Edição 366 | 20 Junho 2011

Carlos Roberto Velho Cirne-Lima

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Márcia Junges



História da Filosofia
O motivo pelo qual no Brasil se faz história da filosofia, e não Filosofia, é bem simples. Isso iniciou na USP, cuja opção política foi levada a cabo por Paulo Arantes . Cada um tem sua opinião particular, mas em termos de currículo, o que vale é a história da filosofia. Há pouca gente com um sistema próprio no Brasil, e que não segue a linha da USP. É o meu caso, que sou fruto da filosofia do Pullach Bei München, Innsbruck e Viena. Mas a filosofia da USP, que se espalhou por todo o Brasil via MEC, é aquela da história da filosofia.

Casamento e absolvição das “heresias”
Depois desse período em Viena, volto para o Brasil e me caso com Maria Tomaselli  em novembro de 1965. Um mês antes da viagem para o Brasil, nos casamos no civil. Então, embarcamos em uma viagem de navio para cá. Casamos no religioso, numa cerimônia celebrada por D. Vicente Scherer . Como estávamos excomungados, tivemos que ser absolvidos, primeiramente. Recebemos uma licença especial para casar na capela de Dom Vicente, além da absolvição de todas as “heresias”. Apenas a família pôde assistir à cerimônia.
Maria e eu nos conhecemos quando eu era professor em Viena. Ela morava em Innsbruck, sua cidade natal, onde estudou Filosofia com professores católicos, mas muito fracos enquanto filósofos, como ela própria faz questão de salientar. Lá Maria fez seu primeiro semestre na Filosofia. Como todos falavam da boa filosofia de Viena, ela decidiu assistir aulas com Heintel, o professor mais importante da época. Nesse contexto nos conhecemos. Ocorre que Maria voltou a Innsbruck e seguiu lá o curso de Filosofia. Um ano depois, começamos a namorar “de longe”. Seu pai disse-nos que só poderíamos casar depois que ela concluísse seu doutorado em Filosofia, o que aconteceu de 1962 a 1965. Quando concluiu o curso em Innsbruck é que casamos. Depois que terminou a Filosofia, Maria nunca mais quis estudar o tema. Decidiu migrar para a arte. Se alguém diz que ela é doutora em Filosofia, ela desmente e dá risada.

“Estragar” a vida
Nunca ataquei a Igreja. Falo a respeito do que aconteceu, mas sem atacar a instituição. Prometi que não iria atrapalhar o Concílio. Quando saio dos jesuítas, brigando pelo conceito de Deus e, portanto, também de Igreja, naquele período Rahner disse que eu iria “estragar” a minha vida e a da Igreja. Então, disse-lhe que iria “estragar” apenas a minha vida. Assim, nunca polemizei contra a Igreja. Nesse meio tempo, Ratzinger ficou bispo, cardeal importante e cada vez mais transcendente. Eu, por outro lado, continuei professor monista.

Arguição escada abaixo
Logo depois de casar, fiz concurso para professor auxiliar de ensino, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Iniciei em março de 1966, no prédio ao lado da reitoria. Em agosto de 1968, faço minha livre-docência. É preciso contextualizar que 1968  é o ano das invasões estudantis. Nesse ano os estudantes de Paris invadiram a Sorbonne, e o mesmo aconteceu em Munique, quando as aulas foram canceladas. Em Frankfurt a suspensão das aulas fez com que os professores ficassem magoadíssimos com os alunos. Essa Revolução Estudantil de 1968 provocou grandes mudanças intelectuais no mundo inteiro, e também repicou em Porto Alegre. Estudantes da UFRGS, em agosto daquele ano, invadiram a universidade. Naquele exato momento, eu estava arguindo minha tese de livre-docência, no prédio ao lado da reitoria, no andar de cima. Minha banca, com cinco professores solenes, entre eles o grande jurista Miguel Reale , estava “atacando-me”, pois não sabia se eu era católico, idealista ou materialista comunista. Meu livro se chamava Dialética e realismo, e eles pensavam que a palavra dialética era mais marxista do que hegeliana. Por causa desse livro, Reale queria me “trucidar”. As notas que ganhei eram algo como 3 e 4, sendo que o 7 era o mínimo para passar.
Stein  e eu fizemos nossas arguições na mesma época. Ele não teve problemas de ser acusado de comunista porque estudava Heidegger . Mas eu tinha, por causa da dialética. Além disso, os estudantes invadem o prédio e a polícia do DOPS  entra com escada magirus, pela janela. As luzes tinham sido apagadas pelos estudantes. O presidente da banca disse que eu não deveria interromper a arguição, caso contrário a sessão perderia a validade. Miguel Reale continuou o exame no escuro. Uma luz surgiu, vinda de uma lanterna. Era o diretor Ângelo Ricci, que passa uma lanterna em nossos rostos e fala, apontando para a janela: “A faculdade foi invadida pelos alunos revoltosos. Para que esta arguição não perca a validade, a banca não pode ser interrompida. Deve continuar arguindo e vocês devem sair por ali”. Dois policiais de metralhadora em punho guarneciam a escada. Todos, então, descemos pela magirus, arguindo. Fomos acompanhados, no escuro, pelos policiais, rumo à Escola de Belas Artes. Levamos uns 15 minutos caminhando e arguindo, até chegar ao Instituto. Lá a sessão foi encerrada. Isso consta em ata até hoje arquivada na Faculdade de Filosofia da UFRGS. Torno-me, então, livre-docente.

Cassação
Não tive atuação política nem antes, nem depois desse momento, mas eu era um filósofo, e em 1968 acontece essa revolta estudantil e o AI-5 . A revolução militar iniciada em 1964 sofre uma revolução interna em 1969. O presidente Arthur da Costa e Silva fica doente e uma junta militar assume o governo e tudo fica mais “apertado” ainda. Havia listas de cassações. Professores da Universidade de São Paulo – USP de Sociologia e Filosofia eram cassados em grupos de 30 a 40 pessoas por vez. No Rio Grande do Sul, cassaram de 20 a 30 professores, sobretudo da Sociologia e Arquitetura. Da Filosofia, apenas dois foram cassados: Gerd Bornheim  e Ernildo Stein. Nessa época eu ainda não tinha sido cassado. Os não cassados, como eu, se manifestam dizendo que aquilo era uma vergonha. Um grupo, capitaneado pelos dois Brito Velho (Carlos de Brito Velho, deputado, católico, e Vitor de Brito Velho, professor de Filosofia) fez um abaixo-assinado pedindo ao governo militar a revisão dessa postura. Assinei esse manifesto, ao lado de inúmeros outros colegas. Depois de um tempo, um assessor do ministro da Educação, Tarso Dutra, nos instou a retirar nossa assinatura. Instruiu-nos a nos retratarmos e afirmarmos o contrário. Recusei-me, junto de Bento Velho e Maria da Graça, hoje professora da PUCRS.
Em 1969 fui cassado, mas continuei dando aulas em Caxias de Sul. Só que isso não durou nem dois meses. Veio um ato complementar do governo militar dizendo que aqueles cassados pelo AI-5 não poderiam dar aula em nenhum lugar no Brasil. Então, fiquei desempregado e sem dinheiro. Nessa situação, apelei para minha segunda profissão, que aprendi em Viena.

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