ligou meu destino ao deles, selando o direito de intercessão — tão caro a Louis Massignon — consagrando um traço de união entre Cristo e eles, instrumento silencioso da graça. [14]
A hospitalidade firma-se, assim, como algo precioso, com valor sagrado, que estabelece laços entre aqueles que buscam crescer na experiência do Mistério e da busca do sentido. Hoje, porém, surge um desafio novo, que é entender as teias largas da hospitalidade, que não se reduz à acolhida dos outros humanos, mas que rasga o conceito tradicional de “nós”, de forma a abrigar todos os seres da criação, no respeito essencial aos seus direitos característicos. Abraçar a hospitalidade ganha um significado muito especial nos tempos atuais, envolvendo também o desafio de habitar a Terra com sentido, acolhendo a “textura do mundo da vida”. Não há mais dois mundos antagônicos, em que sociedade e natureza estão divididos, mas uma única malha tecida por trilhas diferenciadas, mas sempre relacionadas. Supera-se a dicotomia entre o organismo (aqui) e o ambiente (lá), e o ser humano se dá conta, finalmente, que é parte do vivente e não mais o umbigo do mundo. O habitar a Terra ganha assim um significado novo e alvissareiro, e o ser humano vem inserido “no interior da continuidade do mundo da vida”. [15]
Espiritualidade ecológica
O Papa Francisco se deu conta desse desafio inaugural em sua carta encíclica Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum [16] . Parte da ideia essencial de que todos os seres humanos são terra, e que os elementos de seu corpo são constituídos pelos “elementos do planeta” (LS 2). Na pauta de sua reflexão, o desafio de uma “nova solidariedade universal”, que parte da consciência de que tudo na Terra está interligado, e que todos os seres criados precisam uns dos outros. Novos laços são tecidos, unindo a humanidade com a animalidade, com a vegetalidade e a mineralidade, numa consciência comum da dignidade de cada criatura. Indica a urgência de uma “espiritualidade ecológica”, uma “conversão ecológica” (LS 216 e 217) voltadas para o exercício comum de recuperação de uma harmonia serena com a criação. O Universo inteiro está animado pela dinâmica espiritual: “Há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (LS 233).
A hospitalidade ganha assim uma tessitura nova e exigente, que sem desconsiderar os passos da acolhida ao outro humano, distinto, vem agora enriquecida com uma dimensão novidadeira, que delineia os passos essenciais do significado mais profundo do habitar espiritualmente a Terra.
Leia Mais
- Encontro de Assis: uma "viagem fraterna" rumo a um horizonte maior. Entrevista especial com Faustino Teixeira, publicada nas Notícias do Dia de 27-11-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- Deus não tem religião. Artigo de Faustino Teixeira. Publicado nas Notícias do Dia de 4-4-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- Fora da Misericórdia não há salvação. Entrevista especial com Faustino Teixeira. Publicado nas Notícias do Dia de 26-6-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- Assis, um acontecimento do Espírito. Entrevista especial com Faustino Teixeira. Publicada nas Notícias do Dia de 19-9-2016, no sírio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Notas
1 - Alain Montandon. Espelhos da hospitalidade (prefácio). In: ____. Ed. O livro da hospitalidade. São Paulo: Senac, 2011, p. 32.
2 - Marco Lucchesi. Guerras de religião? O Globo. 03/12/2014. (Nota do autor)
3 - Ibidem. (Nota do autor)
4 - Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, autor de Verdade e método (Petrópolis: Vozes, 1997), faleceu no dia 13-03-2002, aos 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a matéria de capa da IHU On-Line número 9, de 18-3-2002, Nosso adeus a Hans-Georg Gadamer, disponível em http://migre.me/DtiK. (Nota da IHU On-Line)
5 - Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592): escritor e ensaísta francês, considerado por muitos o inventor do ensaio pessoal. Nas suas obras e, mais especificamente nos seus "Ensaios", analisou as instituições, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época e tomando a generalidade da humanidade como objeto de estudo. (Nota da IHU On-Line)
6 - Apud Magali Bessone. Do eu ao nós. In. Alain Montandon (Ed.). O livro da hospitalidade, p. 1270. (Nota do autor)
7 - Ver: Faustino Teixeira. Buscadores cristãos no diálogo com o islã. São Paulo: Paulus, 2014. (Nota do autor)
8 - Louis Massignon (1883-1962): escritor e católico francês perito no Islã. (Nota do IHU On-Line)
9 - Charles-Marie Christian de Chergé (1937-1996): monge cisterciense francês. Prior da Abadia de Nossa Senhora do Atlas, em Tibhirine, na Argélia, foi raptado, juntamente com mais seis monges, na noite de 26 para 27 de março de 1996, por um grupo de 20 homens do Grupo Islâmico Armado Levaram sete monges prisioneiros, incluindo o Irmão Bruno, um visitante de Fès, em Marrocos. Dois monges não foram localizados pelos captores. Uma mensagem do GIA anunciou que os sete monges tinham sido decapitados em 21 de maio de 1996. (Nota da IHU On-Line)
10 - Xavier Beauvois (1967): ator, diretor e escritor francês. Uma de suas produções é Homens e deuses, exibida como parte da programação do evento Fé no cinema, na Páscoa de 2012 no Instituto Humanitas Unisinos - IHU. (Nota da IHU On-Line)
11 - Homens e deuses: Des hommes et des dieux, filme francês de 2010, de gênero dramático, dirigido pelo cineasta Xavier Beauvois, exibido como parte da programação do evento Fé no cinema, na Páscoa de 2012. Sobre esse filme, confira a entrevista concedida pelo monge trapista Xavier Beauvois à edição 387 da IHU On-Line, de 26-3-2012, intitulada A Igreja feita de homens e de deuses, disponível em http://bit.ly/1A30RlK. (Nota da IHU On-Line)
12 - Christian de Chergé. L´invencible esperance. Paris: Bayard, 2010, p. 206. (Nota do autor)
13 - Serge de Beaurecueil (1917-2005): um dos membros fundadores do Instituto Dominicano de Estudos Orientais (IDEO), no Cairo. Começou suas pesquisas em mística muçulmana. Em 1963 assumiu uma cátedra de história da mística muçulmana na Universidade de Cabul. (Nota da IHU On-Line)
14 - Serge de Beaurecueil. Me enfants de Kaboul. Paris: Cerf, 2004, p. 65. (Nota do autor)
15 - Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 26. (Nota do autor)
16 - Papa Francisco. Laudato si’. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015. (Nota do autor)
Acolher é humanizar as relações entre as comunidades, pontua Claudio Monge. “Lógica do terror” se converteu em estratégia política que não percebe a singularidade irrepetível das pessoas, reduzidas a um estereótipo
Sem reconhecer a alteridade não há diálogo, nem a própria singularidade. Esse é um motivo a mais para que se pratique a acolhida, “lá onde o mercado ainda não se apropriou da hospitalidade, arrancando-a da gratuidade e forçando-a a entrar na lógica comercial”, menciona o frade dominicano Claudio Monge na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Nós existimos e a humanidade existe porque originalmente cada um de nós foi, primeiramente, hospedado, acolhido. ‘Mãe’ é o nome da hospitalidade ativa, da hospitalidade primordial”, afirma o italiano radicado na Turquia. Vivendo no Oriente, “descobri uma hospitalidade que é ARTE: uma atitude de atenção que não faz exceção com ninguém, mas que é também capacidade de tomar e dar o tempo”, frisa o teólogo.
Claudio Monge é teólogo italiano. Frade da Ordem dos Pregadores, desde 1997 vive sua experiência teológica e pastoral em Istambul, Turquia, como Superior da comunidade e responsável pelo Centro Dominicano para o Diálogo Inter-religioso e Cultural - DOST-I no diálogo-encontro com a tradição muçulmana.
O encontro com um turco hospitaleiro o levou a aprofundar a experiência existencial e teológica da hospitalidade, desde contextos culturais e religiosos mais diversos. O foco central é a experiência abraâmica, que na acolhida dos seus hóspedes misteriosos extrapola a "memória cultural" da theoxenia e adentra o espaço de uma autêntica teofania no serviço ao outro. Entre seus livros publicados, destacamos Taizé. L’espérance indivise (Paris: Les Éditions du Cerf, 2015). Outras obras importantes são Stranierità, nomadismo dell’anima (Milano: Sacra Doctrina, 2015), Stranieri con Dio. L’ospitalità nelle tradizioni dei tre monoteismi abramitici (Milano: Terra Santa, 2013) e Dieu hôte. Recherche historique et théologique sur les rituels de l'hospitalité (Bucharest: Zetabooks, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - De que forma a perspectiva teológica da hospitalidade pode contribuir para a compreensão das dimensões humanas nas relações entre países?
Claudio Monge - A Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes , talvez mais do que qualquer outro documento do Concílio, foi capaz de expressar programaticamente uma intuição simples e revolucionária ao mesmo tempo, que pode ser resumida assim: a Igreja está a serviço do Reino, quando aprende a "estar no mundo". Ela define-se no serviço ao ser humano, afirma que não há nada verdadeiramente humano que não encontre eco em seu coração. Isto representa o nascimento de um novo humanismo, em que o homem, em primeiro lugar, define-se por sua responsabilidade perante seus irmãos e perante a história (GS, 55). Lá onde o mercado ainda não se apropriou da hospitalidade, arrancando-a da gratuidade e forçando-a a entrar na lógica comercial (transformando, consequentemente, o necessitado em cliente dos serviços humanitários e ajudas, onde ele será acolhido simplesmente de acordo com sua disponibilidade econômica), acolher significa humanizar a humanidade mesma e, portanto, também as relações entre as comunidades.
Na verdade, o modo de conceber e viver a hospitalidade revela o grau de civilização de um povo, no que diz respeito à dignidade de cada ser humano, evitando reduzi-lo a "refém"... O dever de hospitalidade é um dever não só individual, mas também político. Numa época em que o multiculturalismo e o processo de hibridação das civilizações são vistos como um dos fenômenos sociais mais rápidos e mais extensos, a mensagem de certas políticas nacionalistas emergentes significa uma recusa da contaminação, vivida não apenas como enfraquecimento cultural, mas também como atentado aos interesses legítimos. Neste âmbito, as religiões são muitas vezes usadas — a serviço da ideologia — para semear contrastes e espalhar terror. E isto corresponde à derrota da política mesma que, ou é inclusiva e, portanto, "programaticamente hospitaleira", ou trai sua própria essência, bem expressa na semântica grega filosoficamente declinada por Aristóteles : expressão da polis (πόλιϚ) como comunidade que se constitui em vista de um bem.
IHU On-Line - Em que sentido o fato de assumir a própria identidade é importante para o processo de reconhecimento da identidade do outro?
Claudio Monge - Não há diálogo sem reconhecimento da alteridade, mas também da própria singularidade. Esta é uma razão a mais para apreciar a importância da prática da acolhida, que reorganiza de maneira nova a própria compreensão da identidade individual. Tudo pode realmente começar quando somos acolhidos, bem como quando somos capazes de acolher. As declarações, por vezes xenófobas, de políticos, como das pessoas comuns, são sinal da fraqueza identitária. É o medo que faz falar dessa maneira, e não a consciência de quem somos realmente. Saber quem somos e de onde viemos (numa palavra: cultivar nossa identidade originária) são condições essenciais da hospitalidade. Mas não são suficientes: é preciso aprender a "conhecer" o outro, para dialogar (eliminando os preconceitos oriundos de boatos e compreensões estereotipadas) e, num segundo momento, a “re-conhecê-lo”. Mas isso só é possível quando se começa a levar a sério a existência do outro na sua "diferença irredutível" (no sentido objetivo de uma diferença que deve ser aceita como tal, na sua consistência própria, e não simplesmente em referência ao que tem ou não relação a nós): a existência dos seus sonhos e aspirações para uma vida digna, a realidade da sua vida religiosa, a sinceridade de sua sensibilidade espiritual, a legitimidade da sua pretensão à verdade. É um longo caminho, e Edmond Jabès lembrava que a distância que nos separa do estrangeiro é a mesma que nos separa de nós mesmos.
IHU On-Line - Em que medida a experiência do encontro com o outro pode ser transformadora? E de que ordem é esta transformação?
Claudio Monge - Tendo em vista as diferenças acima, um encontro que respeite as diferenças significa um encontro onde se aprende a caminhar com eles, pois só assim se acede ao átrio hospitalidade divina que, ao contrário de hospitalidade humana, não se satisfaz em aceitar o outro no seu próprio espaço, mas se convida a entrar no espaço do outro, para ser acolhido por ele (Ap 3,20)! Uma primeira constatação, a partir destas premissas: a experiência do encontro não implica a necessidade imperativa de um acordo. Sua função é, ao invés, de conduzir a uma maior clareza e abertura no debate, permitindo igualmente a todos os interlocutores de superar-se, de não se fossilizar nas próprias certezas, mesmo sem com isso renunciar à própria identidade. Aqui repousa o caráter transformador da hospitalidade, porque só experimentando-a se realiza aquela humanidade que exatamente na “relação” possui um elemento característico. E esta relação se explicita não só no acolher, mas também no saber-se acolhido, porque o hóspede é ao mesmo tempo aquele que acolhe e aquele que é acolhido. Nós existimos, e a humanidade existe, porque na origem, cada um de nós foi, em primeiro lugar, hospedado, acolhido. "Mãe" é o nome da hospitalidade ativa, da hospitalidade primordial.
IHU On-Line - Quais as diferenças e semelhanças na prática da hospitalidade nas culturas ocidentais e orientais?
Claudio Monge - Sem dúvida, desde minha chegada ao Oriente Médio, tenho experimentado uma constante prática de hospitalidade, que perturba os cânones clássicos do gesto, muitas vezes, reduzido, por nós, num ato bom de caridade. Descobri ali uma hospitalidade que é ARTE: uma atitude de benevolência que não faz exceção para ninguém, mas que também é capacidade de tomar e de dar tempo. Na verdade, é exatamente a relação radicalmente diferente, com relação ao tempo e ao espaço, que distingue a prática da hospitalidade nas culturas orientais, em relação aos encontros formais e frequentemente funcionais com necessidades específicas que se vivem no Ocidente. A hospitalidade oriental inclui uma rede muito complexa de pequenos gestos, às vezes quase rituais (como a pequena taça de chá oferecida cinco, dez vezes por dia, mesmo em contextos que nada têm a ver com um bar, ou o fato de servir refeições pródigas ao hóspede, mas não comer com ele), o legado de uma generosidade quase instintiva, mas também uma confiança inata que se repõe no "desconhecido de passagem": atitudes das quais, muitas vezes, perderam-se os vestígios no Ocidente, em primeiro lugar, porque a vida agitada impede ver o rosto das pessoas...
IHU On-Line - No que a ideia de hospitalidade pode inspirar a pensar na relação com o mundo islâmico e na chamada "guerra contra o terrorismo"?
Claudio Monge - A "lógica do terror", que tornou-se uma verdadeira e própria estratégia política, está baseada num olhar estereotipado, onde o outro não é percebido em sua singularidade irrepetível, mas sempre e comumente reduzido ao mundo do qual nós pensamos que ele deva provir. Por exemplo, não há nenhuma menção de terroristas concretos, de bandidos identificáveis e identificados, mas apenas e sempre de terrorismo islâmico, transformando a diversidade de crentes do Islã num único bloco, numa real ou potencial ameaça. Em outras palavras, de acordo com essa lógica, se você é muçulmano, você será sempre um potencial terrorista, mais do que um crente. As tentações particularistas que vemos um pouco por todos os lados, mais cedo ou mais tarde, geram tendências xenófobas e racistas, tendem à exclusão dos outros, transformam-se num autismo sociocultural, onde se vive um ideal regressivo de autoisolamento e onde se assumem linguagens e formas expressivas rudes para não dizer vulgares. A proximidade de Deus é, no entanto, o verdadeiro modelo de hospitalidade, não atestada e realizada na forma de uma imposição identitária, nem de um juízo genericamente coletivo, mas no estilo de um relacionamento interpessoal, que implica o encontro de rostos e histórias concretas, num cruzamento de olhares, numa escuta que é a maiêutica da verdade.
IHU On-Line - Vivemos num tempo de retomada radical do nacionalismo, como se vê nos exemplos do Brexit na Inglaterra e na eleição — e na defesa das teses — de Donald Trump nos Estados Unidos. O que este momento de nacionalismo extremo revela acerca dos conceitos de hostilidade e hospitalidade?
Claudio Monge - Parece-me que o dado mais alarmante dos dois exemplos trazidos, que exibem semelhanças, mas não podem ser sobrepostos, é precisamente a dimensão do "contra" que conseguem interceptar. Isso não significa que sejam simples fenômenos de "estômago", inspirados por um instintivo sentimento destrutivo! Penso que são expressão de uma grande solidão, são o epifenômeno da explosão total do vínculo social. O povo não é seduzido pelos populistas somente quando tem perto de si alguém que está do seu lado, e a política não está, atualmente, em condições de demonstrar essa proximidade. Não é por acaso que homens fortes emergem, um pouco por todos os lados, expressando a antipolítica. Esta nutre-se de ódio e de hostilidade, enquanto a hospitalidade é a capacidade de pôr-se ativamente na posição de acolher e servir as necessidades do outro, antes de qualquer juízo dele/dela.
Enquanto pensar numa ética como hospitalidade significa entrar profundamente na identidade do outro a fim de compreender e explorar todas as suas características mais profundas, a lógica populista usa o ódio como um motor, incitando, se necessário, até mesmo os sentimentos mais sinistros do povo, para servir-se disso como eficaz cobertura de interesses particulares, apresentados como projeto universal. E pensar que um novo presidente dos Estados Unidos possa cercar-se de um time de sócios de negócios para fazer sua equipe de governo é sujo, assim como a desavergonhada tentativa da Inglaterra, de derrogar suas obrigações comunitárias com o Brexit, procurando, contudo, manter mais ou menos inalterados seus direitos de antigo membro da União.
IHU On-Line - O senhor vive a experiência de ser estrangeiro num país imerso em conflitos, a Turquia. O que esta experiência lhe revela acerca da hospitalidade e do encontro com o outro?
Claudio Monge - Creio que a situação, frequentemente desconfortável, de viver como estrangeiro num país que parece, aliás, esquecer sua história multicultural e religiosa, orientando-se para um nacionalismo fortemente identitário e, às vezes, xenófobo, seja, em alguns aspectos, a nova edição do desafio permanente, compartilhado por milhões de homens e mulheres, de criar um pensamento a partir da condição do "estrangeiro". Esta última não é simplesmente referência à dimensão escatológica da vida, mas um convite claro para viver de modo diferente neste mundo. Como crentes, sabemos que devemos nos desapegar progressivamente deste mundo, expressão da tensão em direção a um Reino que não é daqui. Há, porém, uma opção, não menos profunda, representada pela escolha de viver neste mundo, seguindo uma lógica, não de apropriação, mas de "desapropriação", isto é, de gratuidade.
Em outras palavras, a pessoa precisa ser capaz de compreender-se como estrangeira e peregrina, para poder encontrar o diferente de nós, na inteireza e complexidade da outra pessoa, sem reduzi-la aos problemas que sua presença traz. Mas também, estrangeiros e peregrinos para deixar-se acolher, entrando, na ponta dos pés, no espaço que o outro gostaria de nos abrir e oferecer. Mas o que significa, para nós hoje, recusar o conceito de "estrangeiridade" no coração da aventura humana? A possibilidade de uma sociedade sem estrangeiros, sem "estranhos" foi sonhada no horizonte da religião e da moral, e se apresenta novamente hoje num contexto de integração econômica e política planetária. Devemos nos perguntar se hoje podemos sonhar de viver com os outros sem ostracismos, mas também sem anular todas as diferenças! Trata-se de entender se a identidade cultural pode aceitar a parte da alteridade que faz da diversidade uma riqueza, e não uma ameaça.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo?
Claudio Monge - Vamos celebrar o 800º aniversário da aprovação da Regra dos Frades Pregadores (dominicanos), ordem a que eu pertenço. Meus irmãos chegaram à Turquia, na então Constantinopla, desde o início do século XIII. Muitas e variadas são as nuances de uma abordagem missionária, que desafia os séculos e que se encarna em realidades totalmente diferentes como o Império Bizantino, em vez do Otomano. Hoje, completamente liberto dos "protetorados" políticos e econômicos que há séculos nos permitiam agir e penetrar, em vastos territórios, com relativa facilidade, podemos finalmente dizer que começamos a via kenótica, que não foi somente a lei da encarnação, mas deve continuar a ser também aquela da "inculturação" (como deveriam ser as políticas sociais num mundo em movimento). Isto significa, entre outras coisas, que a missão real não é a restauração de uma ordem perdida! Ser missionários da radicalidade do anúncio cristão não significa ser os paladinos de uma ordem moral intangível, ou nostálgicos restauradores de uma hegemonia política e econômica, coberta com uma pátina cultural, mas significa testemunhar um absoluto que não é de ordem humana, mas divina. Absoluto que ainda hoje pode expressar-se na abundância, de fato incompreensível, do gesto hospitaleiro que atravessa as culturas e os séculos.■
Leia Mais
- Um Ocidente anestesiado na sua capacidade de hospitalidade. Entrevista especial com Claudio Monge publicada nas notícias do Dia de 7-2-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- Papa Francisco na Turquia, o abraço com Bartolomeu e a sombra da Erdogan. Entrevista com Claudio Monge publicada nas Notícias do Dia de 28-11-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Para Marco Dal Corso, tomada como princípio, a ideia de acolhimento ao hóspede ajuda a pensar outra comunidade global, que supera conflitos das relações econômicas, políticas e religiosas
O estado de crises em que o mundo parece mergulhado, de problemas humanitários a políticos e econômicos-sociais, pode ser resumido como “crise global de hospitalidade”. É nesse sentido que vai a perspectiva do professor e teólogo italiano Marco Dal Corso. “Trata-se de uma crise cultural e, talvez, espiritual, antes de uma crise social e política. Se isso é verdade, precisamos repensar nossas categorias fundantes, pelo menos aquelas sobre as quais construímos a chamada cultura ocidental”, explica. Desde a perspectiva teológica, acredita que “a hospitalidade como princípio pode ajudar a repensar também a própria comunidade: quando as relações econômicas não são medidas pela posse, aquelas políticas determinadas pelas fronteiras e pela pátria e as religiosas com a pretensão de deter a verdade”. Para ele, nesta lógica, a hospitalidade também “ajuda a recriar o ecumenismo cristão e, como aprendemos com a América Latina, o macroecumenismo com as outras religiões”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor usa o texto bíblico da tenda de Abraão para, a partir dele, refletir sobre a hospitalidade hoje. Assim, para Corso, a partir dessa narrativa de Gênesis, “podemos observar algumas características principais sobre a pessoa hospitaleira. Antes de tudo, manter a porta aberta. A tenda de Abraão não tem chaves para fechá-la, mas portas que abrem”. Ele ainda vai à cultura de povos originais para observar outros princípios hospitaleiros que podem inspirar a mudança do paradigma contemporâneo. É o caso de algumas tribos africanas, em que a hospitalidade “acontece em um lugar vital para todo o vilarejo quase como se quisesse lembrar, viver e dar um conteúdo experiencial ao pensamento hospitaleiro que sustenta a prática da hospitalidade: eu sou porque nós somos”. O professor ainda reflete sobre a mudança de época em que vivemos. É verdade que essa mudança gera um tempo de crises, mas que podem incitar a pensar noutra lógica de humanidade. “A crise da nossa época, como dito, é uma crise espiritual antes de ser social. As igrejas e as comunidades religiosas em geral são chamadas a dar uma resposta”, reflete.
Marco Dal Corso é teólogo, professor de religião em uma escola secundária em Verona, Itália, e professor visitante do Instituto de Estudos Ecumênicos "San Bernardino" em Veneza. Também é membro da equipe editorial de Estudos Ecumênicos e EMC Mondialità; Pazzini Editore, onde dirige a série "Frontiere" (Fronteiras, em tradução livre). Ele é o autor de vários livros, entre eles, L'ospitalità come principio ecumenico (Verucchio, Itália: Pazzini, 2008) e Per un cristianesimo altro. Le esperienze religiose amerindie (Verucchio, Itália: Pazzini, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o conceito de hospitalidade? E como entender este conceito em relação à realidade de hoje?
Marco Dal Corso - Há uma crise global de hospitalidade que solicita, antes ainda de agir, que pensemos de forma diferente, mais além e ainda mais. Trata-se de uma crise cultural e, talvez, espiritual, antes de uma crise social e política. Se isso é verdade, precisamos repensar nossas categorias fundantes, pelo menos aquelas sobre as quais construímos a chamada cultura ocidental. Na busca de um novo pensamento uma importante contribuição pode ser dada pelo pensamento bíblico, se liberado da "gaiola" helenística, assim entendida por muito tempo. Assim, podemos nos confrontar, como nos advertem os intelectuais mais sensíveis (Levinas , Derrida ...) com o paradigma sobre a identidade e seu mito, que seria a base da crise de hospitalidade que hoje vemos os efeitos e consequências.
O pensamento bíblico deselenizado vai além da identidade racional do pensamento grego, está concentrado no ser e nos chama a “tornar-se o que és”. Mas vai ainda além da identidade moderna que centraliza o eu, promovendo a autocriação do sujeito, agora autônomo e projetual, senhor da história e do seu destino. O apelo bíblico identitário não para diante da subjetividade lúdica do pós-moderno, cujo “pensamento frágil” quer contestar a crise das grandes narrativas. O bíblico é de fato um apelo à responsabilidade onde a identidade se constrói no ser para o outro. Neste sentido, a narrativa bíblica aparece como real contestação em relação ao pensamento moderno ocidental: o humano, para a bíblia, não termina na lógica do ser, mas na sua superação. Aparece como uma real contestação em relação ao pensamento moderno. Vem a ser o ser para o outro .
Hospitalidade
Enfim, a hospitalidade não é, segundo a lógica bíblica, uma exortação moral, mas uma característica fundante da crença. A hospitalidade é, em qualquer caso, um imperativo ético, não jurídico, é o que distingue a dinâmica religiosa que tende a transformar em lei o amor ao próximo daquele da fé, que coloca o amor ao próximo como critério para julgar a lei. É por isso que o mandamento bíblico para a hospitalidade é um convite e não uma obrigação. Nenhuma lei, nenhuma cultura, nenhuma teologia a satisfaz completamente; continua a ser um convite para ouvir e satisfazer e com o qual se, ao menos, confrontar. A obrigação da hospitalidade não é baseada no estatuto do crente, mas no direito do pobre. Por isto, acreditar é diferente de pertencer, e a justiça, conforme a sensibilidade judaica, tem a primazia sobre a liturgia como a ética sobre a religião.
IHU On-Line - De que forma a perspectiva da hospitalidade pode contribuir para o debate sobre o diálogo inter-religioso?
Marco Dal Corso - Enquanto a urgência do diálogo aparece de forma evidente (não somente sócio-político, em tempos de fundamentalismo globalizado, mas também e até mais na questão cultural e religiosa), ao mesmo tempo cada tradição espiritual defronte ao pluralismo cultural e religioso é chamada a reconsiderar de forma crítica os seus escritos, as suas tradições doutrinais e morais, e gozar da biodiversidade religiosa, da presença difusa do Espírito… Se as antigas verdades das religiões não mudam, o que deve mudar são as práticas sociais e culturais. Na história as religiões já modificaram, por exemplo, as suas posições sobre a escravidão, discriminação racial, a situação da mulher, a relação com a ciência, a centralização do rito e as suas formas históricas…
A urgência histórica e humanitária não pode nos deixar esquecer que estamos diante de uma mudança de paradigma. Por isto a hospitalidade não se propõe simplesmente como uma postura, mas antes de tudo como um pensamento, um paradigma diferente. Os que foram utilizados até aqui ou insistem sobre a dimensão identitária ou sobre a alteridade e a diferença, como emerge do estudo da teologia das religiões elaboradas até aqui. Trata-se de unir de outra forma identidade e alteridade.
Temos certeza de que o paradigma da hospitalidade pode responder a esta chamada do pluralismo: como uma identidade fruto da hospitalidade (“fui imaginado então existo”) é possível pensar em uma relação com o outro de tipo hospitaleira (segundo a qual o hipotético hostis-inimigo se torna hospes-hóspede). A teologia da hospitalidade (a ser quase toda escrita), não é outro capítulo da teologia das religiões onde o pluralismo é “de facto”, mas não “de iure”; se propõe então como uma reflexão que interroga o pluralismo, interpretando-o dentro da economia da salvação divina. O diálogo inter-religioso que virá deve ser “informado” a partir da teologia do pluralismo religioso cuja marca da hospitalidade se propõe como categoria fundante.
IHU On-Line - A hospitalidade pode ser entendida como um princípio ecumênico? Por quê?
Marco Dal Corso - Pensar e não somente praticar a hospitalidade comporta a adoção de uma série de “primazias”. A primeira é a eteronomia sobre a autonomia. Não significa renunciar a conquista moderna da autonomia, mas repensá-la de forma crítica. A “primazia” que auxilia na passagem do paradigma identitário (sobre o qual se constroem as políticas sociais) ao paradigma da hospitalidade, do paradigma da exclusão (como tema ideológico e cultural) ao da co-hospitalidade.
Segunda primazia é a do princípio da hospitalidade como responsabilidade (em relação ao outro) sobre a liberdade (do eu). Significa que a resposta às necessidades do outro é o caminho para encontrar a busca de sentido. A bíblia aqui diria: escolhe o bem e serás livre. Isto libera as relações de interesse e faz com que sejam possíveis como doação.
A hospitalidade entendida como princípio, indica uma terceira primazia: o da justiça sobre o amor. Mais uma vez, não porque o amor deixa de ser uma medida da vida da fé, ou somente a coerência com aquilo em que se acredita, mas porque o princípio da hospitalidade ajuda a passar de uma justiça radical interpretada como “do ut des” a uma justiça como gratuidade, assimetria, relações, como resposta radical aos problemas da injustiça estrutural e pessoal. Se levado a sério, o princípio da hospitalidade ajuda a repensar o divino: antes de ser invocado, Ele é advogado. Ao invés de distante, o divino é descoberto próximo a nós e antes de ser onipotente, Ele é descoberto como condescendente.
Repensando o humano
Mas o princípio da hospitalidade serve para repensar o humano: não mônade, nem absorvido pela totalidade, mas relação. E enfim, a hospitalidade como princípio pode ajudar a repensar também a própria comunidade: quando as relações econômicas não são medidas pela posse, aquelas políticas determinadas pelas fronteiras e pela pátria e as religiosas com a pretensão de deter a verdade. Nesta perspectiva a hospitalidade ajuda a recriar o ecumenismo cristão e, como aprendemos com a América Latina, o macroecumenismo com as outras religiões.
IHU On-Line - Quais as reflexões sobre a hospitalidade que nos podem ser indicadas pelo texto sobre a tenda de Abraão (Gênesis 18)?
Marco Dal Corso - A passagem de Gen, 18 foi interpretada como uma narrativa paradigmática da hospitalidade e não poderia ser diferente. Uma narrativa muito comentada, onde, todavia, podemos observar algumas características principais sobre a pessoa hospitaleira. Antes de tudo, manter a porta aberta. A tenda de Abraão não tem chaves para fechá-la, mas portas que abrem.
Depois, a pessoa hospitaleira, conforme o exemplo de Abraão, é a que dá as boas-vindas: consciente, isto é, que a pessoa que chega, como diz a palavra, traz o “bem” para a casa. Além disso, a pessoa hospitaleira se dá conta daquilo que o outro necessita. Ou seja, tem uma capacidade empática, que vai além da tolerância ou da indiferença: o outro “é importante para ele”.
Enfim, a pessoa hospitaleira aprende com Abraão e com a sua esposa a dar espaço para o outro e doar aquilo que tem, ensinando a despojar-se dos bens. Como Abraão, a pessoa hospitaleira sabe que estar mais próximo de Deus é salvar os homens, por isto, acolher e servir o hóspede é mais importante que acolher e servir a Deus. Em outras palavras: a justiça goza de uma primazia sobre a liturgia. Por isto, como diz o Papa Francisco, afirmar que a “Igreja é um hospital de campo” (para todos os feridos, também os estrangeiros) não é uma metáfora edificante, mas uma afirmação teológica coerente.
IHU On-Line - Podemos associar a destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis 18-20) à ideia de hostilidade ou não hospitalidade plena? E quais associações podemos fazer com o tempo atual de conflitos e não acolhimento aos estrangeiros?
Marco Dal Corso - A Bíblia, como outros códigos culturais antigos, narra em várias ocasiões a prática da hospitalidade. A história de Lot , após a de Abraão, que recebe em sua tenda dois personagens desconhecidos, é uma dessas ocasiões. A narrativa tem sido muitas vezes interpretada com o registro ético-sexual: quando a culpa dos habitantes de Sodoma seria a sua tentativa de abuso sexual em relação aos estrangeiros. Tal interpretação, no entanto, aprisiona o texto em relação a sua mensagem real, como observado pelos estudiosos bíblicos há tempos. A culpa dos sodomitas está na violação da hospitalidade e na destruição da cidade e dos seus habitantes, mais que um sinal da vontade punitiva e vingativa dos hóspedes ofendidos, propõe-se uma metáfora da morte da pessoa que não é acolhedora.
Hospedar, mais uma vez, não é um simples ato generoso, mas uma experiência geradora, tanto para quem hospeda como para quem é recebido. Negar-se a acolher, conduz à própria morte, ao fechamento, a não realização de si, conforme a Bíblia. Que, ao contrário de outras literaturas, quando narra, como neste episódio, que no centro do pedido de hospitalidade está o estrangeiro (estes são os dois personagens de que falamos) indica o estrangeiro não simplesmente como um lugar social, mas como um lugar teológico: Deus se revela no estrangeiro. Porque hospedar é sair de si mesmo, é escolher amar de forma assimétrica como se ama a Deus.
Se esta hermenêutica bíblica se sustenta, a sua mensagem chega até aos nossos dias. A não hospitalidade destes “dias ruins” antes de ser um problema dos outros, é um problema para mim: todas as comunidades que se fecham estão destinadas à "morte". E a crise da nossa época, como dito, é uma crise espiritual antes de ser social. As igrejas e as comunidades religiosas em geral são chamadas a dar uma resposta.
IHU On-Line - Na cultura dos povos indígenas, como é o conceito de hospitalidade? Quais relações são estabelecidas a partir desse contato com o outro?
Marco Dal Corso - Porque, como disse Eliade , a experiência do sagrado está diretamente ligada ao esforço do ser humano em construir um mundo que faça sentido, podemos nos dirigir aos mundos tradicionais e aos povos originários não como uma comparação exótica (quase como uma viagem no tempo e em um mundo que não existe mais), mas como uma comparação com uma outra lógica, capaz de ficar à frente dos problemas de hoje e indicar perspectivas para o futuro. Podemos aprender com eles e descobrir, por exemplo, que a hospitalidade africana não é somente um comportamento, mas é, sobretudo, um tema: que a prática da hospitalidade seja como um dote, isto é, um pensamento hospitaleiro.
Uma tradução exemplar disto poderia ser a experiência dos povos Bapunu entre Gabon e Congo Brazzaville. Estes, assim como outros povos africanos, dispõem de uma verdadeira estrutura para a hospitalidade no vilarejo. Nos referimos ao caso do Mulebi . Uma das máximas dos Bapunu, é: “Quando estás prestes a te sentar à mesa, deves olhar para a entrada do vilarejo. Talvez esteja chegando um forasteiro.” (U ji wi ji dissu o kodu dimbu). “Enquanto comes, pense no estrangeiro, que pode aparecer de um momento para o outro”.
Repensando a metafísica do humano
Enfim, a hospitalidade na África tem uma estrutura, acontece em um lugar vital para todo o vilarejo quase como se quisesse lembrar, viver e dar um conteúdo experiencial ao pensamento hospitaleiro que sustenta a prática da hospitalidade: eu sou porque nós somos. E talvez, retomando e transpondo o famoso axioma de memória cartesiana: não o “penso, logo existo”, mas “fui pensado, então existo”. A contribuição do pensamento “outro” africano aparece desde o início: repensar a metafísica ou a base do ser humano. Se isto se aplica às religiões tradicionais africanas, mesmo os povos nativos e os mundos tradicionais da América Latina podem contribuir para repensar a relação com o outro. Em pelo menos dois aspectos.
O primeiro é, por exemplo, repensar a pessoa dentro de tramas relacionais também com o meio ambiente. A visão política filosófica ocidental não tem incidido sobre a relação do ser humano com a natureza, exceto pela recente "preocupação ecológica” . A democracia ocidental, em suma, parece fazer pouco caso do ambiente onde vivem os homens. Os habitantes dos Andes, por outro lado, sabem que Pacha Mama é a noiva mística do Céu e que o Céu é fecundado pelo sol e pela chuva. É a manifestação da energia cósmica "feminina", a manifestação da função "materna" da divindade. Todos os seres vivos — plantas, animais, homens — são gerados pela Mãe Terra e por ela alimentados. Por isso, a terra pode ser utilizada somente como usufruto. O eu hospedado deve saber que é o guardião, e não o proprietário da criação, diria a Bíblia.
A segunda contribuição, olhando para o mundo tradicional na terra de Abya-Yala, é ajudar a repensar o destino comum dos bens. A sociedade globalizada atual corre o risco de "perder o mundo", porque, entre outras coisas, perdeu o sentido do bem comum. Nas festas indígenas, a instituição do mordomo, ou seja, do festeiro, refere-se ao princípio da redistribuição dos bens. Na verdade, ele tem à sua disposição um ano inteiro, onde toda a sua energia e a força de trabalho da família servem para acumular o necessário para preparar grandes quantidades de comida e bebida para ser consumida durante o dia, ou nos dias da festa. Durante o ano qualquer necessidade pessoal, mesmo que legítima, está subordinada à tarefa que a comunidade destinou ao mordomo. Este, no final do ano, terá acumulado (às vezes contraindo dívidas) tal quantidade de gêneros alimentícios (milho, farinha, carne, cocaína, álcool), tornando-se a pessoa mais “rica” do vilarejo, mas esta riqueza é passageira. Durante a festa, o mordomo gasta todas as suas provisões, e assim, o mais rico se torna o mais pobre da comunidade. Terminada a festa, outro candidato tomará seu lugar e começará a trabalhar, economizar, acumular para que a festa do próximo ano seja boa para todos. O santo patrono, por sua vez, aceita este ano de tantos sacrifícios destinados ao bem da comunidade como uma prova de amor em relação a ele e recompensa aqueles que se submetem, abençoando os seus campos e os seus animais.
Antes de ser um costume cultural interessante para os turistas, a tradição do “festeiro” lembra a sociedade ocidental sobre o significado de mundo, que está no compartilhamento e não no amealhar bens. A Bíblia diria que o eu hospitaleiro pode ser recebido e também acolher. Pode, conforme o misticismo bíblico, “ter tudo sem ter nada”. Os bens são para todos. Enfim, para um pensamento ocidental centrado no hoje e desprovido de responsabilidade em relação ao futuro, quase incapaz de pensar na “dívida intergeracional”, existe outro pensamento, falado anteriormente, ligado ao seu “papel” hospitaleiro, que tem responsabilidades em relação ao futuro. Somente desta forma creio que exista um sentido em pensar nos povos originários, suas culturas e cosmovisões.
IHU On-Line - Quais são os desafios para praticar a hospitalidade no ambiente cotidiano?
Marco Dal Corso - Mais do que desafios, eu falaria, seguindo a escola de Panikkar, em interpelações. A referência aos místicos e intelectuais como Raimon Panikkar pode nos ser útil na identificação. A experiência da hospitalidade que viveram, por exemplo, nos faz entender — como disse Massignon , definido como um “muçulmano católico” por Paulo VI — que para compreender o outro não é necessário integrá-lo, é necessário ser seu hóspede. A verdade é encontrada somente através da hospitalidade.
Da experiência do diálogo hospitaleiro somos chamados à nossa liminaridade, a habitar a terra do meio, como lembra a fascinante e dramática parábola de Henri le Saux, monge beneditino que habitou o coração da espiritualidade hindu. Aprendemos também que participar do diálogo é o mesmo que frequentar um lugar inquietante, porque somos chamados a mudar a nossa própria autocompreensão, se quisermos entender seriamente a posição do outro, como diz Panikkar.
Outra máxima hospitaleira é o testemunho de Simone Weil , capaz de atingir o mundo todo: nada está descartado, nenhuma dúvida e, sobretudo, nenhuma pessoa. Na escola de Teilhard de Chardin , no entanto, podemos aprender e tentar traduzir no nosso ambiente quotidiano e na nossa vida comum que só uma verdadeira paixão pela vida, pela matéria e pelo mundo, pode ajudar a compreender a presença de Deus em tudo. Desesperar-se no presente, então, é uma traição da mística da hospitalidade, lição admirável dada pelo grande monge que foi Thomas Merton .
Mística da hospitalidade
E, finalmente, neste esboço de interpelações que resultam da "mística da hospitalidade", onde estamos conscientes de que a vida contemplativa politiza a fé. Uma mística de olhos abertos como no diálogo e no encontro com o outro, que não pode ser neutro conforme as poesias de outro místico contemporâneo, Ernesto Cardenal . Seu compromisso político é o resultado de uma introspecção espiritual profunda. Nós seremos capazes de praticar a hospitalidade em nossas vidas diárias, se entendermos e vivermos a mística.
IHU On-Line - Como a perspectiva teológica da hospitalidade pode contribuir para reflexões sobre a crise dos migrantes?
Marco Dal Corso - Para responder a esta pergunta, gostaria de indicar o projeto de pesquisa sobre a “teologia da hospitalidade" que um grupo de pesquisadores, teólogos, pastores e laicos estão fazendo a algum tempo, coordenados por alguns professores do Instituto de Estudos Ecumênicos - ISE "San Bernardino" em Veneza. Aproveito para dizer que o projeto está aberto para todas as colaborações, também em solo brasileiro. O porquê de analisar a hospitalidade tem a ver com a pergunta anterior. Nós nos perguntamos: por que precisamos de um novo paradigma? E as nossas respostas iniciais foram:
Porque vivemos em um mundo novo
Este mundo de hoje é globalizado, interligado não somente de forma cultural, mas também religiosa, onde os conflitos não são mais determinados (somente) pelas ideologias econômicas e políticas, mas também pelas identidades reativas onde as religiões tiveram e (têm) uma colaboração significativa. É necessária uma nova autocompreensão das religiões para ajudar e favorecer a conivência entre as pessoas (a atual autocompreensão das religiões ainda é um obstáculo à convivência). Uma crença hospitaleira ajuda na convivência entre as nações.
Porque vivemos uma época de mudanças
É necessário superar as formas históricas do passado se quisermos acompanhar os novos tempos de pluralismo religioso. Na história as religiões já modificaram, mudaram, repensaram diversos temas/problemas (por exemplo, escravidão, igualdade de gênero, relação com a ciência...). Nesta “mudança de época” (muito mais que época de mudanças), deve-se ter um novo pensamento, além do que foi herdado (também teologicamente). Uma crença hospitaleira é o futuro do diálogo inter-religioso.
Porque se não mudarmos o pensamento teremos prejuízos
Mesmo tendo ultrapassado o pensamento exclusivista (“em nome de Deus” e “pela sua glória”), não superamos ainda a mania de superioridade, da pouca valorização das outras religiões, do fechamento no seu próprio modo de pensar, da incapacidade de dialogar inter-religiosamente (modalidade operacional derivada de um pensamento inclusivo). Uma crença hospitaleira, ao contrário, não quer ser privada da força espiritual das diversas tradições religiosas e culturais: as riquezas espirituais são para todos.
Porque existe uma urgência civil, política e humanitária
Um novo princípio para o dialogo inter-religioso não pode ser somente uma preocupação intraeclesiástica ou um tema interno, das religiões. A busca por um novo modo de pensar (e de viver) o diálogo inter-religioso é um tema de tipo civil, político e humanitário. A contribuição da teologia pública para a cidade a serviço do crescimento espiritual (e cultural) da humanidade. A crença hospitaleira é uma modalidade pública e política das tradições religiosas e culturais.
Estes porquês querem responder à crise não somente dos migrantes, mas a crise da sociedade em geral.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo?
Marco Dal Corso - Para concluir, me permito indicar alguns textos, cuja edição está em língua italiana, que passam pelos temas tratados aqui e que, sobretudo, testemunham a pesquisa sobre a categoria da hospitalidade, que há algum tempo envolve os meus interesses e pesquisas. O primeiro é assinado juntamente pelo amigo e teólogo Placido Sgroi , L’ospitalità come principio ecumenico (Pazzini, 2008), onde o “pensamento hospitaleiro” é interpretado como pensamento recriador também para o ecumenismo.
Em relação à hospitalidade e, sobretudo sobre a sua negação, temos dois textos: Per un cristianesimo altro: le esperienze religiose amerindie (Pazzini, 2007), onde, partindo do sul do mundo, tenta-se contar uma outra forma de vida e interpretar o cristianismo; apresento, ainda, uma outra lógica cultural e religiosa dos povos originários em Religioni Tradizionali (EMI, 2013). Sobre a pedagogia inter-religiosa temos ainda o caderno monográfico de estudos ecumênicos intitulado Per una pedagogia del dialogo interreligioso (ISE San Bernardino, 2014); e a reflexão teológica em relação às religiões, onde podemos pensar em uma verdadeira teologia da hospitalidade está no volume de Brunetto Salvarani Molte volte e in diversi modi: manuale di dialogo inter-religioso (Cittadella, 2016). Por fim, gostaria de citar que a próxima edição do texto do amigo Faustino Teixeira intitulado Per una mistica dell’ospitalità, está prevista para o início de 2017, na coletânea “Frontiere” dirigida por mim.■
Precariedade e provisoriedade são características da hospitalidade que tensionam a relação com o Outro. Para a Europa o maior desafio é colocar em prática esses preceitos, sobretudo com povos do Sul com quem o continente possui um débito, destaca Placido Sgroi
A hospitalidade pressupõe um tensionamento entre a possibilidade de um Outro, pois como a própria etimologia da palavra ensina, o termo em latim hospes (hóspede) provém de hostis (inimigo), pressupondo, em termos genéricos, o estrangeiro, o forasteiro e um potencial perigo. Para os europeus, hoje, a temática da hospitalidade os coloca diante de sua incapacidade cultural e política de serem hospitaleiros, reconhece Placido Sgroi na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
O desafio para a Europa é justamente praticar a hospitalidade: “isso significa reconhecer o débito que temos em relação aos povos do Sul do mundo que batem à nossa porta e para os quais, acolhendo-os, nada mais fazemos do que restituir aquilo que a nossa civilização euro-norte-ocidental lhes tomou, em tempos e formas diversas. Lastimavelmente, a crise de hospitalidade mostra o lado frágil da nossa civilização e corre o risco de ser um sinal de perigosa esterilidade antropológica e cultural, antes mesmo que ética.”
Placido Sgroi faz parte de um grupo na Itália que trabalha especificamente o tema da hospitalidade, junto de Marco dal Corso e Brunetto Salvarani. Leciona Filosofia e História na Universidade de Verona e Teologia Ecumênica em Veneza. Cursou bacharelado em Teologia e licenciatura em Teologia Ecumênica no Studio Teologico “San Bernardino”, em Verona. É mestre em Antropologia e Bíblia pela Università Degli Studi di Verona e doutor pela Pontifícia Universidade Antonianum em Teologia Ecumênica. É autor de Ospitalità. Padova: Edizioni Messaggero Padova, 2015. Com Marco Dal Corso escreveu L’ospitalità come principio ecumenico. Pazzini, 2008.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - A prática da hospitalidade é essencialmente um exercício de reconhecimento do Outro?Por quê?
Placido Sgroi - Porque sem o Outro simplesmente não existe hospitalidade. Como nos ensina a etimologia, o termo latim hospes (hóspede), deriva de hostis, inimigo, portanto genericamente, estrangeiro. Apenas aquele que não pertence ao meu círculo pode ser hospedado. Logo, para ser tal, o hóspede deve ser reconhecido como outro, externo, forasteiro, potencialmente perigoso, de alguma forma transcendente ao que já é meu.
IHU On-Line - Em que sentido a hospitalidade remete ao divino?
Placido Sgroi - Nas tradições mais antigas o hóspede é divino, pois pode estar escondendo em si mesmo um deus disfarçado. Contudo, deixando de lado esses aspectos mitológicos, é justamente a sua transcendência que o transforma num sinal do divino. Toda alteridade anuncia a possibilidade de um Outro, totalmente Outro. A hospitalidade faz isso de forma específica, pois, no mundo cristão, isso remete à encarnação do Verbo que se faz hospedar na carne e no mundo.
IHU On-Line - Que ideia de hospitalidade podemos apreender a partir dos relatos bíblicos? Como esse conceito vai se transformando até a atualidade?
Placido Sgroi - A narrativa bíblica estende a categoria de hospitalidade, transformando-a num sinal da condição humana. O próprio Israel é peregrino e hóspede sobre a terra, mesmo na sua terra. A hospitalidade, portanto, não anuncia apenas o divino, que se esconde no humano, mas a própria humanidade do ser humano, como precariedade, de um lado, mas também como possibilidade de sermos acolhidos, pelo outro. Para nós europeus, isso nos coloca frente à nossa atual incapacidade cultural, além de política, de sermos hospitaleiros.
IHU On-Line - O que a hospitalidade (ou a hostilidade) revela acerca da história humana?
Placido Sgroi - A hospitalidade é um símbolo da condição humana, símbolo radical, pois todos e todas somos porque fomos hospedados num ventre materno. Condição de precariedade radical que se torna condição de existência enquanto seres humanos. Dessa hospitalidade originária geram-se todas as outras que constituem a condição humana (por exemplo, somos hospedados pela linguagem que aprendemos). A história humana representa, portanto, a possibilidade de realizar essa condição originária no curso de toda uma existência, individual ou coletiva, ou, ao contrário, o seu fracasso.
IHU On-Line - Como surge e qual o papel da hospitalidade no diálogo ecumênico?
Placido Sgroi - No diálogo ecumênico a hospitalidade tem um papel ambíguo: “hospitalidade ecumênica” é um slogan eficaz para significar o desejo de acolher o outro cristão na sua identidade confessional e eclesial, sem assimilá-lo, mas ao mesmo tempo ela é ainda uma prática que encontra limites e obstáculos, basta pensar a hospitalidade eucarística; por outro lado, se a hospitalidade é para o estrangeiro, então na comunidade, na Igreja de Cristo, na qual fomos incorporados pelo batismo, não há espaço para a hospitalidade, pois cada cristão já está na sua própria casa. Claro que ainda resta a hospitalidade radical, aquela que Deus oferece na igreja, na qual todos somos hóspedes.
IHU On-Line - No que a experiência da hospitalidade pode transformar a narrativa de fé e a religiosidade daquele que acolhe e daquele que é acolhido pelo outro, aquele que professa religião distinta da minha?
Placido Sgroi - É importante fazer a ligação entre hospitalidade e narrativa, lembrando que inclusive na literatura antiga o hóspede é sempre um narrador, aquele que leva como presente a própria história. Dessa forma, por intermédio da hospitalidade dada e recebida, as narrativas entrecruzam-se, misturam-se, e geram-se novas histórias que acabam incluindo partes de outras narrativas. A hospitalidade nos ensina a perder, inclusive sob o ponto de vista religioso, a autorreferencialidade.
IHU On-Line - Ainda sobre o diálogo inter-religioso, quais os limites na relação ente hóspede e hospedeiro?
Placido Sgroi - Justamente porque a própria hospitalidade é precária, destinada a durar apenas um tempo, tenho dificuldade de ver seu limite na sua dimensão inter-religiosa. Aqui a hospitalidade parece como um provisório ter casa em uma tradição outra, que me contamina, mas não me absorve. As grandes testemunhas do diálogo religioso, como Henry Le Saux , ou Charles de Foucauld , fizeram essa experiência de precariedade, transformando a sua identidade numa identidade aberta, um apresentar-se frente ao outro, mas também, por intermédio do outro.
IHU On-Line - Quais reflexões emergem acerca da hospitalidade a partir da narrativa bíblica da Natividade, partindo da busca de José e Maria por abrigo para o nascimento do Cristo até, mais tarde, a fuga para o Egito?
Placido Sgroi - O próprio Deus se faz hospedar pela humanidade e experimenta esta hospitalidade da forma mais radical e precária possível. Na realidade é um hóspede recusado, na Natividade, e um emigrado que encontra salvação longe de seu país, com a fuga para o Egito. Um símbolo fácil até demais de relacionar com nossos tempos tão inquietos.
IHU On-Line - Em que medida a ideia de hospitalidade pode inspirar reflexões teológicas sobre gênero?
Placido Sgroi - Com muito esforço estamos elaborando uma antropologia do gênero, ainda mais uma teologia aberta ao “gênero”, que aqui na Europa, ao menos em alguns círculos, é vista como a causa de uma dissolução ainda maior dos horizontes morais da nossa sociedade. Do ponto de vista teológico, porém, continua emblemática a dupla narrativa do Gênesis que nos fala da reciprocidade da relação homem-mulher, sem a qual o próprio ser humano não poder ser representado. A reciprocidade, sob certo ponto de vista, é a forma mais exitosa de hospitalidade, pois exige que ambos sejam, ao mesmo tempo, hospedados e hospedeiros. Certamente esse é ainda e sempre um ideal, não a condição originária da humanidade, muito mais o sonho de Deus para os seres humanos.
Aliás, Gênesis 3 nos ensina como a determinação de gênero, a divisão dos papéis, a submissão da mulher ao homem, pertencem concretamente à história da humanidade, mas não constituem nem um destino marcado, nem o projeto de Deus para o ser humano. Num certo sentido o paraíso terrestre é aquilo pelo qual vale a pena lutar, muito mais que uma condição a ser vista com saudosismo.
IHU On-Line - Quais os desafios para se praticar a hospitalidade hoje no mundo?
Placido Sgroi - Para nós europeus, simplesmente, praticá-la; isso significa reconhecer o débito que temos em relação aos povos do Sul do mundo que batem à nossa porta e para os quais, acolhendo-os, nada mais fazemos do que restituir aquilo que a nossa civilização euro-norte-ocidental lhes tomou, em tempos e formas diversas. Lastimavelmente, a crise de hospitalidade mostra o lado frágil da nossa civilização e corre o risco de ser um sinal de perigosa esterilidade antropológica e cultural, antes mesmo que ética.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Placido Sgroi - Gostaria de apostar, esperando não incorrer em algum tipo de mitificação, em uma esperança na sociedade brasileira, que conheço apenas superficialmente. Evidentemente o Brasil é uma realidade repleta de contradições, mas também é um grande experimento de hospitalidade; algumas vezes, como para os africanos transladados à força para o outro lado do oceano, tratou-se de uma hospitalidade forçada, que coincidiu com uma pesada exploração. Mas o mundo brasileiro, como o vejo do Ocidente, continua a manifestar a capacidade de incluir e de se deixar contaminar por toda inclusão. Uma lição para nós europeus que temos tanta dificuldade apenas para nos incluir reciprocamente.■
Há uma fantasia de “fusão indiscernível” que tenta inserir todos os excluídos numa determinada sociedade, observa Magali Bessone. Uma proposta reversa seria pensar a inclusão através da participação, e não da cidadania
“Há excluídos ‘na’ e os excluídos ‘da’ sociedade. Ser excluído, é estar “fora do” espaço (real ou simbólico) dos incluídos”, descreve Magali Bessone, professora de Filosofia Política na Universidade de Rennes 1 na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ela, “o paradoxo da noção de exclusão é precisamente que não há espaço homogêneo pré-dado, mas que a produção da exclusão consiste em construir o espaço tal que certas pessoas são descartadas, pela invisibilização, pelo estatuto jurídico diferenciado ou pela reclusão”.
Segundo Bessone, “para não ser excluído, é necessário que o indivíduo renuncie a suas características identitárias idiossincráticas e se funda no corpo social: é preciso renunciar a sua língua, sua religião, sua cultura, seu sotaque, seus hábitos etc. Nada deverá o diferenciar de um “nativo” na fantasia dessa fusão indiferenciável de cada um dentro do todo”. Contudo, é preciso que o projeto para repensar o binômino excluídos e incluídos seja pensado desde uma perspectiva política, e não ética. “A hospitalidade repousa sobre a convicção de que pertencimento é a condição da cidadania — da participação legítima nas escolhas dos princípios de justiça que governam a sociedade. Podemos fazer um esforço e pensar ao contrário: a participação como critério prévio à cidadania.” E acrescenta: “Pensar a presença do estrangeiro através de um modelo de um acolhimento absoluto, incondicionado, do outro ‘em sua casa’, tende a retirar da crítica toda a capacidade de isso se realizar na ação ou no engajamento político efetivo.
Magali Bessone é professora titular de Filosofia Política na Universidade de Rennes 1, na França, e prepara uma tese de filosofia sobre o conceito de transparência na democracia americana, na Universidade de Nice Sophia-Antipolis, onde ela ensina na qualidade de instrutora. Publicou La Justice (Paris: Garnier-Flammarion, coleção “Corpus”, 2000), À l’origine de la République américaine: un double projet, Thomas Jefferson vs. Alexander Hamilton (Paris: Michel Houdiard Éd., 2007. Ouvrage publié avec une bourse du Centre National du Livre) e Sans distinction de race ? Une analyse critique du concept de race et de ses effets pratiques (Paris: Vrin, 2013. Ouvrage publié avec l’aide du Centre National du Livre).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os sentidos do termo “exclusão”? Como caracterizá-la?
Magali Bessone - Se observarmos a etimologia do termo, percebemos que há ao menos dois grandes sentidos contidos na noção de exclusão, o que aparece já em seus primeiros usos: “excluir” é um empréstimo do latim “excludere”, que significa ao mesmo tempo “expulsar” e “não deixar entrar”. Há, desse modo, na noção, intimamente imbricados, um aspecto ativamente negativo (expulsar) e um aspecto privativo, aparentemente mais passivo (não deixar entrar). Soma-se a esses, a partir do século XVI, principalmente no campo jurídico, um terceiro sentido: privar alguém de algo a que ela teria direito, daquilo que lhe devem. Em 1690, o dicionário de Furetière apresenta três exemplos, que ilustram perfeitamente esses três sentidos, “expulsar”, “recusar a entrada” e “privar de um direito”: “Os anjos maus foram excluídos do Paraíso. Os pecadores serão excluídos para sempre. Diz-se que um homem foi excluído de uma sucessão para dizer que ele foi deserdado”.
O que nos ensina a história semântica e conceitual da exclusão é que, em primeiro lugar, ser excluído é não fazer parte de uma esfera, real (um lugar) ou simbólica (uma comunidade a que se pertence): ser excluído é estar de fora. Em segundo lugar, há ao menos duas modalidades de caracterização de ser excluído. Na primeira, ele estava em algum lugar (ou possuía alguma coisa) do qual o expulsaram (ou da qual o privaram) — nesse sentido, a exclusão é um processo de perda de status, uma trajetória de marginalização e de desapossamento. Na segunda, por natureza, o excluído não pode nem nunca pôde reivindicar a inclusão, pois ele não possui as características que lhe permitem o acesso ao direito, à função ou ao bem — características de que os incluídos partilham. Em último lugar, porém, duas questões continuam abertas: saber quem define o status de inclusão/exclusão e os critérios (fluidos e evolutivos) de admissão na esfera; saber se a exclusão é uma estrutura, modalidade inevitável da relação social e política, ou se ela se trata de uma conjuntura, ligada a um certo modo de organização das relações sociais.
IHU On-Line - Em que medida a noção de exclusão tornou-se importante frente às questões políticas e sociais de nossa época?
Magali Bessone - A noção de exclusão tem um status duplo: trata-se de um termo técnico da literatura sociológica e política, mas se trata também de um termo do vocabulário da vida cotidiana e um leitmotiv da mídia, que, ao generalizá-lo, tornam confusa essa noção complexa. A precarização de massa e os processos de imigração produziram efeitos sociais e políticos que podem ser condensados pela noção de “exclusão”. Contudo, a própria categorização de incluídos e excluídos produz efeitos sociais que, embora não criem situações física e moralmente intoleráveis a algumas pessoas, contribuem para fixar o “dentro” e o “fora”, para reificar as condições de entrada e saída e para homogeneizar os grupos que se opõem entre si. Saúl Karsz , em L’exclusion, définir pour en finir (2000), aborda o caráter “especular” da noção de exclusão: ela opera em discurso-espelho. A noção designa os excluídos — que, por definição, são frequentemente aqueles excluídos da esfera de fala, da possibilidade de falar sobre a sua situação, de modo que o seu testemunho é pouco transmitido, ouvido, valorizado ou legitimado (eles estão em situação de injustiça epistêmica, para retomar a expressão de Miranda Fricker ). A noção emana dos incluídos: os porta-vozes das instituições e das assistências sociais, a mídia, os pesquisadores que mencionam e analisam os fenômenos de exclusão; são pessoas que se consideram e são consideradas pelos outros como incluídos. Além disso, ela produz efeitos simplificadores, ou melhor, efeitos de concorrência, falando de maneira absoluta de grupos que parecem perfeitamente constituídos — os excluídos, de um lado, e os incluídos, de outro.
A exclusão, porém, é um conceito relativo, ou seja, que define uma relação e a inscreve em uma complexa rede de relações. Se os parisienses são incluídos, os excluídos são os habitantes do interior (os “habitants des régions” ) ou os habitantes da periferia (os “franciliens” )? Se a exclusão concerne a todos é porque somos sempre excluídos de alguma coisa e sempre excluídos em relação a alguém: a noção é inesgotável e, face a sua polissemia, o único modo de se certificar de que fazemos parte dos “incluídos” é recriar permanentemente as categorias. A noção de exclusão parece incontornável, contudo é muito ambígua por tratar de fenômenos de construção de grupos a que se pertence.
IHU On-Line - Quais são os excluídos das sociedades contemporâneas?
Magali Bessone - Há excluídos “na” e excluídos “da” sociedade. Ser excluído é estar fora do espaço (real ou simbólico) dos incluídos. O paradoxo da noção é precisamente que não há espaço homogêneo pré-dado, mas que a produção da exclusão consiste em construir o espaço de modo que certas pessoas sejam de lá afastadas pela invisibilização, pelo status jurídico diferenciado ou pela reclusão. Dessas três modalidades de construção dos excluídos por afastamentos diferenciados, pode-se depreender três figuras principais (que funcionam apenas como figuras de análise e que, na realidade social, não somente compreendem ramificações, mas também se fundem): o mendigo, o estrangeiro, o louco. A primeira figura remete a um tipo de excluído definido pela ausência de domicílio. Entretanto, sabemos que no cotidiano daqueles que nomeamos na França de “SDF” (sem domicílio fixo) existem práticas de inserção e estratégias de adaptação, de integração a certas redes e circuitos, de solidariedade e de ajuda mútua — enfim, há um reaparecimento de uma forma da propriedade privada do território. A rua define a exclusão apenas se escolhemos ignorar suas leis de integração ou de inclusão diferenciada.
O estrangeiro como excluído
Segunda figura de excluídos: o estrangeiro, que está “aqui”, mas que não é “daqui”, para fazer referência à fórmula de Georg Simmel . Seja legal ou ilegal, a figura do estrangeiro (nacional, étnico ou racial) corresponde às populações dotadas de um status especial que as permite coexistir na comunidade política, mas as priva de certos direitos civis ou de certas atividades sociais. A exclusão ocorre pela construção de um status de exceção que não é transitório. Mesmo que os estrangeiros sejam “integrados”, eles são o primeiro alvo de discriminação e perseguição quando a situação do país de acolhimento se degrada.
Isolamento
A terceira figura de excluídos corresponde àquela que é produzida pelo conjunto de práticas que consistem em construir ou em deixar construir os espaços fechados — tecnicamente situados no espaço da comunidade, mas separados dela: os asilos, os campos, as prisões, os guetos etc. Essa exclusão age sobre o princípio do isolamento. A exclusão é, então, reclusão: o excluído não é expulso ou exilado do lugar comum; ele é sobretudo proibido de sair da porção particular de território que lhe foi designada.
IHU On-Line - Como a exclusão confirma o ideal de inclusão? O que realmente está em jogo nesse processo? É possível pensar o processo de “inclusão” como uma “ilusão”? Por quê?
Magali Bessone - Os excluídos não estão fora da sociedade, mas exatamente nela: se eles não estivessem no interior do espaço social, eles não estariam excluídos, mas apenas em outros lugares. Desse modo, a sua “exterioridade” é totalmente relativa e corresponde muito mais a uma situação de dominação na estruturação social e política. Os “excluídos” ocupam um lugar na comunidade, onde são os incluídos que lhes atribuem uma função econômica, política ou ideológica. Mas esse lugar é entendido a partir da garantia de que esses outros são incluídos no sentido de “dominantes”: os incluídos têm um acesso privilegiado aos recursos materiais e simbólicos e por isso são reconhecidos. Os processos de exclusão são o duplo malefício dos processos de inclusão, que tendem a assimilar todos em uma “comunidade imaginária”, corroborando para que aqueles que não estiveram presentes no momento da distribuição de normas e valores comuns estarão sempre “no entremeio” ou à margem. Os processos de inclusão concebem imaginariamente o povo enquanto totalidade social e política: baseiam-se em um conceito de povo isolado de suas condições sociológicas reais, que negligencia as classes de vulnerabilidade diferentes que o atravessam; eles mobilizam um conceito de povo a-histórico, sem considerar a construção histórica arbitrária da comunidade política em si.
Assim, no ideal de inclusão, não ser excluído do povo não se refere a ser integrado no povo, mas a ser assimilado: assimilar significa “adotar”, e nessa incorporação, nessa relação de se apossar de algo, reside uma verdadeira violência. Nós perguntamos ao outro se ele quer de fato “entrar”, renunciar à diferença que o faz ser “outro”. Para não ser excluído, é necessário que o indivíduo renuncie a suas características identitárias idiossincráticas e se funda no corpo social: é preciso renunciar a sua língua, sua religião, sua cultura, seu sotaque, seus hábitos etc. Nada deverá o diferenciar de um “nativo” na fantasia dessa fusão indiferenciável de cada um dentro do todo. Ora, a representação do corpo no qual ele quer entrar, desse “todo”, é, na verdade, definida pelos dominantes, ou seja, aqueles que já possuem a capacidade de definir e que estão em situação de interferir de maneira arbitrária na capacidade do outro de agir e de se autodefinir.
IHU On-Line - De qual ordem é o projeto ético a ser realizado a fim de superar a dialética que coloca os excluídos de um lado e os incluídos de outro?
Magali Bessone - O projeto a ser realizado não me parece ético, mas político. Na sua dimensão ética, ele poderia servir para sustentar a aceitação/ideia de que nós somos todos “outros”, não somente para os outros (mesmo para os outros mais íntimos, namorados, crianças etc.), mas também para nós mesmos. Se eu aceito que eu mesma não me conheço; que minha subjetividade é atravessada por linhas de força; que eu não sou somente para um outro, mas também para mim, parcialmente excluído de um lugar, de uma relação, de uma aspiração; que mesmo o meu “eu” não constitui uma totalidade incorporada, eu posso então aceitar me abrir ao outro como a um outro eu mesmo, atravessado por contradições e interdições. Nessa acepção, o mais íntimo (a relação consigo) é também o mais universal (a relação com qualquer outra pessoa): em um encontro particular com o outro, qualquer outro, não importando os dados empíricos de nossas situações respectivas, realizam-se sempre microrrelações de inclusão e exclusão.
Tal abordagem tem como interesse colocar em questão a desigualdade ou a assimetria das situações individuais, de revirar as certezas da inclusão como continuidade e estabilidade das condições de vida de alguns. Entretanto, essa posição ética não nos dá nenhuma chave ou indicação para agir em circunstâncias sociopolíticas que definem sempre os excluídos de maneira materialmente muito mais dramática. O projeto político difere segundo o tipo de exclusão colocado em prática. Ele serviria para colocar em prática as condições sociais para que a voz dos excluídos invisibilizados seja ouvida, ou seja, para lhes assegurar um status epistêmico igual ao de qualquer membro da comunidade política. Da mesma maneira, ele serviria para dar aos estrangeiros direitos iguais de participação nas decisões tomadas nas suas comunidades políticas em que residem. Finalmente, serviria também para abrir os espaços de reclusão de tal maneira que não fossem entendidos como lugares de não direito, de menos direito, de relegação ou de abandono pelas políticas públicas.
IHU On-Line - Diante desse quadro, quais são os desafios a considerar em relação à hospitalidade?
Magali Bessone - A hospitalidade repousa sobre a convicção de que pertencimento é a condição da cidadania — da participação legítima nas escolhas dos princípios de justiça que governam a sociedade. Podemos fazer um esforço e pensar ao contrário: a participação como critério prévio à cidadania. O tratamento da imigração pela hospitalidade traduz a tentativa de desassociar para os estrangeiros aquilo que é associado para os cidadãos: o político e a ética — o que resulta na exclusão dos estrangeiros da esfera legítima do político. A mobilização do discurso de hospitalidade tem como função incentivar um excesso de ética na prática das políticas de imigração. Contudo, se, na sua radicalidade, a exigência ética de hospitalidade tende a ir em direção à abertura incondicionada ao outro, a prática jurídico-política do tratamento de imigrações impõe a consideração de mediações.
Pensar a presença do estrangeiro através de um modelo de um acolhimento absoluto, incondicionado, do outro “em sua casa”, tende a retirar da crítica toda a capacidade de isso se realizar na ação ou no engajamento político efetivo. É preciso muito mais “deseticizar” e repolitizar o status de cidadania independentemente da questão de pertencimento territorial original, desse espaço fantasiado como “nossa casa”, propondo então uma abordagem da cidadania como engajamento político ativo, sem importar se somos “daqui” ou “de fora”.■