Edição 353 | 06 Dezembro 2010

Ubuntu, uma “alternativa ecopolítica” à globalização econômica neoliberal

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Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

A ética do ubuntu se pronuncia contra uma interpretação ideológica capitalista da realidade. Sua filosofia nativa espiritual está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, afirma a educadora sul-africana Dalene Swanson

Reconhecido como “um sistema de crenças, uma epistemologia, uma ética coletiva e uma filosofia humanista espiritual do sul da África”, o ubuntu é, em suma, “uma forma ética de conhecer e de ser em comunidade”. Essa é a opinião da doutora em Educação nascida na África do Sul e hoje residente no Canadá, Dalene Swanson.

Professora adjunta da University of British Columbia, em Vancouver, e de Alberta, em Edmonton, ambas no Canadá, Dalene encontra no ubuntu uma das formas de “humanismo africano”. Mas, diferentemente da filosofia ocidental derivada do racionalismo iluminista, “o ubuntu não coloca o indivíduo no centro de uma concepção de ser humano”: “A pessoa só é humana – explica – por meio de sua pertença a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros”.

O ubuntu, afirma Dalene, “é uma expressão viva de uma alternativa ecopolítica” e também “a antítese do materialismo capitalista”. Mas hoje, diz, a industrialização, a urbanização e a globalização crescentes ameaçam corromper esse modo de ser africano tradicional, pois o ubuntu se posiciona “contra essa interpretação ideológica da realidade por meio de uma filosofia nativa espiritual que está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte”.

Dalene Swanson é professora adjunta da Faculdade de Educação das University of British Columbia, em Vancouver, e de Alberta, em Edmonton, Canadá. Nascida na África do Sul, é membro associada do Centre for Culture, Identity and Education da University of British Columbia. É doutora em Educação pela University of British Columbia, com a pesquisa Voices in the Silence: Narratives of disadvantage, social context and school mathematics in post-apartheid South Africa. Sua tese lhe garantiu diversos prêmios de excelência, dentre eles o Canadian Association of Curriculum Studies Award de 2005; o prêmio Ted T. Aoki, do mesmo ano; e o American Educational Research Association Award de 2006. Dentre outras publicações, é autora do capítulo Where have all the fishes gone?: Living ubuntu as an ethics of research and pedagogical engagement, do livro In the Spirit of ubuntu: Stories of Teaching and Research [No espírito do ubuntu: Histórias de ensino e pesquisa] (Sense Publications, 2009).

Confira a entrevista.



IHU On-Line – Fala-se do ubuntu como uma noção filosófica, um conceito abstrato, um fundamento ético ou uma ideologia nacionalista africana. Afinal, o que é ubuntu?

Dalene Swanson –
Ubuntu é um sistema de crenças, uma epistemologia, uma ética coletiva e uma filosofia humanista espiritual do sul da África. Dentre as quatro categorias que você menciona na pergunta, o ubuntu é mais um fundamento ético coletivo (ou um sistema de crenças) do que qualquer outra coisa, embora também seja considerado uma forma de filosofia e epistemologia africanas nativas. É uma forma ética de conhecer e de ser em comunidade. Nesse sentido, é uma forma de humanismo africano. É muito menos um conceito abstrato do que uma expressão coletiva cotidiana de experiências vividas, centradas em uma ética comunitária do que significa ser humano.

Em Swanson (2007) , eu o descrevi da seguinte maneira: “Ubuntu é uma abreviação de um provérbio isiXhosa da África do Sul, proveniente de Umuntu ngumuntu ngabantu: uma pessoa é uma pessoa por meio de seu relacionamento com outros. O ubuntu é reconhecido como a filosofia africana do humanismo, ligando o indivíduo ao coletivo através da ‘fraternidade’ ou da ‘sororidade’. Ele dá uma contribuição fundamental às ‘formas nativas de conhecer e ser’. Com ênfases históricas diversificadas e (re) contextualizações ao longo do tempo e do espaço, é considerado uma forma espiritual de ser no contexto sociopolítico mais amplo do sul da África. Essa abordagem não é apenas uma expressão de uma filosofia espiritual em seu sentido teológico e teórico, mas uma expressão da vivência cotidiana. Isto é, uma forma de conhecimento que fomenta uma jornada rumo a ‘tornar-se humano’ (VANIER, 1998)  ou ‘que nos torna humanos’ (TUTU, 1999) , ou, em seu sentido coletivo, uma maior humanidade que transcende a alteridade de todas as formas” (p. 55).


IHU On-Line – Sendo o ubuntu, portanto, uma filosofia do humanismo africano, qual o significado e o valor do ser humano dentro desse contexto?

Dalene Swanson –
Diferentemente da filosofia ocidental derivada do racionalismo iluminista, o ubuntu não coloca o indivíduo no centro de uma concepção de ser humano. Este é todo o sentido do ubuntu e do humanismo africano. A pessoa só é humana por meio de sua pertença a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros; uma pessoa existe por meio da existência dos outros em relação inextricável consigo mesma, mas o valor de sua humanidade está diretamente relacionado à forma como ela apoia ativamente a humanidade e a dignidade dos outros; a humanidade de uma pessoa é definida por seu compromisso ético com sua irmã e seu irmão.


IHU On-Line – Quais são as origens culturais e históricas do ubuntu?

Dalene Swanson –
O ubuntu tem sido uma expressão vivida de uma filosofia coletiva ética entre os povos sul-africanos há séculos. Ele também tem expressões linguísticas e vividas em outros povos africanos mais ao norte. Nesse sentido, é uma das normas culturais mais poderosas e universais que vinculam as pessoas em todo o continente e transcende línguas, tribos e locais como uma ética humana coletiva.
Em Swanson (2007), afirmei: “Da forma como cheguei a entender o conceito, o ubuntu nasce da filosofia de que a força da comunidade vem do apoio comunitário e de que a dignidade e a identidade são alcançadas por meio do mutualismo, da empatia, da generosidade e do compromisso comunitário. O adágio de que “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança” está alinhado com o espírito e a intenção do ubuntu. Assim como o apartheid ameaçava corroer esse modo de ser africano tradicional – embora, em alguns casos, ele ironicamente o fortaleceu ao galvanizar o apoio coletivo e ao criar solidariedade entre os oprimidos –, da mesma forma a industrialização, a urbanização e a globalização crescentes ameaçam fazer o mesmo (p. 53-54)”.


IHU On-Line – Quais aspectos o ubuntu pode ajudar a aprofundar na ética ocidental? O que ele pode ensinar a outras tradições e culturas?

Dalene Swanson –
Este é um ponto crucial. Vivemos em uma era de globalização econômica neoliberal profundamente perturbadora. Nossas pautas de desenvolvimento foram sequestradas por esse modelo econômico que se apresenta como a forma “certa” ou única de promover o desenvolvimento. Moldado por relações capitalistas de produção, esse modelo é subscrito pelo materialismo, pelo individualismo e pela competição, e normaliza uma elite rica sobre os pobres privados de direitos (em que a raça, a classe, a nacionalidade, o gênero, a etnia e o credo estão, na maioria das vezes, envolvidos diferencialmente). Para maximizar os lucros, pensa-se que algo tem de ser explorado. Em termos geopolíticos, isso assume a forma de uma subclasse humana, mas, em termos ecológicos, também inclui a devastação do meio ambiente em sua esteira. O discurso prevalecente apoiaria isso como um direito e uma exigência necessária da segurança econômica nacional.

Uma ética do ubuntu se pronunciaria contra essa interpretação ideológica da realidade por meio de uma filosofia nativa espiritual que está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte. Visto que o princípio central do ubuntu é o respeito mútuo, ele está em consonância com a epistemologia africana de modo mais geral, que é circular em sua compreensão e, consequentemente, está mais em harmonia ecológica com a Terra do que a epistemologia do racionalismo ocidental, que é linear, exploradora e insustentável. Portanto, o ubuntu tem uma contribuição crítica a dar não só para uma filosofia nativa interconectada globalmente, mas como uma abordagem contra-hegemônica a uma cosmovisão globalizante que exalta a riqueza material às custas da dignidade humana e da sustentabilidade ecológica.

Discursivamente, a globalização econômica torna as alternativas não existentes. O ubuntu, como contribuição para uma filosofia nativa, é uma expressão viva de uma alternativa ecopolítica. Em um mundo crescentemente movido a vigilância, o futuro dos direitos humanos (e ecológicos), da dignidade humana e da sobrevivência de nosso planeta em termos amplos dependem de noções filosóficas e ideológicas nativas como o ubuntu.

IHU On-Line – Como a ética do ubuntu se relaciona com a noção africana de comunidade, autonomia e descolonização?

Dalene Swanson –
O ubuntu é central para uma noção de comunidade, não em um sentido simplista de “comunitarismo primitivo”, mas comunidade em termos de solidariedade com os estão sendo oprimidos e cuidado e preocupação sinceros pelo próximo, independentemente de classe, casta, credo ou circunstância. Essa é uma ética de responsabilidade pelo “Outro” em termos de ubuntu, e testemunhar ou participar da diminuição da humanidade do outro equivale à diminuição de sua própria humanidade.

Você menciona a palavra “autonomia”. Não creio que este seja um critério crucial do ubuntu. A autonomia sugere uma separação de alguma outra coisa. Se nós respeitamos a humanidade do outro, de qualquer outro, não podemos estar separados de sua humanidade. O ubuntu sugere que nós estamos sempre inextricavelmente conectados com outro ser humano – todos os outros seres humanos, que definem a nossa própria humanidade. Suponho que você considere que a “autonomia” entre em jogo no sentido de sugerir solidariedade. Sim, o ubuntu teve certa importância na solidariedade antiapartheid na África do Sul. Ser solidário com outro ser oprimido, nesse sentido, constituiria um envolvimento com o ubuntu. E, como extrapolação disso, ele tem muito a ver com a descolonização. Dessa forma, sua importância para com a descolonização não tem tanto a ver com a resistência a um poder colonial em uma frente nacional, como tem sido o legado da África, mas agora também a novas formas de colonialismo através da globalização econômica neoliberal e uma agenda de desenvolvimento cuja estrutura ideológica é definida dentro dos moldes político-econômicos dos poderes imperiais.


Creio que é preciso ser cuidadoso para não homogeneizar “a sociedade africana” e falar dela inteiramente em termos de “déficit”. Nem toda a sociedade africana é marcada por “violência e pobreza”. Essa terminologia também sugere que as sociedades não africanas talvez não sejam marcadas por violência e pobreza, ou o sejam menos. Há muita violência na América do Norte, por exemplo. A natureza e a extensão podem ser diferentes, mas o capitalismo pode ser uma ideologia muito violenta. Embora uma parte dessa violência talvez seja simbólica, ela é, não obstante, altamente destrutiva e cúmplice na negação da dignidade e dos direitos de muitos.

A África também tem muito a se orgulhar em termos de sua beleza e presença, mas também da beleza, resiliência, compaixão e humanidade de muitos de seus povos. Além disso, há muitas profundas contribuições e inovações epistemológicas históricas e contemporâneas que vieram e que estão vindo da África. Em muitos casos, ela também ostenta sofisticação e criatividade industrial e tecnológica, embora isso raramente seja reconhecido através das lentes dos poderes dominantes e dos discursos hegemônicos.

Não obstante, voltando à sua pergunta, segue-se o que escrevi em Swanson (2007), a respeito do papel do ubuntu na Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul pós-apartheid: “O ganhador do prêmio Nobel, o arcebispo Desmond Mpilo Tutu , que, em 1995, tornou-se o presidente da Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul pós-apartheid, era um vigoroso defensor da filosofia e do poder espiritual do ubuntu na recuperação da ‘verdade’ por meio de narrativas das atrocidades da era do apartheid. Ele também o viu como necessário nos processos mais importantes e subsequentes de perdão, reconciliação, transcendência e cura que surgem por meio do processo catártico de dizer a verdade. Nesse sentido, o alcance das noções de ‘verdade’ com relação ao mandato da Comissão de Verdade e Reconciliação superava uma noção forense de ‘descoberta da verdade’ para incluir três outras noções de busca da verdade que abrangiam a verdade pessoal ou narrativa, a verdade social ou dialógica e a verdade curativa ou restauradora (MARX, 2002, p. 51) . Uma percepção da epistemologia africana ressoa por essas postulações da ‘verdade’ em sua formulação e exposição. Como linha filosófica da epistemologia africana, o ubuntu foca as relações humanas, atentando para a consciência moral e espiritual do que significa ser humano e estar em relação com um Outro. Isso se expressa no anúncio da Comissão de que ele ‘desloca o foco primordial do crime, passando da violação das leis ou infrações contra um Estado sem rosto para uma percepção do crime como violações contra seres humanos, como dano ou mal feito a outra pessoa’ (apud Marx, 2002, p. 51). Mais uma vez, o imperativo da busca da verdade por parte da Comissão é sustentado por uma concepção da epistemologia africana e do ubuntu em sua incorporação da verdade pessoal ou narrativa, da verdade social ou dialógica e da verdade curativa ou restauradora (p. 53)”.

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