Em entrevista, o poeta João Cabral de Melo Neto destacou Antonio Carlos Secchin entre todos os professores, pesquisadores e críticos que se debruçaram sobre a obra dele: “Foi quem melhor analisou os desdobramentos daquilo que pude realizar como poeta”, disse. A intimidade com a obra cabralina não é recente, pois a tese e a dissertação de Secchin trataram da obra do poeta. Na edição comemorativa dos 60 anos de publicação de Morte e vida severina, lançada pela editora Alfaguara neste ano, ele escreveu a apresentação do poema mais conhecido do poeta pernambucano, destacando que se trata de um “autor admirável pela obstinação em rejeitar as vias fáceis e fluidas do lirismo, e pela ousadia de percorrer severamente os caminhos mais íngremes da linguagem, para neles vislumbrar e colher os sinais e as palavras que aguardam, sem pressa, o momento de nascer no corpo do poema”. A IHU On-Line publica na íntegra o texto de Secchin que está na edição comemorativa de Morte e vida severina.
Antonio Carlos Secchin é poeta, ensaísta, crítico literário e professor. Graduado em Português - Literaturas de língua portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (1973), mestre (1979) e doutor (1982) em Letras (Letras Vernáculas) pela UFRJ. Membro efetivo da Academia Brasileira de Letras e professor emérito da UFRJ. Sua tese e sua dissertação, ambas orientadas por Afrânio Coutinho, tratam da poesia de João Cabral de Melo Neto. Autor do livro João Cabral: A poesia do menos, (São Paulo: Duas Cidades, 1987. 2.a ed. rev. ampliada. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999) que ganhou os prêmios Instituto Nacional do Livro - MEC e Sílvio Romero - ABL.
Eis o texto.
Sessenta anos após sua publicação, Morte e vida severina é a mais famosa obra de João Cabral de Melo Neto. Seu sucesso foi tanto que, às vezes, parecia desagradar seu autor, como se a luz excessiva sobre esse livro relegasse todos os demais a uma injusta penumbra. Não é exagero afirmar que Morte e vida... se transformou no maior êxito editorial da poesia brasileira, já contabilizando cerca de cem edições, sem falarmos nas transposições e leituras que legou para outros veículos como a televisão, o cinema, o teatro e a história em quadrinhos.
A literatura de João Cabral formou-se no intervalo entre a escrita culta da casa-grande, de onde ele veio, e a voz da senzala, onde descobriu a fabulação do cordel, a métrica popular, o gosto pela narrativa e pela representação de um mundo de coisas concretas, ao alcance das mãos e dos olhos.
Vários poetas podem habitar o mesmo poeta. Às vezes, em pacífica e tácita convivência, outras em aberto conflito. A poesia é regida pelos signos da mudança, rejeitando o conformismo que se torna sinônimo de sua morte; por isso, não surpreende que, ao longo da existência, o artista vá configurando e reconfigurando sucessivas versões de si mesmo, sem que em nenhuma delas resida sua verdade. Durante o percurso, não é raro que se fale em “fases do poeta” e muitas vezes o autor se desconhece desse outro que ele já foi. Assim, muitos escritores renegam ou reformulam drasticamente os escritos de juventude, embora pouco se saiba dos que tenham renegado os da velhice... Ficou célebre a frase com que Murilo Mendes encerrou a apresentação de suas Poesias, de 1959, justificando as numerosas alterações efetuadas nos textos das edições originais: “Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo”.
Em João Cabral a questão é um pouco mais complexa. No caso de Murilo, a diacronia pareceu desarmar o conflito mediante a supressão de textos considerados obsoletos ou excessivamente tributários das tribos de 1922. Já no autor pernambucano temos a presença simultânea de dois padrões poéticos que geram práticas textuais bastante diferenciadas. Refiro-me às famosas Duas águas, título de volume publicado em 1956 e em cujas orelhas, não assinadas, o próprio João Cabral esclarece: “de um lado poemas para serem lidos em silêncio /.../ cujo aprofundamento temático /.../ exige mais do que leitura releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos”. O texto que inaugurava a “segunda água” era, exatamente, Morte e vida severina.
A obra trava um complexo diálogo com as fontes cultas e populares da literatura espanhola, abastecendo-se também no rico manancial do folclore nordestino. E é justamente essa reciclagem do antigo que acaba tornando-se, paradoxalmente, um dos fatores de renovação da poesia de João Cabral, que injeta doses maciças de veio crítico nesse seu aproveitamento das formas da tradição.
Morte e vida... foi classificada pelo autor como um “auto de natal pernambucano”, mas a transposição do mito de nascimento de Cristo ocorre, no poema, pela atenuação ou perda dos componentes laudatórios-religiosos do discurso cristão. Ainda assim, preservam-se ostensivos traços de convergência entre a “matriz” da narrativa cristã e a apropriação que dela fez João Cabral. Em ambas, o pai da criança se chama José, é carpinteiro e morou na cidade de Nazaré; há também os vizinhos e seus presentes, que correspondem aos dos reis magos. Nessa releitura laica da chegada do menino-Deus, a esperança, embora precária, encontra-se no território humano: será pelo universo do trabalho que o recém-nascido poderá algum dia redimir-se.
Severino empreende um périplo em direção à vida, representada, no Recife-ponto-final do percurso, pela cena do nascimento. A morte, porém, é sua renitente companheira de viagem, insinuando ao retirante a frágil condição de seu “aluguel” com a vida, na medida em que ele, desde o berço, já se encontra predestinado à morte severina: “Que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia”.
Tanto na origem da travessia, nos limites da Paraíba, quanto em todos os cenários subsequentes, Severino se defronta com a onipresença da morte, ora consumada, como no funeral de um lavrador (“Esta cova em que estás,/ com palmos medida,/ é a conta menor/ que tiraste em vida./ É de bom tamanho,/ nem largo nem fundo./ É a parte que te cabe/ neste latifúndio”), ora potencial, conforme declara uma rezadeira, para quem cantar a morte representa o ofício mais rentável da região (“As estiagens e as pragas/ fazem-nos mais prosperar./ E dão lucro imediato./ Nem é preciso esperar/ pela colheita. Recebe-se/ na hora mesma de semear”).
João Cabral utiliza a ironia como arma certeira para opor-se ao transbordamento sentimental. O leitor é atingido pela crueza dos quadros descritos sem que sejam necessários os excessos verbais comumente advindos de um paternalismo piedoso. Em uma cena passada no Recife — o diálogo entre os dois coveiros que comparam a transatlânticos os caixões dos bem-nascidos (ou bem-morridos, eu diria) — o tom beira o sarcasmo. Os coveiros equiparam as alas dos ricos a bairros de belas avenidas, pois sequer a morte elimina a ocupação seletiva do (sub)solo; ao contrário, ela duplica, mesmo sob sete palmos, as barreiras sociais erguidas acima da terra. Adiante, quando do nascimento da criança, apesar do clima festivo, ressoa a fala talvez involuntariamente cruel de um vizinho: “Minha pobreza tal é/ que não tenho presente melhor./ Trago papel de jornal/ para lhe servir de cobertor./ Cobrindo-se assim de letras/ vai um dia virar doutor”.
Em sua obra convivem, numa tensão jamais apaziguada, a primeira água de um Cabral cerebral e a segunda água de um João do chão. Num e noutro, o imperativo da construção se faz presente: nele, a poesia dita comunicativa é elaborada na tensão entre o erudito e o popular, nunca é um ingênuo veículo de formas pré-existentes. Por isso a “segunda água”, sendo popular, não é populista: populista é o discurso que se apropria indébita e acriticamente da vertente popular.
Num ensaio sobre o sertão de João Cabral, me referi à inexistência de conselhos ou encorajamentos aos deserdados do Nordeste. Em sua poesia, quase não se encontra um sertanejo “personalizado”, que possua um boi, uma esperança, um chinelo. Só encontramos o sertanejo, figura exemplar, conjugação potencial de traços localizáveis em séries de severinos. Como também é figura exemplar na literatura brasileira o poeta João Cabral de Melo Neto, autor admirável pela obstinação em rejeitar as vias fáceis e fluidas do lirismo, e pela ousadia de percorrer severamente os caminhos mais íngremes da linguagem, para neles vislumbrar e colher os sinais e as palavras que aguardam, sem pressa, o momento de nascer no corpo do poema. ■
A atualidade de Morte e vida severina em tempos de retirantes globais
Entre as efemérides deste 2016 que se encerra, os 60 anos da primeira publicação do poema Morte e vida severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), é uma das mais significativas para a literatura e - sem exagero - para a cultura brasileira. Não há como lê-lo sem ter em mente o contexto social e econômico da época em que foi escrito, entre os anos de 1954 e 1955.
No Nordeste da década de 1950, a morte era uma força precoce e devastadora. Calor, seca, desnutrição, pobreza, concentração fundiária, coronelismo – este é o mundo árido e brutal onde o personagem Severino empreende sua epopeia trágica enunciada conforme a tradição medieval pelo autor, que concebeu versos preferencialmente heptassílabos (redondilha maior), variando vocábulos regionais com outros de registro erudito.
João Cabral nasceu em Recife (Pernambuco) e passou sua infância nos engenhos de açúcar de propriedade de sua família. Neste ambiente arraigado na tradição fundiária e econômica do Nordeste, costumava ler cordéis para os empregados, impregnando-se de referências próprias do ambiente regional.
Uma encomenda
Morte e vida severina é sua obra mais conhecida, fruto de uma encomenda de Maria Clara Machado, que em 1951 fundou a escola de teatro Tablado, no Rio de Janeiro. João Cabral era diplomata e estava trabalhando desde 1950 em Londres, durante o governo de Getúlio Vargas, até que – nas palavras do próprio poeta – um idiota denunciou que ele e outros quatro diplomatas estariam implantando uma célula comunista no Itamaraty, época em que o Partido Comunista do Brasil estava na ilegalidade.
Um despacho presidencial de março de 1953 afastou os cinco do serviço diplomático, e João Cabral retornou para o Recife, a fim de trabalhar no escritório do pai e garantir o sustento da família. Retomou a carreira diplomática em 1954, depois de recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Nesse intervalo, encontrou Maria Clara, que era filha de Aníbal Machado, seu amigo. Ela pediu que o poeta escrevesse um auto de Natal para encenar com o seu grupo. Assim surgiu Morte e vida Severina – Auto de Natal pernambucano. Maria Clara, porém, leu o texto e o devolveu, alegando que não teria como montá-lo.
O editor José Olympio queria lançar a primeira coletânea do poeta. Como Morte e vida severina era grande, o autor retirou as marcações próprias da montagem teatral, e o poema integrou o livro Duas águas, lançado em 1956. Logo caiu nas graças de escritores, intelectuais e pessoas alinhadas ao pensamento de esquerda. O também poeta e diplomata Vinicius de Morais foi um que se maravilhou com a história de Severino. A princípio, João Cabral ficou contrariado, pois sua pretensão era alcançar com sua poesia os “sujeitos analfabetos que ouvem cordel na feira de Santo Amaro, no Recife” – o que não deixava de ser um tanto ingênuo, posto a elaboração formal do poema.
Dez anos depois da estreia editorial, o texto ganhou mais projeção com a montagem teatral dirigida por Silnei Siqueira. Era 1966, quando, durante um jantar, João Cabral recebeu a carta do jovem diretor solicitando autorização para montar um espetáculo em que Morte e vida seria musicado por outro estreante, o compositor e cantor Chico Buarque de Holanda. No livro A literatura como turismo [Cia. das Letras], a cineasta Inez Cabral, filha do poeta, escreveu: “Ele ficou preocupadíssimo ao saber que sua poesia ganharia música. Porém, nunca se sentiu no direito de cercear qualquer criação nascida de seu trabalho”.
Capibaribe
Em 2007, na apresentação que fez da edição de Morte e vida lançada pela editora Alfaguara, Braulio Tavares conta que, para Gilberto Freyre, havia pelo menos dois nordestes: o agrário e o pastoril; o litorâneo da cana-de-açúcar e o sertanejo das fazendas de gado. Estabelecendo uma lógica paralela, Braulio propõe que, a partir da poesia de João Cabral, também se pode identificar dois nordestes: “o seco e o úmido; o da pedra e o da lama; o que é mumificado vivo pelo sol e o que é apodrecido pelo mar”. A geografia, os traços regionais e as condições sociais dos anos 1950 são decisivas para a constituição da poesia cabralina.
João Cabral dizia que sempre escreveu poemas sobre Recife longe da cidade: no início dos anos 1940, mudou-se para o Rio de Janeiro; depois disso, em decorrência da carreira diplomática iniciada em 1945, que o levou a trabalhar em diversos países: Equador, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Paraguai, Portugal, Senegal e Suíça. É de Recife que vem a recorrência do rio Capibaribe como elemento estruturante de importantes obras de João Cabral. Braulio sugere que se pode pensar em uma trilogia a partir do rio, embora esta não seja uma elaboração original do poeta: O cão sem plumas (escrito em 1949-1950), O rio (1953) e Morte e vida severina (1954-1955).
Braulio descreve que, em O cão sem plumas, “o poeta reconstrói o rio e o ambiente que o cerca, até a chegada ao mar, pelos filtros de sucessivas metáforas e símiles que se entrecruzam: cão, espada, bandeira, maçã...”. Em O rio, o tratamento feito pelo autor é mais documental, geográfico. Conforme Braulio, o poema teria sido escrito com o auxílio da mapoteca do Itamaraty e é “repleto dos sonoros topônimos pernambucanos”. E em Morte e vida severina, que descreve a caminhada do retirante Severino que percorre a linha do rio até Recife, o mangue e o mar, a fim de escapar da seca. Na primeira obra, a voz que emana do texto é do poeta; na segunda, do próprio rio, que trata de si mesmo em primeira pessoa; em Morte e vida severina, são diversos personagens espalhados ao longo do leito que se enunciam.
Morte precede a vida
O título do poema já lança uma senha para se entender o universo descrito, ao inverter o sintagma vida e morte – a morte precede a vida – e ao adjetivar o substantivo próprio Severino. O texto é estruturado em 18 passos que contam a travessia de Severino, um retirante que foge da seca e da morte, em busca de uma vida melhor próximo ao litoral.
Outra divisão é possível, se for considerada a temática. Da parte um a nove, tem-se a marcha de Severino até Recife, costeando o Capibaribe - mesmo quando o rio quase definha em meio à aridez da paisagem. Da parte dez em diante, a história se desenrola na metrópole.
O conjunto dessas partes compõem o auto de Natal que culmina com o nascimento de uma criança. Antes da natividade, a morte é uma presença constante, pontuando as cenas. Severino busca a salvação, mas toda a sua jornada é confrontada com vidas que se encerram. As últimas seis cenas apresentam o nascimento do filho de José, mestre carpina – franca alusão à tradição cristã.
João Cabral foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1968. No fim dos anos 1980, retornou ao Brasil. Sua mulher, Stella Maria Barbosa de Oliveira, morreu em 1986. Depois disso, ele se casa com a poeta Marly de Oliveira. Durante toda a sua vida sofreu com intermitentes dores de cabeça, tanto que a aspirina era um traço distintivo em sua vida e mote para alguns textos.
Ao final da vida, estava cego e deprimido. Avesso à religiosidade – mesmo que este universo seja latente em sua obra mais conhecida, que já ganhou mais de cem edições -, conta-se que, quando morreu, em 1999, estava de mãos com Marly, orando.
Principais Obras - Poesia
Pedra do sono (1942)
Os três mal-amados (1943)
O engenheiro (1945)
Psicologia da composição (1947)
O cão sem plumas (1950)
O rio (1954)
Paisagens com figuras (1956)
Morte e vida severina (1956)
Uma faca só lâmina (1956)
Quaderna (1960)
Dois parlamentos (1961)
Serial (1961)
A educação pela pedra (1966)
Museu de tudo (1975)
A escola das facas (1980)
Auto do frade (1984)
Agrestes (1985)
Crime na Calle Relator (1987)
Sevilha Andando (1990)
Leia Mais
- A secura do sertão nos versos de João Cabral de Melo Neto. Revista IHU On-Line número 310, de 05-10-2009.
- “Meu Deus e meu conflito”. Teologia e literatura. Entrevista com Waldecy Tenório, publicada na revista IHU On-Line, número 251, de 17-03-2008.
- O filme e a poesia como dádiva e ressurreição. Entrevista com Waldecy Tenório, publicada na revista IHU On-Line, número 321, de 15-03-2010.
- João Cabral e jornalismo literário: "A literatura não é o terreno das facilidades e das liquidações". Entrevista especial com José Castello, publicada nas Notícias do Dia de 20-01-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line
Mística, estranha e essencial. Secularização e emancipação.
Edição 435 - Ano XIII - 16.12.2013
“Nada é profano para quem sabe ver”. Nas palavras de Michel de Certeau, a mística é, ao mesmo tempo, estranha e essencial. Por sua vez, Theodor Adorno, na esteira de Gershom Scholem, propunha que a mística é uma secularização que representa um avanço emancipatório. Dotada destas características, a mística volta a ser destaque nesta última edição da IHU On-Line do ano de 2013, que reúne pesquisadores, professores e professoras de diferentes áreas do conhecimento.
Niilismo e relativismo de valores. Mercadejo ético ou via da emancipação e da salvação?
Edição 354 - Ano X - 20.12.2010
O mais incômodo dos hóspedes não cessa de mover nosso chão e certezas. Quais são os valores e uma ética comum a todos os seres humanos? Que espaço sobra para a solidariedade numa sociedade marcada pelo relativismo? Enfim, mercadejo ético ou da emancipação e da salvação? São essas as questões que iluminam o debate dessa última edição da IHU On-Line do ano de 2010.
Paulo de Tarso: a sua relevância atual
Edição 286 - Ano VIII - 22.12.2008
“O crescente interesse de tantos pensadores, na atualidade, por Paulo de Tarso é, de fato, um fenômeno fascinante”, constata Hermann Häring, teólogo alemão. Ele se refere a Giorgio Agamben, Alain Badiou, Slavoj Zizek, Jean-François Lyotard, Jacob Taubes, autor do clássico A teologia política de Paulo, que se debruçaram sobre a obra paulina, pois “todos eles descobrem em Paulo uma força política atual relevante”. Desta maneira, “eles transformam Paulo – querendo ou não – numa figura central de nossa época”, completa o pesquisador dos escritos paulinos, Alain Gignac. Esse é o tema da edição da IHU On-Line que encerra o ano de 2008.
O conturbado e nebuloso ano de 2016 foi uma longa reverberação das inúmeras crises e sombras das nuvens que pairavam sobre nossas cabeças desde o segundo semestre de 2015. Por um lado, o cenário nacional teve a abertura de um processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff, prenunciando a tramitação de muitos reveses políticos pautados por uma ideia de combate à corrupção com repercussões muito além do Palácio do Planalto. Por outro, em âmbito global, as crises – das ambientais às econômicas e sociais – não davam sequer sinal de arrefecimento. Nem a mais completa – e complexa – análise seria capaz minimamente de prever ou mesmo entender os movimentos de 2016. Ao longo de todo este ano, a IHU On-Line se dedicou a esse exercício de observação e reflexão sobre os movimentos contemporâneos, tarefa difícil e sempre incompleta, sobretudo diante da movediça conjuntura nacional e internacional.
A quebra do pacto constitucional de 1988
No último dia 6/12, o presidente Michel Temer encaminhou ao Congresso Nacional a proposta de reforma da Previdência. Mas o assunto já vinha sendo debatido há muito mais tempo, desde o governo petista. Tanto nas discussões no início de 2016 como na proposta consolidada agora em dezembro, o que está em xeque são os direitos constitucionais que asseguram qualidade de vida ao trabalhador. É diante desse cenário, e também em meio à crise política e institucional do país, que a IHU On-Line discute, na edição número 480, de 7-3-2016, os rumos da seguridade social e o futuro de milhões de brasileiros e brasileiras que são tratados nos balcões de negócio do Estado com o sistema financeiro. Sob o título 'Reforma da Previdência Social e o declínio da Ordem Social Constitucional', esse número traz pesquisadores que desmistificam o debate em torno da ideia de déficit previdenciário e a necessidade de uma reforma que ponha em risco direitos constitucionais.
O tema da Previdência tem relação direta com outro assunto tratado pela IHU On-Line em 2016: a precarização do trabalho. Por ocasião do Dia do Trabalhador e Trabalhadora, o número 484, de 2-5-2016, traz o tema de capa com o título A volta da barbárie? Desemprego, terceirização, precariedade e flexibilidade dos contratos e da jornada de trabalho. O tema do trabalho é retomado anualmente. No entanto, o atual panorama do mundo do trabalho é difícil, complexo e sombrio. Pesquisadores e pesquisadoras que participam desta edição, descrevem um cenário caracterizado pela imposição do princípio do negociado sobre o legislado, aprofundamento da flexibilização do trabalho, das jornadas, dos contratos, desmonte da política de valorização do salário mínimo e ataque à Previdência Social, com o aumento do tempo de contribuição e a diminuição dos benefícios.
Nessa mesma linha, tão logo o governo de Michel Temer toma o Planalto, o próximo direito a ser “revisto” é o acesso universal à saúde pública. O Sistema Único de Saúde – SUS passa a ser questionado, e o ministro da Saúde, Ricardo Barros, por sua vez, passa a pautar o debate sobre o tamanho do SUS. O IHU entrou nessa discussão através de notícias e entrevistas publicadas na seção Notícias do Dia de seu site, e em 22-8-2016 condensou as análises no número 491 da revista IHU On-Line, sob o título SUS por um fio. De sistema público e universal de saúde a simples negócio.
A financeirização orientando o debate
Tanto o desmonte do SUS, a precarização do trabalho como os ataques à Previdência Social têm um fundo comum. Na realidade, toda a discussão se dá numa perspectiva da lógica da financeirização, que não acomete só o Brasil, mas o mundo todo, que passa a ser atravessado por essa perspectiva. Para compreender mais essa lógica financeirista e analisar seus impactos, em setembro o IHU promoveu o IV Colóquio Internacional IHU. Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica. O tema já vinha sendo tratado pelo Instituto, e como forma de preparação para o debate, o número 492, de 5-9-2016, Financeirização, Crise Sistêmica e Políticas Públicas reúne entrevistas com professores e pesquisadores do Brasil e do mundo, que analisam as políticas públicas atravessadas pela financeirização, bem como linhas de fuga para romper com essa lógica.
Judicialização da política, repressão e intolerância
2016 foi também o ano em que o Poder Judiciário ganhou notoriedade, em que a Operação Lava Jato foi destaque. Entretanto, a discussão que se coloca é de que o Judiciário acaba extrapolando suas instâncias e invadindo outras esferas, como a política. É para problematizar e refletir sobre essa perspectiva que a IHU On-Line número 494, de 3-10-2016, Judicialização da política e da vida dos cidadãos. A democracia e o Estado de Direito em tensão, retoma o tema com juristas que rompem com a ideia messiânica e salvacionista que transforma o Judiciário em um superpoder.
Na política nacional, em meio a todo esse contexto de Lava Jato e processo de impeachment de Dilma Rousseff, os discursos de golpe e não golpe, coxinhas e petralhas, vermelhos e verde-amarelos revelam um clima de intolerância política tão recrudescida que chega a flertar com o fascismo. No mundo, a recusa do outro se atualiza pelo flagelo do não acolhimento à vítima de imigração e que coloca esse outro como ameaça a si próprio. Todos esses e outros pontos foram o contexto para o debate na IHU On-Line intitulada A volta do fascismo e a intolerância como fundamento político, número 490, de 8-8-2016.
A repressão é filha dileta da intolerância. Quando os tempos são obscuros, as manifestações são o sopro de esperança utópica que surge. Além das passeatas, as ocupações de escolas por estudantes secundaristas inauguraram um outro momento de protestos no Brasil. Cortes de gastos e reforma no ensino propostos pelo governo de Michel Temer são alvo de críticas e, com o subterfúgio de manter a ordem, a força e a repressão policial entram em cena. Foram muitos os episódios de confronto entre manifestantes e polícia, do Rio Grande do Sul e do Paraná, ao Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Em meio a esse turbilhão de acontecimentos, a IHU On-Line retoma um velho – mas sempre atual – debate: a desmilitarização da polícia. Esse é o tema da revista número 497, de 14-11-2016, Desmilitarização. O Brasil precisa debater a herança da ditadura no sistema policial.
Olhar na história para iluminar o presente
Em um ano de tantas crises no Brasil, a volta ao passado pode oferecer chaves de leitura para tentar compreender o momento que vivemos. É com esse espírito que a IHU On-Line número 498, de 28-11-2016, retoma o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, neste ano em que se celebram os 80 anos da primeira publicação. Nesse número, pesquisadores retomam a obra e pensam o Brasil de hoje a partir de Raízes.
Autores inspiradores
A atualidade do pensamento de Lima Vaz foi recuperada a partir das celebrações dos 25 anos da publicação Antropologia Filosófica. Assim, o número 488, de 4-7-2016, traz como tema principal A memória do Ser em plena civilização científico-tecnológica. ‘Antropologia Filosófica’ de H.C. de Lima Vaz, 25 anos depois.
Outro autor que a revista recuperou este ano foi Georg Friedrich Hegel. O número 482, de 4-4-2016, Hegel. Lógica e Metafísica, parte do VIII Congresso Internacional da Sociedade Hegel Brasileira, intitulado Lógica e Metafísica em Hegel, realizado na Unisinos, e mobiliza pesquisadores e pesquisadoras, especialistas no estudo da obra do filósofo alemão, para debaterem o tema.
Ouse saber
Descobrir assuntos que ainda são novidade ou mesmo trazer abordagens diferentes para temas cotidianos é também um dos desafios da IHU On-Line. Dentre os temas curiosos em que nos detivemos, está a edição sobre Smart Drugs e o desbravamento das fronteiras do humano, número 487, de 13-6-2016. O número reúne pesquisadores nacionais e internacionais para refletir sobre medicamentos capazes de corrigir determinados níveis de deficiências motoras ou cognitivas, mas que também servem à busca pela superação da própria condição humana.
Moda é assunto tratado em diversas publicações. Entretanto, no número 486, de 30-5-2016, Moda. A segunda pele do self em movimento tenta observar o fenômeno desde outra perspectiva. A roupa, os adornos e demais aparatos que utilizamos para compor a aparência são a comunicação mais imediata que oferecemos a respeito do nosso modo de ser no mundo. Se pensarmos sobre os diversos processos que envolvem as etapas de concepção, produção, circulação e descarte dos produtos, a moda torna-se um espelho ainda mais profundo de nosso tempo, refletindo elementos que dão indícios de quem somos e em que tipo de sociedade vivemos.
Vigilância
O V Colóquio Internacional IHU e VII Colóquio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança teve como tema este ano a vigilância. Os debates e reflexões acerca desse mundo que apreende qualquer movimento sob inúmeros olhos atentos inspiraram a edição 495, de 17-10-2016, intitulada Cidadania vigiada. A hipertrofia do medo e os dispositivos de controle.
Saneamento básico e agroecologia
A longa tradição do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em propor reflexões acerca da relação do ser humano com o planeta é frutífera em conteúdos que debatem questões relacionadas ao (des)equilíbrio ambiental. Neste ano, o Brasil testemunhou o drama da volta de doenças vetoriais como a dengue e até o surgimento de outras como zika e chikungunya. Na edição 481, de 21-3-2016, O fracasso do saneamento básico e a emergência de doenças vetoriais, a IHU On-Line entrou no debate, buscando compreender as questões de fundo do tema.
E muito desse desequilíbrio entre ser humano e ambiente se dá pelo vértice da produção agrícola, baseada na grande propriedade e de uma ideia da necessidade de produzir alimentos em larga escala. O resultado, além de desmatamentos de áreas nativas, é uma degradação do solo, pois vai se esterilizando pelo uso contínuo de agrotóxicos e fertilizantes químicos. Com o intuito de pensar noutro tipo de agricultura, a IHU On-Line publica Agroecossistemas e a ecologia da vida do solo. Por uma outra forma de agricultura, número 485, de 16-5-2016.
Teologia pública
A IHU On-Line observa, também, os movimentos das diferentes confissões religiosas desde uma perspectiva sociológica. Além disso, busca nas reflexões, principalmente a partir do cristianismo, uma vivência mais pulsante da religião como chave de leitura para compreender a si e ao mundo. Em 2016, dentro da perspectiva teológica, a revista publicou o número 483, de 18-4-2016, intitulado Amoris Laetitia e a ‘ética do possível’. Limites e possibilidades de um documento sobre ‘a família’, hoje. A partir do documento apostólico assinado pelo Papa Francisco, o número quer inspirar a pensar sobre as configurações das famílias no nosso tempo.
Pensar a figura feminina nos dias de hoje é a questão de fundo que embasa outro número no mesmo viés da IHU On-Line, o 489, de 18-7-2016, Maria de Magdala. Apóstola dos Apóstolos. Através dessa figura feminina na vida de Cristo, pesquisadores do mundo todo refletem sobre o espaço da mulher na religião e na própria História do Cristianismo.
Outros olhares sobre a morte
Neste ano, a IHU On-Line retomou o que fazia há alguns anos: dedicar a primeira edição de novembro a reflexões sobre a morte, em função das celebrações de 2 de novembro, Dia de Finados. O debate gira em torno dos desafios de pensar a morte para além de seu caráter mais contemporâneo que é o de ser asséptica, abordando-a como uma experiência de vida. O tema reuniu entrevistas no número 496, de 30-10-2016, com o título Morte. Uma experiência cada vez mais hermética e pasteurizada.
Gauchismo
Tradicionalmente, em setembro, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove palestras que procuram pensar mais sobre a figura do gaúcho, por alusão ao 20 de setembro, conhecido como o Dia do Gaúcho. Neste ano, a IHU On-Line também fez esse movimento, com o objetivo de tentar compreender o que está por trás da construção mítica dessa figura que vive ao sul do Brasil. A edição número 493, de 19-9-2016, tem como título Gauchismo - A tradição inventada e as disputas pela memória.
Confira mais detalhes das edições de 2016 e de outros anos da IHU On-Line.