Edição 360 | 09 Mai 2011

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Greyce Vargas e Márcia Junges

Às vésperas de comemorar 80 anos, o arquiteto Francisco Whitaker esbanja energia e vitalidade. Ideias para continuar a construir um outro Brasil e um outro mundo, menos desiguais e menos injustos, não lhe faltam. A mais nova delas é criar um plebiscito contra a construção de reatores nucleares no Brasil. Em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line, por ocasião de sua vinda à Unisinos, em 14-04-2011, ele contou sua bela e agitada trajetória, sempre lutando pelas causas sociais e acreditando que se pode viver uma sociedade mais fraterna. Cidadão do mundo, viveu na França, na Argentina, no Chile, na Alemanha e ajudou a escrever a história política de nosso país, inclusive através de dois mandatos como vereador pelo PT. Francisco Whitaker é arquiteto por formação e foi cofundador do Fórum Social Mundial. Confira a entrevista.

Origens 

Nasci no interior do Estado de São Paulo, em São Carlos, a 200 km da capital. Minha família é de lá. Meu pai, João é filho de imigrantes portugueses. Após viajar para Portugal com a família, voltou jovem ao Brasil para tomar conta da serraria de meu avô. Casou-se com uma moça de São Carlos. Ele tinha 22 anos, ela 16. Em Portugal estudou Contabilidade, e era jogador de futebol, goleiro do time dos Acadêmicos de Coimbra.
Minha mãe, Beatriz, vinha de família tradicional da cidade, com vários filhos. Sou o caçula de três filhos. Tenho duas irmãs mais velhas. Completo 80 anos este ano. Minha irmã mais velha já tem 83, e a outra 82. Era uma família de classe média suficientemente acertada na vida para dar estudos aos três filhos. Fiquei em São Carlos até 17 anos. Estudei em escola pública, a melhor que havia na cidade.


Universidade e Ação Católica

Fui para São Paulo fazer o último ano do colégio e tentar entrar na universidade. Era o ano de 1950. Eu tinha uma namorada muito inteligente nessa época, que iria estudar medicina. E eu queria fazer medicina também. Entretanto, no meio do ano de cursinho, naquele tempo o 3º colegial, pensei que gostaria de arquitetura. Assim, fiz o vestibular, passei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP, que concluí em 1957. Em 1950, no primeiro ano de faculdade, fui morar numa pensão da Juventude Universitária Católica - JUC, onde comecei a fazer parte desse movimento. Em 1953, fui eleito presidente da JUC, quando ocorreu uma virada muito grande no movimento.


Padre Lebret

Minha geração foi muito influenciada por um dominicano francês, Pe. Louis Joseph Lebret. Era uma pessoa muito especial, misto de geógrafo, atividade que o fez vir ao Brasil realizar pesquisas socioeconômicas, e teólogo. Lebret trabalhava muito o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, e seus estudos tinham dimensão mundial. Uma obra sua de importância foi Suicídio ou Sobrevivência do Ocidente. Mas escreveu também obras que foram muito úteis para nós, jovens, como Princípios para a ação, muito útil até hoje, e Rejuvenescer o exame de consciência. Mais adiante, em 1962, foi perito do Concílio Vaticano II. Fomos todos “devidamente” influenciados por ele.

Plínio de Arruda Sampaio foi presidente da JUC antes de mim. Éramos da mesma turma. Ele é um ano mais velho do que eu. No livro sobre exame de consciência, Lebret dizia que o pecado mais grave é a omissão diante da miséria no subdesenvolvimento. Ele nos marcou muito com essas ideias, tanto assim que a JUC, que tinha um congresso nacional em que todos os anos era definido um tema de trabalho e estudos. Ele escolheu em 1954 a questão social. Era o período da minha gestão. Ainda nesse ano, no final do meu mandato, apareceu uma oportunidade especial para participar de um programa de intercâmbio universitário com a Universidade de Hamburgo, na Alemanha. Foram dois alunos daqui e vieram dois de lá. Candidatei-me para participar. Foi engraçado porque havia apenas duas vagas, mas o fato é que quem se candidatou fui eu e outro rapaz, da UJC – União da Juventude Comunista. Ocorre que naquele tempo havia um filme italiano muito famoso, chamado D. Camilo e Pepone, que tratava sobre o pós-guerra na Itália, mostrando o embate entre comunistas e cristãos pelo domínio político. Aliás, Lebret tinha participado muito desse embate e criado o movimento chamado Economia e Humanismo, em 1947. Era exatamente esse momento em que se digladiavam na Europa essas forças após o fim da guerra. Todos os países estavam se articulando, e somente depois é que houve a divisão entre Leste e Oeste. Assim, esse filme mostrava D. Camilo como o padre, e Pepone como líder comunista da cidadezinha italiana. A obra mostrava os enfrentamentos e semelhanças. Nossos colegas brincavam dizendo que D. Camilo e Pepone iam juntos para a Alemanha...
Aprendi a falar alemão “na marra”. Fiquei por lá uns dois semestres. Passei mais outro semestre na França, estudando arquitetura gótica e românica. Eu tinha uma lambretinha que usava para ir a todo lado.


Tour europeia

No intercâmbio Alemanha-Brasil, a bolsa de estudos dos alemães que vieram para cá funcionou perfeitamente, mas na Alemanha não ocorreu o mesmo com a nossa. Eu e meu colega nos vimos em maus lençóis durante seis meses. Vivemos sem a bolsa, ganhando dinheiro de alguma maneira. Mas naquele tempo, na Europa, havia muitas atividades para os jovens fazerem: colher laranjas, cuidar de crianças, fazer extras em filmes, vender sorvetes em estádios, limpar tapetes. Foi o que fizemos durante esse meio ano. Até que veio o dinheiro da bolsa, os atrasados de seis meses. Deu para comprar a lambretinha. Fui até o Sul da Itália e à Finlândia assim.


Trabalhando com Lebret

Quando voltei para São Paulo, em 1957, retornei para a universidade. Lebret tinha acabado de fazer uma grande pesquisa nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo sobre necessidades e possibilidades de desenvolvimento para a bacia Paraná-Uruguai. Lebret tinha sido contratado para fazer uma grande pesquisa na aglomeração de São Paulo. Um detalhe interessante é que ele veio pela primeira vez para o Brasil em 1947 para dar um curso de introdução à economia e humanismo e um outro sobre introdução ao marxismo. No meio desse curso, Dutra resolveu colocar na ilegalidade o Partido Comunista. Naquele tempo o Brasil era muito anticomunista. A guerra fria era muito forte. Lebret deu declarações dizendo que aquela decisão era equivocada. Foi proibido de voltar ao Brasil até 1952...
A ditadura no Brasil disse que veio porque comunistas, aliados a igrejeiros estavam tentando implantar uma ditadura de esquerda no Brasil, no ano de 1963/64. Lebret, começando a trabalhar na pesquisa sobre São Paulo precisava de um desenhista, uma vez que usava muito representações gráficas. Então, eu era estudante do último ano de arquitetura. Naturalmente, continuei a trabalhar no instituto que foi criado por ele em São Paulo, chamado Sagmacs. É dele o primeiro estudo das favelas do Rio de Janeiro, de um outro que exibia as condições de vida em Pernambuco. Em São Paulo ele pesquisou por um ano inteiro. Eu, trabalhando na Sagmacs, passei em seguida a ser coordenador da pesquisa similar que fizemos em Belo Horizonte, e depois partimos para fazer outros estudos em outros lugares como o Paraná, o Araguaia.
O trabalho de Lebret foi apresentado como o primeiro planejamento urbano de São Paulo, mas não é exatamente isso. Trata-se de um estudo, com análise e conclusões. A partir disso ele propunha coisas, mas não se tratava de um plano diretor para São Paulo. Se seus conselhos tivessem sido ouvidos, São Paulo não seria o caos que é hoje. O que Lebret propunha era criar uma descentralização. A periferia não era considerada, e ele queria que isso ocorresse em termos de serviço e administração. Automaticamente toda a discussão sobre trabalho, residência, zonas industriais e de habitação faziam parte de suas propostas. Ele chegou a fazer sobrevoos de helicóptero na cidade para identificar onde instalar centros administrativos. Acabei participando desse belíssimo estudo.


Plínio de Arruda Sampaio

Plínio de Arruda Sampaio foi subchefe da Casa Civil de Carvalho Pinto. A essas alturas eu já era arquiteto, formado em 1947. Trabalhava como pesquisador, urbanista na Sagmacs, quando Carvalho Pinto resolveu fazer o plano de ação, o primeiro plano de governo que se fez no Brasil depois de Juscelino. Mas já era um plano de ação, e não de metas, como o de Juscelino. Plínio foi o coordenador. Ele chamou a equipe inteira de Sagmacs para trabalhar com ele. Constituímos um grupo de planejamento que tinha dois níveis, um deles era chamado Grupão (que contava inclusive com Delfim Neto). Uma das tarefas de que fui incumbido foi a descentralização da Justiça. Plínio disse-me que os desembargadores não tinham a menor ideia do que era São Paulo. Ele sugeriu que saíssemos pela cidade para “apresentá-la” a eles.
Após algum tempo fiquei descontente com a forma como o economista chefe estava levando o plano de ação, e resolvi voltar para a Sagmacs. Fiz outros trabalhos, na Bahia, em Minas Gerais até que Plínio novamente, então como deputado federal, foi relator da reforma agrária, em 1963. Plínio me indicou para Jango a fim de eu dirigir o departamento de planejamento da Superintendência da Reforma Agrária - Supra. Lá fui eu. Fiquei trabalhando por uns oito meses em dois gabinetes: no Rio de Janeiro e em Brasília. Eu ia todas as semanas para Brasília e ficava uns dois ou três dias, ia para o Rio e voltava para São Paulo. Depois me mudei para o Rio e diminuiu uma escala.


Prisão

Em 1964, deu-se a minha prisão. A explicação que deram, ou acusação, é que eu fazia parte de uma conspiração, que iria tomar o Rio “por fora”. Segundo os militares, nós estávamos preparando a tomada do Rio de Janeiro pelos camponeses. Era uma das acusações que pesavam sobre nós. Fiquei um tempo fugido, depois apareci novamente, para não ter abandono de cargo. Vincularam minha prisão ao fato de ser membro da AP – Ação Popular. Afastei-me dela logo após ser solto. Fiquei uns dez dias preso, tempo suficiente para eles vasculharem tudo o que haviam levado de minha casa, e de um dia de interrogatório sobre o conteúdo das pastas que encontraram. Nesse período ainda não havia tortura. O Dops, o Fleury e a tortura surgiram somente mais tarde. Fiquei sem emprego, e continuava no Rio de Janeiro. Inventei de ser vendedor da Enciclopédia Britânica. Eu tinha três filhos para criar nessa época. Casei em 1958, logo a seguir o término da pesquisa com Lebret, em São Paulo. Minha esposa chama-se Stella, e é psicóloga. Já comemoramos 50 anos de casados.


Telegrama e exílio

Logo após minha libertação, D. Helder havia feito um plano de emergência para a CNBB e a partir de um apelo de João XXIII queria fazer um plano “pra valer”. E eu era um planejador. Fui chamado para assessorar o primeiro plano pastoral de conjunto. Trabalhei na CNBB e isso foi uma experiência riquíssima, pois atuei com um teólogo chamado Caramuru. Fazíamos uma “dobradinha” muito interessante. Fizemos um plano extremamente participativo, um processo de discussão que passava de um lado pela explicação para bispos, padres e leigos do que o Concílio Vaticano tinha trazido e a minha explicação de como poderíamos operacionalizar aquilo tudo. O Concílio foi uma verdadeira virada de mesa. Foi uma experiência rica não apenas do conhecimento teológico, mas do que é a Igreja, a ação cristã.
Mas as coisas começaram a apertar do meu lado em termos de repressão. Tive tempo de terminar o plano, e fui para Roma quando a assembleia dos bispos aprovou esse plano, em Roma. Fui realizar uma assessoria e, na hora de voltar, recebi um telegrama dizendo: “Não volte.” Estávamos eu e Stella em Roma, mas nossos filhos haviam ficado. Ela voltou antes, para sentir qual era a barra, e eu fiquei. Falaram que estavam me procurando. Esperei um tempo e voltei. No final de 1966, decidimos que iríamos sair do Brasil para esperar a poeira baixar. O quarto filho nasceu nesse período.


Mudanças de endereço

Planejamos ficar um ano e meio na Europa. Articulei uma tese de doutorado, e Stella entrou em um curso. Logo o governo brasileiro interferiu nos estudantes daqui que estavam na Europa e a bolsa francesa foi “devidamente” cortada. Ficamos sem bolsa, com quatro filhos. Eu já dava aulas no Instituto do Lebret, que havia morrido em 1966, na França. O Instituto chama-se Instituto de Formação e Pesquisa em Desenvolvimento – IRFED, que formava quadros para o Terceiro Mundo. Assim trabalhei por três anos. Assessorei a Unesco, que queria me levar para o Chile, mas fui barrado pelo governo brasileiro. A Cepal convidou-me também para trabalhar no Chile. Ficamos lá por quatro anos. Acompanhamos a vitória de Allende, e infelizmente nos vimos novamente dentro de um golpe. Saímos rapidamente do país para ir para a Argentina.
Voltamos para a França, vivendo com o que restou de nossos salários. A CNBB então decidiu fazer um projeto internacional chamado Jornadas Internacionais por uma sociedade superando as dominações. Pretendia-se fazer um tribunal internacional pelos direitos humanos, no qual o Brasil seria condenado pelas atrocidades aqui cometidas. Mas nos demos conta de que não era o caso de fazer mais um tribunal, mas sim um projeto de um grande encontro internacional para denunciar as opressões. Queríamos que as vítimas das opressões fossem lá contar o que estava havendo, algo como o Fórum Social Mundial hoje. Todos que estivessem engajados em algum tipo de luta poderiam participar, escrevendo um relato de duas páginas. Traduziríamos para quatro línguas e criaríamos uma intercomunicação. As coisas começaram devagar e depois cresceram muito. No décimo texto desse tipo apareceu um com o titulo A Igreja Católica Romana como Estrutura de Dominação, escrito por um grupo de mulheres da Inglaterra. Isso causou celeuma no Vaticano, que lia isso de maus olhos. Veio uma comitiva de Roma discutir com os bispos do Brasil se a iniciativa deveria continuar. Os bispos disseram que continuariam a publicar o material mas abdicariam do encontro. Publicamos 100 estudos de caso e depois disso 25 bispos brasileiros decidiram que dariam apoio à continuidade do projeto. Isso durou até 1981, eu e Stella trabalhando na França, encarregados da secretária de apoio do projeto.


Voltando ao Brasil

Conseguimos nossos passaportes, na Justiça, em 1978. Em 1981 decidimos voltar. Os filhos e Stella vieram antes, por questões de segurança. Quando cheguei, parecia que estavam recebendo um bandido. Eu era esperado em vários aeroportos. Fui autorizado a visitar meu pai que estava doente, e só depois me apresentar à polícia.


Família

Meu pai tinha muito medo de que eu tivesse virado comunista. Mãe é mais flexível com tudo, e a minha sempre aceitava tudo. Mas meu pai foi buscar o que deixei na cadeia, no Ministério da Marinha, no Rio de Janeiro. Ficavam preocupados com minha situação. Meu pai tinha a mentalidade da época, e toda aquela preocupação sobre o comunismo. Dos nossos quatro filhos, três são meninas, e um menino. Uma delas é médica, Clara, formada na França, e tem dois filhos. Celina é agrônoma, também formada na França. Trabalhou em Ijuí, no Rio Grande do Sul. Veio para cá com o marido, também agrônomo. Hoje ela vive lá na França, com três filhos. Silvia é advogada, trabalhou comigo quando fui vereador. Em seguida, entrou na diplomacia, e atua como diplomata no Uruguai e tem um filho. O João, caçula, fez arquitetura, economia, mestrado em ciências sociais e doutorado em arquitetura. É professor da USP e ultraengajado em causas sociais.


De volta ao Brasil

Voltamos numa fase mais calma, digamos assim. Vim trabalhar com D. Paulo Evaristo Arns. Fomos acolhidos para trabalhar nas Comunidades Eclesiais de Base. Criamos a Associação Paulista de Solidariedade ao Desemprego, em 1983. Depois nos engajamos no Plenário Pro-Participação Popular na Constituinte. Em 1988 candidatei-me a vereador por São Paulo, no mandato em que assumiu Luiza Erundina. Fui reeleito no mandato de Paulo Maluf. Aprendi como funciona o Legislativo no Brasil, os meandros da corrupção. Visto de fora é uma coisa; visto de dentro, outra. Depois de dois mandatos, decidi sair.


Corrupção

Quando acabou a Constituinte e era recomendável que eu me candidatasse a vereador, desliguei-me de D. Paulo e entrei no PT. Em 1996 fui ser secretário executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, onde comecei a trabalhar, e a Campanha da Fraternidade em 1996 foi sobre Fraternidade e Política, de onde saiu o projeto de Iniciativa Popular contra a corrupção eleitoral. Na Constituinte trabalhei precisamente na emenda popular que instituía a iniciativa popular de lei. Era meu terreno. Em 1999 conseguimos aprovar a lei contra a corrupção eleitoral. Aí é que começou o Fórum Social Mundial. Entrei representando a Comissão, e sou membro da Conselho Internacional do Fórum.


PT

Saí do PT em 2006. Quando me afastei da Câmara, afastei-me do partido. Participava de algumas atividades, mas me desliguei da vida partidária, que é extremamente trabalhosa e cansativa. A insistência em me posicionar sobre o escândalo do mensalão era tanta que resolvi me afastar do PT e voltar ao “Partido dos Sem Partido”.


Governo Lula

Lula fez um enorme avanço na maneira de olhar a questão da desigualdade no Brasil, abrindo perspectivas e tomando iniciativas junto do processo mundial de crescimento da economia. Ele determinou uma melhoria nas condições de vida de muita gente, e até uma certa elevação do nível de renda, com mais atividade econômica a partir das ajudas gerais que visavam redistribuir a renda. Para fazer isso, Lula teve que tecer acordos, e alguns deles foram problemáticos. Como o acordo com os ricos, aqueles que têm o país na mão e que ganham muito dinheiro em qualquer circunstância. Com o governo Lula, continuaram a ganhar muito dinheiro. Houve uma certa distribuição de renda, mas a faixa mais rica do país enriqueceu ainda mais. Os “inimigos” de Lula dizem que ele salvou o capitalismo, pois não colocou em xeque o sistema: pelo contrário, assegurou sua continuidade nos moldes mais tradicionais, com um capitalismo voltado sobretudo ao crescimento econômico sem distribuição de renda. Quem faz distribuição de renda é o governo com seus mecanismos. Ao mesmo tempo, destacam-se os problemas ambientais, complicadíssimos de resolver, como a questão dos transgênicos e das grandes obras do PAC, uma resposta à necessidade de industrialização do país. Portanto, é preciso ainda mais dinheiro para as empresas e empreiteiras. Um lado que ficou meio problemático foi a relação política entre Executivo e Legislativo, que é a relação mais perversa de nossa democracia, fazendo com que a corrupção se instale.

Lula fez como todos os governantes: criou condições de governabilidade, conseguindo uma maioria no Congresso através de alianças com setores que não estão absolutamente interessados em superar a desigualdade no Brasil. Como conclusão, Lula foi bom e ruim. O grande problema é que o lado bom dele criou uma dinâmica que agora não dá mais para segurar, com o atendimento a necessidades sociais. Por outro lado, se torna cada vez mais difícil enfrentar o problema real, que é o de superar um sistema que destrói o planeta e, na verdade, mais concentra renda do que qualquer outra coisa.


Governo Dilma

Dilma foi eleita dentro do programa e da perspectiva de Lula. Ela é a “Mãe do PAC”. Ela tem uma visão de que tudo se soluciona pelo crescimento econômico, o que é trágico. É preciso rever o modelo de desenvolvimento brasileiro. Temos que crescer economicamente, é claro, mas com um modelo que assegure a manutenção da vida e da natureza. Essas grandes obras do PAC poderiam tomar modelos diferentes. Agora, estou reunindo-me com pessoas que querem parar a construção de reatores nucleares no Brasil. O que se viu sobre esses reatores já é o suficiente para encaminharmos algo desse tipo. Já o ministro das Minas e Energia disse que será dada continuidade a essas obras. Trata-se de uma visão de desenvolvimento que precisa ser totalmente revista.

Por outro lado, na questão da governamentabilidade através do controle do Parlamento, Dilma teve, de cara, um primeiro problema: a aprovação da lei do salário mínimo. Para isso, novamente ela precisou usar o sistema habitual. Como conseguir maioria no Congresso? Diz-se que ela está “segurando” mais, contingenciando a liberação das famosas emendas parlamentares, um dos sistemas mais distorcidos de atividade parlamentar. Simplesmente, esses sistemas estão voltados para a reeleição dos parlamentares através do encaminhamento de verbas aos seus redutos eleitorais. Essas emendas parecem estar sendo mais contingenciadas. Como Dilma irá compensar isso e continuar a ter maioria no Congresso? Não sei.


80 anos

Temos que ir tocando a vida como se vivêssemos eternamente. Não dá para ficar pensando em quando irá acabar a caminhada, ou se protegendo tanto que não se faça mais nada. Pelo contrário, quanto mais se age e se insere em novos projetos e desafios, melhor funciona nosso corpo e mente. Vejo os 80 anos como mais uma data. Quero comemorar ainda os meus 90 anos. Objetivamente, existe uma quantidade enorme de coisas a serem feitas no Brasil para as quais posso contribuir de alguma forma. A minha experiência fez-me descobrir muitas coisas, como agora ocorre com a questão nuclear. Estou entre os organizadores de um plebiscito sobre a questão nuclear. Nessa altura dos acontecimentos, é fundamental. Tenho que me meter, não posso “pendurar as chuteiras”. Ao contrário, vou continuar chutando. Se não acreditamos que um outro mundo é possível, temos que voltar para casa e morrer. Não vou comemorar os 80 anos com alarde. Certamente a família vai querer fazer um bolo, mas talvez eu nem esteja por aqui na data, mas viajando em um dos meus compromissos.


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Francisco Whitaker
concedeu outra entrevista à Revista IHU On-Line:

* O FSM e a radicalização da democracia. Publicada na edição 357, de 11-04-2011

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