Edição 366 | 20 Junho 2011

Carlos Roberto Velho Cirne-Lima

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Márcia Junges



Hegel, uma questão de “etiqueta”
Como ex-jesuíta, vou para Universidade de Viena terminar o doutorado. Eu já estudava Hegel  nessa época, mas pouco. Naquele tempo os professores já precisavam ter um autor como o seu mais importante. Naquele período escolhi Hegel e continuei o estudado por motivos acadêmicos e intelectuais. Ser hegeliano é um problema muito mais de etiqueta do que de conteúdo. Hegel não é Hegel. Explico. Temos na filosofia moderna, a rigor, apenas duas correntes filosóficas. Uma delas vem de Descartes  e chega até Kant . São os analíticos, duramente dualistas. Corpo e espírito são duas coisas diferentes e que não se juntam, dizem. Para juntá-las é preciso usar cola, e mesmo assim, ela não “pega”. A outra corrente vem do neoplatonismo, com Plotino , passa por Espinosa , chegando a Schelling , Fichte , Hegel e Marx , e diz que o universo é uma totalidade em movimento. Tudo é um todo que é diferenciado e está em movimento de evolução. Isso significa que Deus está aqui, ou então Deus não existe.
Todos pensadores que defendem a totalidade pensam assim. Eu usava Hegel porque é um dos filósofos melhores nesse período. Mas se não tivesse Hegel, citaria sem problema algum Schelling ou Espinosa, porque são muito parecidos, vêm da mesma escola. Eles são monistas, em oposição a Descartes e Kant. Acreditam numa única substância. Esse monismo está em evolução. As diferenças é que, para um autor, a evolução é necessária, enquanto que para outro há liberdade; isso é o Espírito que se desenvolve. Então, a diferença entre materialismo e espiritualismo é nula. Quando dizemos que tudo ficou matéria, tudo ficou espírito. Só faz sentido falar em espírito e matéria quando se é dualista. No monismo, podemos ser espiritualistas como Hegel, ou materialistas como o Marx original. A rigor, se tirarmos a palavra matéria e colocarmos espírito, tudo fica igual. Dentro desse esquema, sou monista, e não dualista. Meus colegas ficaram mais e mais dualistas, inclusive Ratzinger. Hoje, os jesuítas e o catolicismo são, em sua esmagadora maioria, dualistas, e não monistas. Aprendi o dualismo na escola, mas depois, na Filosofia, fui percebendo que deveria ser monista. Não é possível ligar ambas as coisas. Como fiquei monista, deveria dizer qual o autor que estudo, então escolhi Hegel.

Professor em Viena
Quando fui para Viena em 1959, já laicizado, tornei-me professor auxiliar de agosto daquele ano até agosto de 1965. Lá, meu chefe era Erich Heintel . Nesse período, o departamento de filosofia era muito centrado no idealismo alemão. Meus colegas falavam comigo sobre Hegel e Schelling com a maior naturalidade. Eram todos monistas. Assim como tive dificuldades e diferenças com a mentalidade católica, eles passaram pela mesma situação com a mentalidade protestante, uma vez que esta também era dualista. Alguns desses pensadores que saíram de Viena até ficaram dualistas, ma non troppo, como Karl Popper . Ele sai de Viena e não sabe direito se é monista ou dualista.

Dualismo mitigado
Dei-me conta de que a Filosofia moderna só tem duas correntes: a que vem do neoplatonismo e é monista, que continuo a seguir, e a dualista, que surge em Descartes e alcança Kant. Do ponto de vista prático, a esmagadora maioria das pessoas continua dualista. Quando dou aulas, as pessoas se confundem e não sabem do que estou falando. Aqueles que professam a religião católica ou luterana têm uma visão dualista e estranham o que falo. Isso é usual também na Alemanha em outras épocas. Só não tem esse sentimento de estranhamento quem é materialista ou idealista. O materialista convicto ficará mais de acordo comigo do que com um dualista tomista. Nos últimos 20 anos, com o aggiornamento que houve, o que aconteceu é que a Igreja Católica tentou se reestruturar com o monismo. Isso é fruto do trabalho de Rahner, que vai para o Concílio fazer a unidade da Igreja. O conceito de Deus e Igreja que Rahner traz dessa perspectiva era não de um monismo duro. Deus estaria lá, mas como totalidade, e Deus não estava transcendente. Foi introduzida a ideia de que imanência e transcendência são iguais, ou seja, crescendo uma, cresce a outra. Elas não seriam excludentes. Essa é a ideia de Rahner e De Lubac , por exemplo. A Igreja Católica naquele período pré-Concílio, e inclusive hoje, admite que deve ser modernizada, e o Deus modernizado em que transcendência e imanência coexistem é postulado. Então, existem dois tipos de católicos: aqueles que dizem que transcendência e imanência são inversamente proporcionais remontam a Ratzinger, e aqueles que dizem que crescendo uma, cresce a outra, sendo diretamente proporcionais, são o grupo moderno. É esse grupo que tentou fazer o Concílio. Já no princípio dos trabalhos esse embate produziu a cisão, e Ratzinger mudou de ideia, levando a igreja para esse lado. Durante o Concílio, esse conceito de Rahner foi derrotado e Ratzinger fica cardeal.
Rahner não consegue voltar à sua cátedra em Teologia. Morreu sem emprego, sem reconhecimento e triste. Ele é proibido de voltar a Innsbruck, onde era professor titular vitalício. Ratzinger e outros católicos transcendentalistas impedem-no de fazer isso. Ele é acolhido por Johann Baptist Metz , em Münster.

Ratzinger como papa
O quem vem pela frente com Ratzinger, na verdade “já veio”: ele é “águas passadas”. Ele apenas é papa agora. Quando começa a defender que imanência e transcendência são inversamente proporcionais, era jovem professor, depois bispo, cardeal e então papa. Essa mentalidade entrou no Concílio e teve preponderância. O Deus imanente era Deus, ma non troppo. A rigor essa discussão começa em Santo Agostinho  e vem através da história. Tudo que está acontecendo na igreja agora é reflexo do que houve no Concílio Vaticano II. O problema não está resolvido dentro da instituição, mas para mim já está solucionado. Se hoje Ratzinger e eu debatêssemos novamente, continuaríamos discordando, mas hoje com ainda mais força porque ele não tem mais motivos para ter precaução, assim como eu. Na nossa idade, podemos dizer com mais franqueza o que antes recheávamos com sutilezas. Ratzinger está levando a Igreja à beira da morte. Se o seguinte pontífice continuar nesse caminho, a Igreja irá diminuir a tal ponto que irá minguar por falta de conteúdo. É minha honesta opinião.

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