Edição 353 | 06 Dezembro 2010

Ubuntu, uma “alternativa ecopolítica” à globalização econômica neoliberal

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Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

IHU On-Line – Em uma sociedade marcada pela violência e pela pobreza como a africana, quais são as contribuições e os limites da ética do ubuntu?

Dalene Swanson –


IHU On-Line – A senhora define o ubuntu como “humble togetherness”, intimidade humilde, estar juntos em humildade. Qual o significado dessa definição para a relação entre o indivíduo e a sociedade em geral?

Dalene Swanson –
Cunhei o termo “humble togetherness” para exemplificar como o ubuntu atua não através de relações de poder, em que uma pessoa é superior a outra e mostra compaixão ou oferece ajuda de forma patriarcal ou paternalista, mas através do ato de se tornar humilde diante de outra pessoa, de ver o outro como uma pessoa igual, que contribui e é digna, que tem uma presença na qual nossa própria humanidade se reflete.

Trata-se de uma conexidade abnegada, voltada para fora, para o bem-estar de outra pessoa e o seu reconhecimento como pessoa. É uma forma de mutualismo em que o orgulho de si mesmo depende inteiramente de se sustentar a dignidade do outro ou da comunidade. Falei sobre como o ubuntu sustenta uma metodologia de pesquisa mais reflexiva por meio de um conceito de “estar juntos em humildade” e sobre como ela contribui para uma pedagogia e prática da educação e da vida em alguns de meus artigos e capítulos de livros, particularmente em Swanson (2007), (2009a)  e (2009b) .

IHU On-Line – Em que aspectos o ubuntu ajudou a forjar a sociedade, a política e a economia sul-africanas? Onde ainda é preciso melhorar?

Dalene Swanson –
Toquei em algumas dessas questões ao fazer referência à Comissão de Verdade e Reconciliação. O ubuntu também tem sido usado em nível de governo para incentivar a formação da nação, curar as cicatrizes do apartheid e a desconfiança entre as raças que aquele regime engendrou. Embora isso tenha sido até certo ponto bem-sucedido em uma frente, o problema é que foi implementado de cima para baixo, não sendo uma abordagem organizacional crescente que parte das bases. Os limites dessa abordagem podem ser vistos nas poucas semanas de violência xenófoba do ano passado contra refugiados e imigrantes de outros países africanos que vivem e trabalham na África do Sul.

Nesse contexto, o ubuntu parecia se aplicar apenas aos companheiros “sul-africanos” dentro da “nação do arco-íris” e não aos “estrangeiros” – um sinal de uma formação de nação que deu muito errado. Pode-se sustentar que, no primeiro caso, há uma discordância entre as bases filosóficas do ubuntu que promovem a fraternidade e a sororidade universais, extensivas a toda a humanidade, e o conceito de uma “nação” que invoca fronteiras e diferencia as pessoas (e sua humanidade) de acordo com a cidadania, garantindo direitos a alguns e não a outros. Eu discuto esse problema com maior profundidade em Swanson (2007).
Outro aspecto que pode ser destacado é que o ubuntu assinala a antítese do materialismo capitalista. Com o advento contínuo da globalização econômica e mediante a adesão a um modelo de desenvolvimento moldado pelo capitalismo, a África do Sul vem se tornando cada vez mais materialista, de tal modo que o abismo que separa “os que têm” e “os que não têm” aumentou consideravelmente, mesmo que as configurações raciais dessa hierarquia tenham mudado até certo ponto. Isso representa uma ameaça para o ubuntu. Poder-se-ia sustentar que é somente por meio da força do ubuntu e de um conjunto coletivo de valores e de responsabilidades que honrem a humanidade, a dignidade e os direitos igualitários dos outros que o status quo poderia ser superado – talvez uma nova luta pela libertação.


IHU On-Line – Qual a relação entre o ubuntu e a transcendência, em sentido teológico?

Dalene Swanson –
Acho que se pode ver isso na forma como o arcebispo Desmond Tutu deu ao ubuntu uma interpretação especificamente teológica quando presidiu a Comissão de Verdade e Reconciliação . Empregado como um fórum espiritual para a recuperação da verdade e para fomentar as condições para o arrependimento e o perdão, o ubuntu foi mesclado com o cristianismo (com o qual estaria estreitamente aliado em termos dos princípios cristãos autossacrificadores do “ama teu próximo como a ti mesmo”) para levar a efeito um ethos para a reconciliação e a transcendência.

Isso não era incomum, pois, em boa parte do contexto africano, a filosofia espiritual africana está integrada ou é compatibilizada com a ética cristã. No fim das contas, entretanto, lealdades e alianças são uma questão de interpretação. O ubuntu continua sendo essencialmente uma filosofia viva que é praticada nas vidas de pessoas comuns em uma miríade de contextos em todo o continente, mostrando ‘humanitariedade’, solidariedade, compaixão e uma sabedoria espiritual coletiva que oferece dignidade, respeito e humanidade em sua expressão.

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