Para Jorge Euzébio Assumpção, “a sonegação histórica é um ato de discriminação”
De acordo com o professor da Unisinos Jorge Euzébio Assumpção, “existe no Rio Grande do Sul um posicionamento ideológico de sonegação da participação afrodescendente na formação do Estado, principalmente quando se refere ao período escravista”. A reflexão sobre o papel do negro na história do Rio Grande do Sul surge em torno do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20-11 no Brasil. O professor apresentou no IHU ideias do dia 17-11 a conferência Rompendo o silêncio: O negro na história e historiografia do Rio Grande do Sul.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele citou estatísticas de censos populacionais do século XIX para sustentar o argumento de que o Rio Grande do Sul era uma província com grande número de trabalhadores escravizados. De acordo com ele, “as grandes charqueadas, que tinham como motor de seu funcionamento a mão de obra escrava, impulsionaram a economia gaúcha do século XIX”. Segundo Jorge Euzébio, os dados “desmontam a tese da formação diferenciada”, que dá conta de uma suposta diferenciação do Rio Grande do Sul em relação a outros estados brasileiros. Para o professor, “a frase ‘nós não somos como eles’ guarda falácia que não se sustenta historicamente”.
Jorge Euzébio Assumpção possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, pós-graduação pela Faculdade Porto-Alegrense - Fapa e mestrado em História pela PUCRS. Atualmente é professor titular da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul e professor e pesquisador na Unisinos. É integrante do Neabi – Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como se deu a participação de negros na Guerra dos Farrapos ? O que foi a traição de Porongos e em qual contexto histórico esse fato ocorreu?
Jorge Euzébio Assumpção - Os africanos e seus descendentes estiveram presentes no movimento de 35, desde a tomada de Porto Alegre; ou seja, a partir de sua origem. Daí por diante, o número de afrodescendentes só aumentou, a ponto de eles se tornarem imprescindíveis no conflito e na manutenção do exército insurgente, como destacou Garibaldi : “A gente que me acompanhava era uma verdadeira chusma cosmopolita, composta de homens de todas as nações e de todas as cores. Os americanos, na maior parte, eram negros livres ou mulatos e, via de regra, os melhores e mais fiéis”. Assim o foi até a Traição de Porongos.
Sua importância pode ser comprovada também numericamente, pois, segundo o historiador Spencer Leitman , os negros chegaram a compor de 1/3 à metade do exército rebelde. Segundo o mesmo autor: “Desde que continuassem ligados à revolução que prometia liberdade quando da vitória final, os negros podiam significar bem mais do que indicam os números”, constituindo assim a espinha dorsal do movimento.
Os africanos e seus descendentes não lutavam pelos “ideais farroupilhas”, mas, sim, por sua liberdade. A maioria dos cativos incorporados às forças farroupilhas pertencia aos imperiais, que se engajaram aos republicanos levados pela promessa de serem livres ao término do conflito, sonho que jamais se realizou.
Estando os revoltosos sem chances mais de vencer, só lhes restava propor a paz, que foi aceita pelo Império de bom grado, mas não sem exigências — dentre as quais a manutenção da condição de cativos dos trabalhadores escravizados, transformados em soldados, como havia sido acordado. O governo central não aceitava a combinação feita entre farroupilhas e ex-cativos, que passou, então, a constituir empecilho para o término do conflito.
Entretanto, o embaraço foi logo resolvido, secretamente, entre as partes. Caxias , representando o Império, e Canabarro , os republicanos, acharam a saída para o impasse: os negros deveriam ser exterminados. Para a execução do plano, Canabarro fornece ao então Barão de Caxias o local onde acamparia com suas tropas, informação que é repassada ao coronel Francisco Pedro de Abreu (Moringue) , para que este possa atacar o acampamento; não sem antes, porém, os negros terem sido desarmados por ordem do general farroupilha, o que ocorreu na madrugada do dia 14/11/1844. Assim teve sua origem o episódio a que os historiadores denominaram “a traição de Porongos”.
A principal peça documental desse desprezível acontecimento histórico é a carta enviada pelo barão de Caxias a Moringue: “Ilmo. Sr. Regule suas marchas de maneira que no dia 14 às 2 horas da madrugada, possa atacar a força ao mando de Canabarro, que estará neste dia no cerro de Porongos [...]. Suas marchas devem ser o mais ocultas que possível seja, inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois posso afiançar-lhe que Canabarro e Lucas ajustaram ter suas observações sobre o lado oposto. No conflito, poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro”.
A ordem não deixa dúvidas de quem deveria morrer: os negros. É bom lembrar que os farroupilhas possuíam três acampamentos distintos e separados etnicamente — brancos, índios e negros. Entre mortos e prisioneiros, os insurgentes perderam em torno de 447 combatentes, em esmagadora maioria negros.
IHU On-Line - É possível afirmar que existe um “racismo historiográfico” na história do Rio Grande do Sul? Em que ele consiste?
Jorge Euzébio Assumpção - É possível, sim! Este racismo se dá ao modo do jeitinho brasileiro. Nos dias atuais, diferentemente do que acontecia anteriormente, não se procura adjetivar os negros, mas, sim, sonegar sua participação na formação histórica, social e econômica do Rio Grande do Sul. Podemos dar como exemplo a cidade de São Leopoldo. De uma maneira geral, sua história é contada a partir da chegada dos primeiros colonos, o que não corresponde à realidade. Antes, já existia uma história merecedora de registro. A casa do imigrante, antes de receber este nome, era chamada de “casa da feitoria”, onde estava presente atividade econômica que havia como base a mão de obra negra escravizada. Não se trata de retirar valor ao papel do imigrante, mas de dizer, a bem da verdade, que, antes de sua vinda, houve uma história que merece também ser narrada. Nem sempre o Vale do Sinos teve o atual perfil étnico.
A sonegação histórica é um ato de discriminação. Temos que redescobrir e divulgar a feitoria e a história dos afrodescendentes que ali viveram e vivem nesta região. Os negros são sujeitos históricos desse município, em que pesem as tentativas de esconder tal fato.
IHU On-Line - Qual era a importância da mão de obra escravizada para a economia do Rio Grande do Sul no século XIX?
Jorge Euzébio Assumpção - Existe no Rio Grande do Sul um posicionamento ideológico de sonegação da participação afrodescendente na formação do Estado, principalmente quando se refere ao período escravista. Ao admitir que a antiga província era sustentada pela mão-de-obra servil, bate-se de frente com o mito do gauchismo que pretende uma formação diferenciada do restante do país, a tornar o gaúcho um ser distinto dos demais brasileiros, chegando-se até, em face de tais pretensas diferenças, a criarem-se movimentos de tendências nazifascistas, propondo a separação da Região Sul do restante da nação. A frase “nós não somos como eles” guarda falácia que não se sustenta historicamente.
Analisando os censos populacionais, verifica-se que o Rio Grande do Sul sempre esteve entre as províncias que se destacaram por possuir uma grande quantidade de trabalhadores escravizados, o que desmonta a tese da formação diferenciada. Como se não bastasse sermos iguais por possuirmos quantidade significativa de cativos, a economia do Brasil meridional também dependia dos cativos negros. No século XlX, o charque era o carro-chefe das exportações da província, estando sua fabricação centralizada no polo charqueador, em Pelotas, que tinha como principal característica a utilização de trabalhadores escravizados em seu modo de produção. Tal circunstância ocasionava uma concentração de africanos e seus descendentes nesta região. Diga-se de passagem que Pelotas chegou a possuir mais de 70% de sua população com origem afrodescendente.
As grandes charqueadas, que tinham como motor de seu funcionamento a mão de obra escrava, impulsionaram a economia gaúcha do século XIX, chegando a ser responsável por 85% das exportações gaúchas do período. Portanto, para se falar de economia e prosperidade da Região Sul, tem-se que falar sobre a escravidão dos afrodescendentes, e o papel que esta representou para a região.
IHU On-Line - Recentemente, uma iniciativa de transformar o Dia da Consciência Negra em feriado foi rejeitada em Porto Alegre. Qual seria a importância dessa data fazer parte do calendário oficial da cidade?
Jorge Euzébio Assumpção - O dia 20 de novembro deveria ser feriado nacional, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos, onde é comemorado o dia de Martin Luther King Jr. , sendo celebrado na terceira segunda-feira do mês de janeiro. Em mais de 700 municípios brasileiros, o dia que celebra a morte de Zumbi é marcada como feriado. Em Porto Alegre, o mesmo não acontece devido à resistência de setores conservadores da sociedade, que arguiram a inconstitucionalidade da comemoração — da mesma forma que impediram, no passado, a construção da pista de eventos próxima ao centro da cidade, quando a associação de moradores do bairro Menino Deus se postou contra, pretextando que o carnaval iria trazer intranquilidade aos ali residentes, de classe média. Estas atitudes mostram lamentável fundo de racismo gaúcho.
Fosse marcada a data como feriado, ter-se-ia o reconhecimento do martírio pelo qual os africanos e seus descendentes passaram, vitimados pela escravidão, um dos crimes mais cruéis já cometidos na história da humanidade.
IHU On-Line - O senhor acredita que a ideia de democracia racial se aplica ao Rio Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção - Jamais! No Brasil, não existe democracia racial; o que existe é um perverso racismo não assumido, que coloca os negros na base da pirâmide social, onde os jovens negros têm mais probabilidades de serem assassinados do que os brancos, onde os negros são mais de 53% da população e somente 8% chegam aos bancos universitários. Isto é democracia racial? ■
Leia mais
- O negro no Rio Grande do Sul: uma história de omissão e esquecimento. Reportagem com Jorge Euzébio Assumpção publicada nas Notícias do dia, de 19-11-2016, no sítio do IHU.
- O racismo e a sonegação da história afrodescendente no Rio Grande do Sul. Entrevista especial com Jorge Euzébio Assumpção publicada nas Notícias do dia, de 30-05-2014. , no sítio do IHU, disponível.
Lucia Serrano Pereira e Robson de Freitas Pereira avaliam a importância de Raízes do Brasil para subsidiar a escuta psicanalítica
Raízes do Brasil é uma obra importante para a psicanálise por vários motivos, destacam os psicanalistas Lucia Serrano Pereira e Robson de Freitas Pereira em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Um deles é “porque se trata de um ensaio que busca analisar, compreender a formação da nossa condição (brasileiros), abrangendo aspectos históricos, sociológicos, literários, filosóficos e psicológicos”. O profissional que se “dispõe a escutar o sofrimento do outro tem que estar imerso em sua cultura, ou seja, estar familiarizado com as condições de produção da subjetividade de seu tempo”. Neste sentido, a obra de Sérgio Buarque de Holanda é estratégica para subsidiar a escuta. Ela “é vastíssima, e sua ambição intelectual e de análise não se resumiu a uma tentativa de construir uma identidade nacional; ele foi além disso”.
Lucia e Robson citam Antonio Candido que, no prefácio de Raízes do Brasil, “afirma que estudar o passado, longe de ser uma atitude nostálgica, é uma maneira de compreender o presente e olhar para o futuro”, pois “a investigação do passado e de seus determinantes inconscientes possibilita um reposicionamento do sujeito na vida”.
Os entrevistados afirmam que, para se ter um conceito de nação, é preciso “nos posicionarmos com relação às diversas narrativas que compõem a nossa formação”. Neste sentido, é importante compreender a afirmação “o brasileiro é cordial” que, conforme Lucia e Robson, “passou a compor o imaginário dentro e fora do Brasil”.
Lucia Serrano Pereira é psicanalista, bacharel em Psicologia e mestra e doutora em Letras - Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro da Association Lacanienne International. Robson de Freitas Pereira é psicanalista. Ambos são membros da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que Raízes do Brasil é importante para o campo da Psicologia, essencialmente para a psicanálise?
Lucia Serrano Pereira e Robson de Freitas Pereira - Raízes do Brasil é importante para a psicanálise por vários motivos, entre eles porque se trata de um ensaio que busca analisar, compreender a formação da nossa condição (brasileiros), abrangendo aspectos históricos, sociológicos, literários, filosóficos e psicológicos. Lembremo-nos de que o texto que deu origem ao livro tinha como subtítulo "ensaio de psicologia social". Isto aponta a importância do texto para a própria formação dos psicanalistas, uma vez que todo aquele que se dispõe a escutar o sofrimento do outro tem que estar imerso em sua cultura, ou seja, estar familiarizado com as condições de produção da subjetividade de seu tempo.
IHU On-Line - Como a obra de Sérgio Buarque de Holanda trabalha a ideia de identidade nacional? No que a sua obra se difere dos demais “Brasis” que vinham sendo construídos pela literatura até então?
Lucia Serrano Pereira e Robson de Freitas Pereira - A obra de Sérgio Buarque de Holanda é vastíssima, e sua ambição intelectual e de análise não se resumiu a uma tentativa de construir uma identidade nacional; ele foi além disso. No projeto de Raízes do Brasil, por exemplo, sua ideia inicial era escrever uma História da América, tamanha a diversidade e erudição de seu conhecimento. Do ponto de vista histórico-político, podemos considerar que junto com outros livros como, por exemplo, o Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre , Sérgio Buarque de Holanda faz um corte epistemológico com a produção nacional anterior. Utilizando-se das áreas de conhecimento citadas anteriormente, ele tem a preocupação de desvendar a nossa formação, mais do que constituir uma identidade. Tanto é assim que no próprio título Sérgio utiliza-se de uma metáfora — raízes. Até a década de 30 do século passado, a produção intelectual nacional ainda animava uma ideia de eugenia, ou seja, de que o brasileiro era fruto impuro de condição inferior aos seus colonizadores.
IHU On-Line - Antonio Candido , no prefácio que escreveu para Raízes do Brasil, destaca que Holanda fez movimentos que passam pela Psicologia e pela História Social para compreender a formação do Brasil. Como apreender esses movimentos na obra e qual a importância de trilhar esses caminhos para compreender a constituição de uma nação?
Lucia Serrano Pereira e Robson de Freitas Pereira - Neste famoso prefácio, Antonio Candido afirma que estudar o passado, longe de ser uma atitude nostálgica, é uma maneira de compreender o presente e olhar para o futuro. Além disso, mostra que o método utilizado em Raízes do Brasil, colocando pares antitéticos (o semeador e o ladrilhador, o aventureiro e o trabalhador, a cordialidade e a polidez...) para melhor analisar, possibilita uma dialética do esclarecimento. Ora, essas duas premissas são extremamente caras à própria psicanálise, pois desde Freud sabemos que a investigação do passado e de seus determinantes inconscientes possibilita um reposicionamento do sujeito na vida. Desta maneira, para que possamos ter um conceito de nação, teremos que nos posicionar com relação às diversas narrativas que compõem a nossa formação, bem entendido que não se trata de propor uma unificação, mas que se trata de lidar com a própria fragmentação e suas diversas formas narrativas — forma oral, escrita, documental e outros restos.
IHU On-Line - Qual sua leitura sobre o conceito de homem cordial? E ele ainda vive?
Lucia Serrano Pereira e Robson de Freitas Pereira - O homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda assumiu um protagonismo surpreendente ao longo da trajetória do livro com seus leitores. Fantasma pairando sobre o brasileiro, como se constituísse seu retrato, uma marca ou um destino compartilhado. "O brasileiro é cordial" passou a compor o imaginário dentro e fora do Brasil. Ética de fundo emotivo, buscando sempre a intimidade, antes amigo do que no exercício de função no laço social, o que chama pelo primeiro nome, faz a intimidade até com os santos, se relaciona com o outro como se dentro da família. Temos traços apontados, estes entre outros, mas isso requer o contexto do debate, pois, do contrário, o homem cordial passa a ser empurrado a uma dimensão essencialista, e não histórica — esta que é como o autor propõe.
No texto, vemos a cordialidade com muitas nuances e complexidades. Como um conceito em construção e temporário. O homem cordial vem na herança do aventureiro (português, espanhol e inglês) em que vale mais "a eminência própria do que a herdada", diferente do "polido", do trabalhador estável predominante nos demais países da Europa, que privilegiaria "a dificuldade a vencer, e não o triunfo a alcançar". Cordialidade que, de outro lado, pode também funcionar maquiando as relações de domínio e submetimento históricas que compõem nosso tecido social, em que, por exemplo, o empregado pode funcionar quase como que em regime escravo, mas é tratado como "da família". O brasileiro, o autor aponta, e ele escreve isso na década de 1930, tenta carregar para a dimensão da estrutura e das funções públicas uma ética familiar, sem conseguir fazer o corte que permitiria exercícios efetivamente diferentes; pois o Estado não é uma continuidade da família. Assim a ética dos privilégios para os seus, os protecionismos, o espírito de corpo, a corrupção do público pelo privado, tudo isto navega na complexidade das relações que incluem os traços "cordiais". E claro, os ecos estão presentes, basta acompanharmos os desdobramentos nas relações da política em nosso país.
Neste sentido, a atualidade da obra pode ser atestada, por exemplo, nos recentes acontecimentos políticos da vida brasileira; vide a votação do impedimento da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, onde os argumentos eram quase todos de ordem pessoal, familiar e religiosa. Os argumentos de estadistas, se houve, foram abafados pelo tratamento familiar da coisa pública. Da mesma forma, as antecipações ficcionais e ensaísticas de um Machado de Assis ou Nelson Rodrigues tomam atualidade quando constatamos a persistência de uma corrupção enraizada na estrutura sociocultural, funcionando independentemente dos partidos ou das ideologias. Sem falar no retorno de um desencanto com o país que parece reeditar o "complexo de viralatas" de Nelson Rodrigues, agora voltado não somente para o indivíduo, mas englobando a própria nação com expressões do tipo "este país não tem jeito mesmo".
Enfim, retomar a leitura de um clássico pode nos ajudar a compreender os impasses históricos de nossa formação. Não para canonizar o livro, ou para essencializar seus conceitos, mas para nos fornecer condições de fazer uma leitura crítica e sustentar um desejo mesmo nas condições mais paradoxais e sombrias.
Robert Wegner observa como o homem cordial segue firme e forte no Brasil, numa sociedade hierárquica e que resiste a encarar e combater as desigualdades
O cientista social Robert Wegner destaca que Sérgio Buarque de Holanda escreve Raízes do Brasil no contexto de um Brasil dos anos 30, vindo de uma sociedade baseada em três pilares: latifúndio, monocultura e escravidão. A abolição da escravidão, em 1888, faz esses pilares balançarem, mas os efeitos só são sentidos no tempo de Sérgio. É quando, segundo Wegner, tem-se a impressão de que a democracia política ou democracia social chega para ficar. Mas é só impressão, na verdade é um problema ainda não resolvido. “No Estado Novo tivemos avanço nos direitos sociais sem democracia política e sem garantia dos direitos civis. Durante o governo JK, tivemos uma sociedade democrática, com direitos civis e direitos políticos, incapaz de realizar a reforma agrária defendida pela esquerda e pelos liberais”, contextualiza o cientista, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
E, de lá para, analisa Wegner, persiste a dificuldade da sociedade brasileira em “conciliar liberdade e igualdade”. “Para Sérgio Buarque, o homem cordial não caiu do céu”, completa o professor, ao lembrar que é nesse caldo que emerge o conceito desse sujeito enraizado na hierarquização e pouco preocupado com as desigualdades.
Na perspectiva de Wegner, o preço pelo fato de o Brasil não resolver esse problema é a perpetuação do homem cordial na sociedade e na política nacional. “O caso mais recente foi o do ministro do governo, Geddel Vieira, a justificar as pressões feitas sobre o ex-ministro da Cultura Marcelo Calero”, exemplifica. É assim, segundo Wegner, que o Brasil segue como “uma sociedade hierárquica, vale dizer, cordial”.
Robert Wegner é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná, realizou seu mestrado e doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. É pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz. É professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde - COC/Fiocruz. Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, é professor do Departamento de Ciências Sociais e do Departamento de História.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - No que a leitura de Raízes do Brasil pode inspirar a pensar o Brasil de 2016?
Robert Wegner - Raízes do Brasil nunca é o mesmo livro. Em primeiro lugar, em um sentido mais concreto, poucos livros passaram por tantas mudanças. Sérgio Buarque fez diversas modificações no texto desde a primeira edição, de 1936, até a 5ª edição, de 1969. Estas mudanças e os sentidos delas geram uma série de debates entre os estudiosos da obra de Sérgio Buarque de Holanda e os estudiosos dos intérpretes do Brasil em geral. Finalmente, no ano em que completa 80 anos, graças à iniciativa de Lilia Schwarcz e Pedro Monteiro, Raízes do Brasil ganhou uma edição crítica onde aparecem todas essas mudanças.
Em segundo lugar, em sentido mais geral, iria dizer mais abstrato, Raízes do Brasil continua se modificando. Quer dizer, todos os livros mudam a partir da experiência concreta da leitura. Como os leitores mudam, os livros nunca são os mesmos. Mas acredito que vivenciamos isso com Raízes do Brasil de modo mais radical. Como ele foi escrito como um ensaio que fazia perguntas para as quais não dava respostas fechadas, seus comentários podem sempre ser articulados de novas maneiras, mais ou menos como acontece quando você balança um caleidoscópio.
IHU On-Line - Desde as perspectivas das Ciências Sociais, qual o legado de Raízes do Brasil?
Robert Wegner - Falando do ponto de vista estritamente conceitual, nenhum. Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro autor a citar a obra de Max Weber no Brasil e o primeiro a utilizar tipos ideais weberianos para pensar o Brasil, como o “patrimonialismo”. Além de autores alemães, Sérgio conhecia bem sociólogos norte-americanos. Então ele articula conceitos de todos esses autores.
Mas a verdadeira contribuição dele é menos conceitual do que a de propor o exercício de pensar o Brasil com Weber. Na tese clássica de Weber, nas suas origens, o capitalismo moderno tem uma afinidade eletiva com o protestantismo, que provocou uma revolução interior nos seus crentes. A partir da conversão, o protestante passa a fazer uma distinção entre o mundo exterior e o mundo interior, decide moldar o seu mundo interior a partir dos desígnios de deus e, a partir disso, transformar o mundo exterior a sua imagem e semelhança. A personalidade moldada a partir daí, na bigorna de deus, era a que estava apta para se submeter ao ideal de neutralidade científica acima dos sentimentos, transformar a natureza a partir da tecnologia produzida pelo homem e submeter-se a leis abstratas colocadas acima dos seus interesses.
O “homem cordial”, para Sérgio Buarque, diz respeito a nós, brasileiros e brasileiras, que não passamos por aquela revolução interior protestante. E o livro é uma reflexão sobre o que seria da nossa sociedade, que tentava seguir o modelo do capitalismo ocidental, mas que seus indivíduos não estariam aptos a fazer ciência, não tinham interesse em transformar o mundo pelo trabalho e não viam porque deveriam se submeter a leis abstratas e abrir mão das suas vontades imediatas. Que tipo de capitalismo poderia surgir a partir daí?
IHU On-Line - Em sua obra, Holanda fala de um Brasil do século XIX que estaria em franca desintegração. Como compreender essa desintegração que analisa e em que medida é possível associar ao atual momento político, econômico e social do país?
Robert Wegner - Para Sérgio Buarque, toda a sociedade brasileira, sua economia e suas instituições políticas, estava baseada no tripé latifúndio, monocultura e escravidão. No decorrer do século XIX e especialmente com a abolição da escravidão, em 1888, esta sociedade não seria mais a mesma. Sérgio Buarque escreve na década de 1930, quando, para ele, estas mudanças estavam sendo vivenciadas de modo mais definitivo. Entre 1889 e 1930, durante a primeira república, a estrutura da sociedade brasileira não se modificou tanto, mas a partir de 1930, sim.
De lá para cá, parece que temos ou democracia política ou democracia social. Por exemplo, no Estado Novo tivemos avanço nos direitos sociais sem democracia política e sem garantia dos direitos civis. Durante o governo JK tivemos uma sociedade democrática, com direitos civis e direitos políticos, incapaz de realizar a reforma agrária defendida pela esquerda e pelos liberais. Nossa dificuldade é conciliar direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. Dificuldade de conciliar liberdade e igualdade.
IHU On-Line - É possível afirmar que o homem cordial enfraquece as instituições democráticas? Por quê?
Robert Wegner - Sim. Conceitualmente, o homem cordial é aquele que não vê porque deveria se submeter a leis que valham para todos igualmente, a seguir normas burocráticas, a distinguir o bem público dos interesses privados. Não é possível que instituições democráticas funcionem desse modo.
IHU On-Line - Que homem cordial vive hoje no cenário político brasileiro?
Robert Wegner - O caso mais recente foi o do ministro do governo, Geddel Vieira , a justificar as pressões feitas sobre o ex-ministro da Cultura Marcelo Calero para que intervisse na decisão técnica do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico - IPHAN e liberasse a construção de um prédio de 30 andares perto do centro histórico de Salvador. Em primeiro lugar, é claro que Geddel argumentou que estava agindo em nome de um bem geral, em nome do desenvolvimento econômico que beneficiaria a todos, mas trata o fato de que ele seria diretamente favorecido como um mero detalhe. Mais eloquente do que as suas palavras, é a naturalidade com que as pronuncia. Em segundo lugar, ele naturaliza o fato de ter tentado modificar uma decisão técnica de um órgão do Estado.
Para além do momento político e do apoio que a grande imprensa tem dado ao governo Temer, chama a atenção para o fato de que ela não venha dando grande importância ao caso. É como se fosse esperado de um político que fizesse isso. A imprensa não abandonou o caso por causa dos desdobramentos, mas a questão em si, do uso da influência do cargo público para benefício privado, parece não ter sido suficiente, em si mesmo, para reprová-lo.
Se fosse aprofundar o caso, no que diz respeito à imprensa, teria que diferenciar, por exemplo, como a Folha de S.Paulo e O Globo têm tratado do caso.
IHU On-Line - Qual a importância de pensar na formação cultural para compreender movimentos políticos e econômicos de um país?
Robert Wegner - Este tipo de exercício tem sido muito criticado nas Ciências Sociais contemporâneas, que costuma ser chamado, pejorativamente, de “culturalismo”. Contudo, embora ache muito difícil fazer isso, considero uma tarefa fundamental, perceber como a cultura afeta a política e a economia e como estas modificam constantemente a cultura.
O perigo é tratar a cultura como algo estanque. Um dos primeiros críticos de Raízes do Brasil e do conceito de homem cordial, Dante Moreira Leite , apontava para um paradoxo: o conceito de cultura veio se gestando desde fins do século XIX e foi bem sucedido no século XX substituindo as explicações racialistas e biologizantes. Contudo, para ele, o conceito de cultura pode se tornar tão estanque quanto o antigo conceito de cultura. É preciso ficar atento para não fazer isso.
O próprio Sérgio Buarque chegou a dizer, diversas vezes, que caiu nessa armadilha. Mas podemos fazer uma leitura muito mais dinâmica do seu livro.
IHU On-Line - A partir de Raízes do Brasil, o que podemos analisar sobre as desigualdades do Brasil?
Robert Wegner - Para Sérgio Buarque, o homem cordial não caiu do céu. A explicação sociológica para sua origem era o mundo rural baseado no latifúndio, na escravidão e na monocultura, que gerou a grande família patriarcal, na qual o pai era o senhor que regia seus agregados, sua grande família, a partir dos seus interesses arraigados e das suas caprichosas vontades, a partir dos impulsos do coração. Esta era a gramática que todos, inclusive as mulheres, os filhos, escravos, homens livres aprendiam a falar. Ou seja, o que estruturava esta sociedade que dá origem à cordialidade é uma profunda desigualdade e a naturalização de hierarquias sociais.
Falar de cordialidade hoje, no mundo rural e no mundo urbano, nas classes médias, é falar na resistência à diminuição das desigualdades sociais. Não se deve reduzir a oposição aos governos do PT a isso, pois há muitos outros motivos para ser crítico aos anos Lula e Dilma: a corrupção mesmo e o modelo de desenvolvimento completamente desantenado de qualquer preocupação ambiental. Os governos do PT foram desenvolvimentistas com 50 anos de atraso. Contudo, um dos elementos que saltaram aos olhos ao observar a oposição aos governos petistas, seja nas manifestações de rua seja nas redes sociais, foi um incômodo muito grande à redução das desigualdades. Acho que isso explica um pouco o tom raivoso de uma parcela muito grande da oposição.
O Brasil é uma sociedade hierárquica, vale dizer, cordial. Sem o combate à desigualdade, que pode ser feita por outros governos e de outros modos, não é possível uma sociedade liberal e democrática.
IHU On-Line - O senhor já considerou Raízes do Brasil “Um ensaio entre o passado e o futuro” . Mas, no Brasil de hoje e iluminado pela obra, que futuro é possível vislumbrar?
Robert Wegner - Quando escrevi este ensaio sobre o ensaio, estava começando a vislumbrar a ideia que Sérgio Buarque estava escrevendo um livro dirigido às classes médias urbanas, pensando mais na dinâmica da sociedade do que na organização do Estado. É bom lembrar que, até a década de 1930, as interpretações do país eram formuladas sempre com a intenção de propor uma determinada forma de organização política. Casa Grande & Senzala , publicado por Gilberto Freyre em 1933, rompe com isso. O livro de Sérgio, três anos depois, também.
Contudo, diferentemente de Casa Grande & Senzala, Raízes do Brasil discute muito os movimentos políticos, desde o integralismo e o comunismo até o liberalismo, passando pelos católicos. No entanto, no fecho do livro, Sérgio Buarque não se define. As resenhas da época eram quase unânimes: Sérgio teria descrito magnificamente bem a psicologia social do brasileiro, como se dizia na época, mas teria falhado em apresentar uma solução política que se adequasse àquela.
Meu palpite era que a intenção de Sérgio era a inversa. Não tratar o homem cordial como algo estanque e se perguntar qual arquitetura política poderia desenhar a sua morada. Mas se dirigir às classes médias urbanas dizendo mais ou menos assim: vocês provêm do mundo rural patriarcal, que é a fonte da cordialidade. Agora, diante das rápidas transformações pelas quais está passando o Brasil, o que vocês querem fazer daquilo que o mundo patriarcal fez de vocês? Os anos 1930 traziam esta oportunidade de redefinição. Ao mesmo tempo em que a descrevia, Sérgio Buarque estava colocando a cordialidade em questão.
Mais tarde, Sérgio Buarque veio a dizer que o homem cordial era um defunto. Mas penso que o tiro de misericórdia só podia – ou só pode – ser dado por um ato político dos cidadãos. Por isso que Raízes do Brasil é um livro em aberto. Sua interpretação depende da nossa atitude no mundo da política.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Robert Wegner - A cordialidade continua boa para pensar o Brasil, mas há futuros possíveis para além dela.■
Leia Mais
- Raízes do Brasil: uma obra aberta que convida para o diálogo. Entrevista com Robert Wegner, publicada na revista IHU On-Line número 205, de 20-11-2006.
Para Paulo Gleich, Raízes do Brasil ajuda a pensar o país na atualidade e a localizar problemas e questões a serem ampliadas através de outras leituras e diálogos
O psicanalista Paulo Gleich considera que Raízes do Brasil é uma obra aberta, e isso é fundamental para a leitura do livro. “É um texto que convoca ao diálogo, mais que a propor uma versão verdadeira, definitiva. Há certamente pontos a serem colocados em dúvida em uma leitura contemporânea, como por exemplo a quase ausência da questão dos negros, mas essas faltas não podem ser tomadas como razão para descartar a obra em seu conjunto”, avalia em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Fazendo uma aproximação com o processo psicanalítico, Gleich explica que, ao “nos ocuparmos de nossas neuroses atuais, precisamos nos debruçar sobre aquilo que nos antecedeu; não apenas a infância, como diz o senso comum, mas no que se transmite inconscientemente através das gerações”. Algo parecido se verifica “com a vida de um povo: não é possível, para lidar com a situação presente, apenas tentar encontrar nela mesma as chaves de leitura para sua compreensão”. Neste sentido, Raízes tem um papel de destaque, “porque destaca alguns traços que se mantêm e repetem ao longo da história, desde nossas origens coloniais e rurais, e que, se lemos o momento atual com ajuda deles, podemos situá-lo para além do debate mais imediato que geralmente acompanhamos na imprensa e nas redes sociais”.
Em Raízes, Sérgio Buarque de Holanda destaca a influência da colonização ibérica, mas, ao tratar dos “antepassados”, repete algo verificado na própria história do Brasil: “fala-se muito pouco de nossas raízes africanas, como se sua presença fosse quase que acessória, talvez pela condição de sujeitos subjugados, instrumentalizados desde o início de sua entrada no país”.
Paulo Gleich é bacharel em Jornalismo e Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA e do Instituto APPOA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - De que forma a leitura de Raízes do Brasil pode fornecer pistas para se compreender o país nos dias de hoje?
Paulo Gleich - Acho importante primeiramente situar de onde eu leio e falo, que é como psicanalista — não sou, por exemplo, historiador, economista ou sociólogo, que certamente teriam outras chaves de leitura para essa obra. Mas faço uma leitura também como brasileiro, ou seja, nasci e cresci neste país, e isso me atravessa de várias maneiras que transcendem minha origem familiar e social mais imediata. Um ponto de confluência entre essas duas leituras — a de um analista e a de um cidadão brasileiro — está nessa ideia das raízes, no reconhecimento de que há algo que nos antecede e que, queiramos ou não, diz muito não apenas dos impasses do momento presente, mas também das formas de ler e enfrentar esses impasses. Em uma análise, para nos ocuparmos de nossas neuroses atuais, precisamos nos debruçar sobre aquilo que nos antecedeu; não apenas a infância, como diz o senso comum, mas no que se transmite inconscientemente através das gerações.
Algo parecido, embora não seja possível traçar um paralelo direto, também acontece com a vida de um povo: não é possível, para lidar com a situação presente, apenas tentar encontrar nela mesma as chaves de leitura para sua compreensão. Nesse sentido, o Brasil é um pouco como um neurótico que chega ao consultório: consegue talvez até elencar e reconhecer seus problemas, mas tem grande resistência em traçar ligações disso com o que levou a essa situação. Quer sempre olhar para o futuro, com vistas a resolver seus impasses, mas com essa ideia, que foi inclusive enunciada no discurso de posse do Temer, de que é preciso deixar o passado para trás e avançar. É uma ideia tentadora, mas infelizmente fadada ao fracasso e à repetição.
Nesse sentido, a leitura de Raízes do Brasil, uma obra que se ocupa da história da formação de nossa sociedade, pode trazer muitas pistas sobre o momento atual: permite traçar paralelos — e também diferenças — entre o que enfrentamos hoje e o que já se viveu em tempos anteriores, enriquecendo a leitura de um contexto que, se tomado isoladamente, e não em uma continuidade, acaba sendo limitado e entregue a tecnicismos e interpretações vagas. Nesse sentido, Raízes tem um grande mérito porque destaca alguns traços que se mantêm e repetem ao longo da história, desde nossas origens coloniais e rurais, e que, se lemos o momento atual com ajuda deles, podemos situá-lo para além do debate mais imediato que geralmente acompanhamos na imprensa e nas redes sociais.
IHU On-Line - Na perspectiva da psique, qual a importância da obra? Quais seus limites e avanços?
Paulo Gleich - Quando se fala em psique, geralmente se pensa em algo individual, íntimo, interno, desconectado do social. Essa ideia estava presente em muitos momentos da obra do próprio Freud , embora ele tenha feito uma abertura muito importante ao aproximar a psicologia social da individual. Lacan foi mais adiante: afirmou que o inconsciente é o social. Isso quer dizer que somos — embora tenhamos essa ideia moderna do indivíduo como uma mônada, fechado em si mesmo — determinados em grande medida pelo social, pelos discursos que o organizam. Isso é bastante evidente nos dias de hoje com um exemplo simples: as discussões políticas passaram a ocupar vários âmbitos, despertando paixões até então inexistentes, gerando conflitos familiares que até então não estavam colocados. Na época de Freud, na virada do século XIX para o XX, a grande repressão social que havia sobre a sexualidade, sobretudo das mulheres, determinava configurações e sintomas psíquicos que tinham grande expressão naqueles anos, hoje quase inexistentes.
Nesse sentido, ao tratar de traços psicológicos que conformam a psique do brasileiro, a obra avança no sentido de oferecer um distanciamento, um estranhamento com aquilo que é tão natural a ponto de não nos apercebermos. O exemplo talvez mais conhecido, e mais destacado, é o homem cordial, que fala de como se tecem em continuidade as relações familiares, sociais e institucionais no Brasil. Os limites, em termos da psique, é que esses aspectos não configuram uma identidade fechada, assim como não levam em conta os aspectos singulares de “um” brasileiro — o que seria impossível, diga-se. Também poderíamos pensar que, ao ser um livro cuja última edição é de 1967, deixa de fora toda uma série de elementos da modernidade tardia, com o avanço da globalização e da tecnologia e dos movimentos que se deram nas últimas décadas. Porém, se podemos tomar esses aspectos psicológicos em sua parcialidade, como algo que também compõe aspectos da psique, Raízes é de grande valor.
IHU On-Line - Em sua obra, Holanda faz movimentos que vão da Psicologia à História Social para tentar compreender a formação do brasileiro. Qual a importância desses dois campos para se compreender a constituição de uma ideia de nação? E como isso aparece em Raízes do Brasil?
Paulo Gleich - Acho que já falei um pouco dessas questões nas perguntas anteriores, mas talvez possa desdobrar um pouco mais. Começaria, talvez, por interrogar a ideia de nação, que tem vários matizes. Há um aspecto arbitrário, que é uma delimitação territorial e, no nosso caso, linguística. Desse ponto de vista, somos uma nação porque vivemos em um território convencionado como Brasil e falamos a mesma língua, o português brasileiro. Uma ideia mais abstrata é a que diz de uma pertença talvez menos concreta, de se reconhecer brasileiro, que é bem mais complexa. O que há em comum entre um colono de origem alemã do interior do Rio Grande do Sul com um ribeirinho da Amazônia? Que compartilha um negro que vive na periferia de uma grande cidade com um fazendeiro rico do Mato Grosso? Provavelmente muito pouco; e talvez as formas de cada um de se reconhecer brasileiro, pertencente a uma nação, sejam muito díspares. Nesse sentido, “o brasileiro” talvez seja uma abstração impossível.
O que Raízes tenta é, apesar dessas diferenças talvez intransponíveis, determinar alguns elementos que conformam traços mínimos compartilhados. Nesse sentido, o diálogo entre esses dois campos mencionados é muito rico: a História Social traz elementos que esmiúçam a composição social do país desde suas origens, enquanto a psicologia se ocupa de pinçar os traços de caráter e os ideais que se impuseram a partir dessa composição. Em Raízes, Sérgio Buarque de Holanda destaca sobretudo a influência de nossos colonizadores ibéricos, que teriam dado o tom de base sobre o qual se erigiu a polifonia tão diversa que configura essa nação. Nesse sentido, há um movimento parecido com o de um psicanalista: para conhecer melhor a si mesmo, é preciso conhecer melhor os antepassados, pais, avós etc. Raízes se ocupa bastante desses “antepassados”, traçando elementos em comum entre os ibéricos (portugueses e espanhóis), mas também as singularidades de cada uma dessas nações, e os efeitos disso na colonização da América. Há, porém, uma repetição no próprio Raízes e na nossa história: fala-se muito pouco de nossas raízes africanas, como se sua presença fosse quase que acessória, talvez pela condição de sujeitos subjugados, instrumentalizados desde o início de sua entrada no país. Ainda vivemos os efeitos dessa denegação em nossos dias, e isso certamente ainda terá efeitos no nosso porvir.
IHU On-Line - Como compreender o outro que se estabelece na relação entre os colonizadores europeus ibéricos e os povos originais? De que forma esse tipo de relação é atualizada nos dias de hoje?
Paulo Gleich - Tem uma passagem muito interessante sobre isso no livro, que talvez permita tensionar essa ideia do outro. Sérgio Buarque de Holanda traz uma descrição dos índios feita pelos colonizadores, onde são descritos como indolentes, extrativistas etc., numa suposta oposição a estes. A grande sacada do autor é que ele aproxima esses dois estranhos, ressaltando que as características denunciadas nos “selvagens” eram justamente valorizadas nos colonizadores: o máximo de resultado pelo mínimo de esforço, o uso da terra para dela extrair suas riquezas. A nobreza não residia no empenho e no trabalho, mas em viver o melhor possível fazendo o mínimo de esforço físico, considerado algo inferior. Essa ideia se aproxima muito da leitura do outro, do estranho, feita pela psicanálise: aquilo que situamos no outro é, muitas vezes, algo que nos habita, mas que hesitamos em reconhecer como próprio.
Havia, então, esse ponto em comum entre os nativos e os colonizadores, ou ao menos da leitura destes sobre aqueles. Aqueles, porém, continuaram sendo situados nessa condição de outro radicalmente diferente — embora, como o próprio livro aponta, as relações fossem muito próximas, com miscigenação étnica e linguística. Apesar de habitantes originários desta terra, essa condição não lhes era conferida — o que, 500 anos depois, segue muito parecido. Vemos isso nos atualíssimos conflitos em torno da ocupação dos territórios indígenas por parte dos latifundiários, no desrespeito à legitimidade da forma de vida das populações indígenas, assim como num certo senso comum que simultaneamente idealiza o índio (a ideia do bom selvagem em harmonia com a natureza) e o destitui de sua condição de existência como legítima, assim como ignora as reivindicações dessas populações.
IHU On-Line - O último capítulo de Raízes do Brasil é intitulado Nossa Revolução, que, seguindo na metodologia de Holanda, inspira a pensar numa revolução a partir do que se dá até aquele momento da História do Brasil. Quais os desafios para se pensar na ideia de revolução hoje, levando em conta todo esse cenário de formação cultural que constitui o eu brasileiro apresentado pelo autor?
Paulo Gleich - A ideia de revolução que o autor apresenta é muito interessante, pois se contrapõe ao que normalmente se imagina como revolução: grandes acontecimentos que marcam uma ruptura claramente localizável. A revolução da qual Raízes trata é uma revolução lenta, insidiosa, quase subterrânea, marcada por avanços e retrocessos. Pensar nesses termos a revolução brasileira, se aceitamos que ela existe, me parece muito potente, pois exige um trabalho de análise mais minucioso, detido e longitudinal.
Nesse sentido, talvez possamos colocar em questão, por exemplo, as manifestações de 2013, que tanto debate geraram e cujos efeitos estamos ainda por entender. Não se trata de negar seus efeitos, mas talvez, se pensamos com o autor, não lhes conferir a importância revolucionária que em seu momento se conferiu, como se tudo fosse ser diferente depois — e que era a esperança manifestada por muitos naquele momento. Foram explosões que talvez tenham dado notícias desse processo de revolução mais lento, que diz do embate de forças sempre presente em nossa sociedade, e que aos poucos vai avançando. De uma lógica rural e arcaica que, apesar da forte urbanização das últimas décadas, ainda está muito presente, para uma lógica mais urbana e democrática; de uma cidadania estratificada e classista para uma mais igualitária e horizontal. Não há uma ruptura, os restos de antanho ainda estão muito presentes, mas, mesmo que lentos, há deslocamentos.
IHU On-Line - Holanda destaca no livro a inabilidade do brasileiro no tratamento institucional, quase sempre resvalando para a personalização. Daí a dificuldade de lidar com o Estado. Como observa esse traço cultural?
Paulo Gleich - Temos exemplos de sobra apenas acompanhando o noticiário político. O nepotismo, por exemplo, embora mais combatido que em outros tempos, ainda segue de vento em popa; a cada tanto temos notícias de primos, cunhados, ocupando cargos públicos sem qualificação para tal, e muitas vezes sem sequer comparecer ao trabalho. O exemplo recente da demissão do ministro da Cultura Marcelo Calero , por pressões de Geddel Vieira Lima para que liberasse uma obra em área de preservação histórica por interesses pessoais, é paradigmático. A máquina pública é vista como meio de enriquecimento e obtenção de privilégios pessoais, e quando se questiona isso, diminui-se a importância do fato, como se fosse pouca coisa. Mas isso também é observável na população: a motivação para ocupar um cargo público é, na maioria das vezes, muito mais para ter a tranquilidade de salário e aposentadoria garantidos, do que por uma vocação para servir ao público. Mesmo no meio burocrático, supostamente impessoal e igual para todos, vale essa lógica: trata-se bem o funcionário, tenta-se pela via afetiva conseguir atalhos, saltar etapas, simplificar processos. A prática da sonegação de impostos, amplamente difundida entre nós, é outro exemplo claro: não apenas é socialmente aceita, como natural. Quando se é flagrado sonegando, numa aduana ou no imposto de renda, é como se o culpado fosse o Estado por ser intransigente, e não quem de fato não observa as regras em benefício próprio.
IHU On-Line - Em que medida essa personalização pode se converter em individualismo, egoísmo e prepotência, sendo capaz de impor às necessidades de Estado as minhas próprias?
Paulo Gleich - Acredito que falei um pouco disso na questão anterior, na posição que assumem os indivíduos perante o Estado. Ele é bom quando me dá o que quero, é ruim quando me impõe regras e restrições — nesse sentido, individualismo e egoísmo são traços bem patentes. O Estado é bom enquanto preserva e aumenta os privilégios, mas quando se ocupa de quem não é meu semelhante, não presta, é perdulário. Os discursos em torno do Bolsa Família são muito significativos, pela impopularidade que essa renda mínima, que tirou muitas famílias da miséria e do desamparo absoluto, tem entre as camadas mais privilegiadas da população. Por outro lado, ao desfrutarem de estudo de qualidade em universidades públicas gratuitas, ou ao viajarem ao exterior com bolsas bem mais elevadas que revertem, na maioria dos casos, apenas em benefício próprio, o papel do Estado não apenas não é questionado, como inclusive reivindicado. É o liberalismo à brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda destaca ao colocar as relações cordiais, de afeto entre os próximos, no centro do funcionamento social. As instituições acabam sendo democráticas mais na forma que de fato no seu funcionamento.
IHU On-Line - Que relação é possível se estabelecer entre essa perspectiva de recusa do institucional com o atual momento em que parece haver uma recusa à política, aos partidos e aos políticos?
Paulo Gleich - Nesse sentido, penso que os movimentos que acompanhamos no Brasil se inscrevem em um contexto mais amplo e complexo, que não diz respeito apenas à nossa situação — embora aqui sejam tingidos pelas nossas características singulares. Há fissuras importantes na democracia representativa em outros países, como acompanhamos na eleição de Trump nos Estados Unidos e no longo impasse da Espanha para compor um governo. Penso também que a recusa dos políticos sempre esteve mais ou menos presente, na ideia do senso comum de que “político não presta”, e por isso alguns candidatos que não vêm da política tradicional acabam ganhado espaço, como representantes de esperanças, talvez um pouco ingênuas, de mudança por serem “de fora” — como se sozinhos fossem capazes de mudar toda uma estrutura e lógica de funcionamento. Mas permanece aí um traço que Raízes destaca, que é o do personalismo na política: mais que ideais e programas políticos, o que move as massas são as personalidades individuais, em quem se depositam suas esperanças.
Sérgio Buarque de Holanda fala de um movimento pendular entre a política tradicional, dos detentores de sempre do poder, e a caudilhista e populista, centradas em torno de figuras individuais e carismáticas. Penso que podemos ler a tomada de poder por parte de Temer, aliado ao establishment jurídico-político-midiático, como um movimento desse pêndulo no sentido da política tradicional que, embora travestida de um discurso liberal, apenas retorna a formas mais que conhecidas de governar. Por outro lado, o caráter emocional e personalista de lidar com a política se manifesta no endosso amplo e quase irrestrito à operação Lava Jato que, operando em muitos momentos à margem do que é institucionalmente estabelecido, ganha legitimidade junto a grande parte da população por sua promessa de “limpar” a política, como se estivesse isenta de ligações com ela.
IHU On-Line - Como o senhor interpreta o conceito de homem cordial, de Holanda? E como compreender essa perspectiva cordial no Brasil de hoje?
Paulo Gleich - Esse conceito é talvez o mais lembrado de Raízes, mas também é muito frequentemente mal interpretado. Como no senso comum “cordialidade” é entendida como afabilidade, muito se questiona, frente à violência que tem marcado nossas relações no âmbito social, essa ideia do brasileiro como homem cordial. No entanto, o que define o homem cordial é justamente que ele estabelece suas relações a partir dos afetos mais que das formas — cordial vem de coração. Nesse sentido, relações que seriam mediadas por determinadas formas e rituais acabam se dando por esse viés afetivo, que pode tanto apontar na direção da afabilidade, quando há consonância, como da violência, quando há dissonância e conflito. A lógica que rege a cordialidade é uma lógica dual: amigo/inimigo, gosto/não gosto. Não há esse elemento terceiro das formas, das instituições, que fazem a mediação no encontro. Quem não entra nessa lógica mais pessoal, atendo-se à formalidade, acaba sendo visto com desconfiança, e daí o passo para se tornar um inimigo não é grande.
Assim, penso que segue sendo um conceito que faz sentido nos tempos atuais, em que aquele que não é “amigo”, que não adere a uma mesma perspectiva, é colocado do outro lado, do inimigo. A lógica da polarização segue essa lógica dual da cordialidade, tanto que os que buscam se situar em um ponto que não de um dos lados, interrogando as paixões que têm sido mobilizadas, propondo a complexificação das leituras e debates, acaba sendo visto com desconfiança, como opositor. Sérgio Buarque de Holanda, por um lado, aponta que o homem cordial estaria fadado à extinção com o avanço da urbanização e da democracia liberal; por outro lado, afirma que o Brasil legará ao mundo o “homem cordial”, como se ele sobrevivesse aos avanços em que, como bom moderno, apostava. Talvez tenha acertado mais nessa segunda ideia, de algo que não se extingue, pois temos acompanhado o avanço das relações e reações “cordiais”, emocionais, sectárias, no âmbito público em vários outros países. A cordialidade — as relações sustentadas sobretudo na via afetiva — é inerente ao humano, mas ultrapassar sua lógica binária talvez seja o desafio necessário para compor uma ideia de comum, sobre a qual nossos tempos deixam muitas dúvidas e incertezas.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Paulo Gleich - Acho importante destacar o caráter de obra aberta de Raízes do Brasil, pois ter isso em conta ao fazer sua leitura me parece fundamental. É um texto que convoca ao diálogo, mais que a propor uma versão verdadeira, definitiva. Há certamente pontos a serem colocados em dúvida em uma leitura contemporânea, como por exemplo a quase ausência da questão dos negros, mas essas faltas não podem ser tomadas como razão para descartar a obra em seu conjunto. Nesse sentido, Raízes convoca e ajuda a pensar o Brasil na atualidade, mas também a localizar problemas e questões a serem ampliadas através de outras leituras e diálogos. Em todo caso, segue sendo uma leitura fundamental para, estranhando-nos de nós mesmos, podermos nos aproximar um pouco mais de quem somos, com nossas potências e impasses.
Luís Augusto Fischer diz que o livro oferece bons palpites para se entender o Brasil, mas alerta para os riscos de o ter como mapa para ler a atual situação do país
O professor de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS Luís Augusto Fischer caracteriza o texto de Raízes do Brasil como ensaístico e de voo panorâmico. Já Sérgio Buarque de Holanda, autor da obra, é visto por Fischer como “um sujeito muito lido e muito inteligente”. Para ele, são ingredientes, essencialmente para a época, que fazem com que o livro traga “vários bons palpites sobre o nosso país”. Fischer acolhe o homem cordial como um desses “bons palpites”. Porém, alerta para os riscos de tomar a obra como salvação, capaz de fornecer todo o entendimento sobre o Brasil de hoje. “Tomar o livro como mapa para ler a situação atual é terrivelmente problemático”, sinaliza.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Fischer tece sua crítica a partir de marcos temporais. “Depois de 48 [1948, ano da primeira edição] as condições críticas são muito diversas das que ele experimentou ao conceber e escrever o livro”. E segue com questões que ou são postas de forma muito inebriadas ou sequer são referidas. “Se por um lado [a obra] ilumina um pouco o cenário, por outro tende a obscurecer todo um lado de nossa história, por exemplo o lado das lutas sociais, dos conflitos entre estado e sociedade, assim como tende a suprimir qualquer aspecto de classe, por exemplo para mostrar a distância entre elites rentistas e população trabalhadora, em especial os que não têm acesso aos mecanismos de decisão”, analisa. E completa: “há no livro ausências notáveis, que não sei como se podem explicar. Por exemplo: ele não cita, em nenhum momento, nada da obra de Euclides da Cunha”. O professor, ainda sobre a “ausência” de Cunha, se diz impressionado negativamente com “o modo como Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, não tenha se valido do registro literário”.
Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde leciona. É autor de vários livros, entre eles Dicionário de porto-alegrês (Porto Alegre: L&PM Editores), Literatura gaúcha – História, formação e atualidade (Porto Alegre: Leitura XXI) e Inteligência com dor - Nelson Rodrigues ensaísta (Porto Alegre: Arquipélago Editorial). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (Porto Alegre: L&PM Editores), de Simões Lopes Neto, e de Antônio Chimango (Caxias do Sul: Editora Belas Letras), de Amaro Juvenal.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que chaves de leitura Raízes do Brasil oferece para compreender as questões de fundo contidas nas movimentações políticas e sociais no país hoje?
Luís Augusto Fischer - Sendo um livro ensaístico, de voo panorâmico, escrito por um sujeito muito lido e muito inteligente, e ainda mais por um jovem pensador que vinha de uma experiência radicalmente contrastiva (viveu mais de um ano na Alemanha, no começo da década de 1930), é claro que o livro oferece vários bons palpites sobre o nosso país. O primeiro é a famosa tese do “homem cordial”, que seria uma marca do brasileiro — ele usa sem medo uma generalização que hoje ninguém mais aceita, num nível exigente de debate —, quer dizer, que todos nós agimos e reagimos antes pelo coração do que pela razão. Essa tese tem vários desdobramentos no interior do livro, um dos quais, sem ir mais longe, é a percepção de que no Brasil não conseguimos ter um Estado, uma organização de Estado que se reja por leis impessoais, válidas para todos, universalmente, tal como preconizou todo o Iluminismo. No processo de impeachment, por exemplo, foi possível ver como as leis são aplicadas de modo desigual conforme o alvo e conforme a conjuntura política imediata.
IHU On-Line - E para época em que foi publicado pela primeira vez, o que representou o livro?
Luís Augusto Fischer - Sem dúvida teve um grande papel, por intuições, impressões e raciocínios como esses acima mencionados, mas também por dedicar-se a pensar sobre a relação entre indivíduo e Estado, matéria que no Brasil ainda engatinhava, particularmente na República. Também deve ter agradado, acrescento na contramão, por se tratar de um texto relativamente obscuro, truncado, com passagens cifradas, muitas vezes adornadas por citações em língua estrangeira rara (alemão, por exemplo), o que sempre dá cartaz...
IHU On-Line - Quais os limites dessa obra de Holanda para compreender o Brasil?
Luís Augusto Fischer - Uma obra ensaística de 80 anos naturalmente está velha, em muitos aspectos. Livros digamos mais objetivos e menos deliberadamente interpretativos, como narrativas historiográficas, também envelhecem, mas em outro ritmo e segundo outras leis. (A ficção também, mas em uma terceira forma.) O caso de Raízes, de todo modo, não é totalmente transparente, porque, primeiro de tudo, o livro que lemos não é o de 36, e sim o de 48, muitíssimo diferente do anterior (e mesmo o de 48 ainda teve outras três pequenas revisões).
Analistas dedicados ao assunto, como Leopoldo Waizbort , demonstram que na primeira edição as posições do autor e as teses desse livro estavam em uma vizinhança agora incômoda com posições totalitárias. Por outro lado, vale a pena considerar tudo que Sérgio Buarque não sabia do Brasil do futuro pós-1936, ou pós-48: depois disso a universidade brasileira começou efetivamente a existir, a canção brasileira virou uma das artes mais relevantes do Ocidente (Bossa Nova, Tropicalismo, samba em geral etc.), saiu praticamente toda a obra de Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues , para ficar em alguns exemplos.
E mais: depois de 48 as condições críticas são muito diversas das que ele experimentou ao conceber e escrever o livro. Já a fantasia totalizante implicada duas vezes no título — não apenas “Brasil” é tomado como uma coisa obviamente unitária, como o livro se julga capaz de descrever ou apontar nada menos que suas “raízes”, sem modulação — só é concebível naquele momento, e por isso tomar o livro como mapa para ler a situação atual é terrivelmente problemático. Pensemos, sem ir mais longe, no atual debate sobre o lugar dos ameríndios, das mulheres e dos afrodescendentes na formação social do país, e pensemos no que Sérgio Buarque podia saber e pensar, por mais inteligente e lido que fosse.
IHU On-Line - O homem cordial é um dos conceitos de Holanda que mais geraram controvérsias e interpretações. Como o senhor apreende esse conceito e de que forma essa cordialidade é manifestada na sociedade brasileira?
Luís Augusto Fischer - Um pouco já falei acima: me parece que se trata de uma boa ideia, tomada em um nível aberto e amplo. (E claro que não faz sentido a leitura equivocada que pensava que “cordial” fosse sinônimo de “amistoso”, sentido absolutamente ausente do livro desde sua primeira edição. Quem diz o contrário é porque não conhece o texto.) A partir desse plano, é preciso modular e restringir o alcance do livro e dessa tese, porque, por exemplo, ela vem expressa com uma certa dose de fatalismo, típica de uma visada de época, ligada ao que se chamava de “psicologia dos povos”, como se tal coisa fosse cabível, ainda mais num país novo e numa sociedade altamente irregular e em trânsito como a brasileira.
Dito isso, a tese/impressão sobre o homem cordial como sendo uma característica brasileira tem sentido genérico, por exemplo quando se compara a experiência cotidiana trivial (turística, por exemplo) do Rio de Janeiro com a de Paris, digamos: de fato, nesse nível “o brasileiro” é mais cordial, quer dizer, mais suscetível a agir pelo coração do que pela razão e, portanto, de modo menos universalista, em comparação direta com o cidadão parisiense regular.
IHU On-Line - Ao longo de sua obra, Holanda destaca o aspecto personalista do brasileiro, pouco dado às relações institucionais e com muitas tendências a pessoalizar as relações. Quais os limites e as consequências dessa perspectiva?
Luís Augusto Fischer - Como disse, isso não pode ser lido agora como sendo uma dádiva do céu, ou do inferno, mas como um elemento da configuração histórica do país. E nessa medida a tese, se por um lado ilumina um pouco o cenário, por outro tende a obscurecer todo um lado de nossa história, por exemplo o lado das lutas sociais, dos conflitos entre estado e sociedade, assim como tende a suprimir qualquer aspecto de classe, por exemplo para mostrar a distância entre elites rentistas e população trabalhadora, em especial os que não têm acesso aos mecanismos de decisão.
Não estou com isso demonizando nem o livro, nem as elites em geral, nem estou endeusando os trabalhadores, mas me parece claro que uma coisa é ver o que as elites rentistas fazem na gestão do Estado brasileiro, nomeadamente agora com Temer , e outra é ver como agem os miseráveis que dependem de bolsa-família. Ou então, para ficar ainda mais claro, ver como agem e reagem os controles de corrupção dos grandes e dos pequenos — Odebrecht e alta política, de vários partidos, versus os bolsa-família.
IHU On-Line - Em termos de produção literária, o que representa Raízes do Brasil?
Luís Augusto Fischer - É uma peça retórica interessante, mas com aquelas restrições que apontei acima, um certo pernosticismo e uma certa obscuridade, que fazem parte do charme do livro, creio.
IHU On-Line - Como o livro é/foi recebido no Rio Grande Sul, no caldo da cultura da identidade do gaúcho?
Luís Augusto Fischer - Não tenho ideia específica, não sei de comentários de época, mas posso imaginar que ele tenha sido entendido como algo relativo àquele mundo lá de cima, do Brasil, quer dizer, do centro do país, e assim deve ter passado meio batido, sem chegar a cutucar a percepção dos intelectuais daqui de modo mais forte ou nítido.
IHU On-Line - O que o homem cordial pode suscitar em reflexões sobre a empáfia e, até certo ponto, a arrogância do gaúcho?
Luís Augusto Fischer - Só posso especular, sem ter desenvolvido nenhum estudo nesse tema. Uma das coisas interessantes do processo republicano gaúcho foi sua radicalidade política — não estou entre os que celebram tudo que aconteceu aqui, porque o autoritarismo de Júlio e Borges foi uma coisa apavorante, e eu gostaria que a democracia representativa tivesse tido mais força, ao contrário do que ocorreu e que era preconizado por Comte e seguido pelos dois líderes mencionados, que achavam o parlamento uma perda de tempo ou uma manobra liberal diversionista. Mas é certo que em um aspecto a força da lei me parece ter tido aqui mais universalidade do que no Rio, na antiga Corte, e talvez isso se deva em parte do modo específico de nosso republicanismo gaúcho. Quero dizer, em suma, que aqui talvez tenha havido mais uniformidade na aplicação da lei do que noutras partes do país, no período da chamada República Velha (nome ruim, por sinal, que deveria ser abolido em favor de Primeira República, por exemplo).
IHU On-Line - Raízes do Brasil se revela como uma obra em construção, dada a visibilidade ao processo de revisão que o autor faz ao longo dos anos. O que esses movimentos de revisão revelam sobre a obra? E, em termos metodológicos, o que essa experiência inspira?
Luís Augusto Fischer - Não sou sociólogo, logo não sei discutir as questões metodológicas que o livro implica. Mas é certo que o processo de revisão, muito variado e forte, meio que acompanhou algumas das mudanças no debate brasileiro. Por outro lado há coisas que permaneceram em todas as versões que me parecem muito desconfortáveis para um livro — não para ele em si, porque afinal o livro é o que seu autor escreveu e revisou, mas os que o levam tão a ponta de faca, ou que o tomam como oráculo (me parece haver essa atitude entre seus leitores — e aqui aproveito para um parêntese do parêntese: a obra de Sérgio Buarque é muitíssimo superior à Raízes do Brasil, livro que a rigor tem fama grande mas representa a menor parte da contribuição do autor para a historiografia, a crítica literária e o pensamento brasileiros).
Basta ver as passagens francamente antipovo, ou antipopulares, que o livro manteve ao longo do tempo, como é o caso de cap. 6 e a crítica que o autor faz ao que considera uma demagogia — a alfabetização massiva como um dos pré-requisitos para o Brasil mudar. Sim, ele diz isso, exatamente isso: ele ironiza os que acreditam que alfabetizar em massa seja em si um bem, e chega a dizer, com pouca modulação, que isso pode ser comparado a botar arma na mão de cegos.
Por outro lado, mas na mesma direção, há no livro ausências notáveis, que não sei como se podem explicar. Por exemplo: ele não cita, em nenhum momento, nada da obra de Euclides da Cunha , e nós sabemos que depois de 1902, quando saiu Os sertões , não é possível, nem é admissível, que uma pessoa culta fale do Brasil, como generalidade, sem levar em conta aquele relato e aquela acusação, que Euclides faz literalmente, uma acusação de que o Brasil litorâneo não sabe o que se passa no sertão, e que no entanto se permite destruir, como mercenário da indústria bélica ocidental. Aliás, em sentido amplo, me impressiona muito, negativamente, o modo como Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, não tenha se valido do registro literário — e ele era um importante crítico literário daquele momento, com militância forte no Rio e em São Paulo — para pensar o Brasil. Mistério.■
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