Edição 352 | 29 Novembro 2010

Um fordismo tupiniquim que concilia interesses

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Graziela Wolfart

Para Rudá Ricci, o lulismo é um modelo de gerenciamento do Estado brasileiro com amplos impactos sobre o sistema político, sobre a sociedade e nossa economia

“O lulismo não se limita a Lula. Não forma uma doutrina e não cria uma legião de seguidores. É um modelo gerencial e de estrutura de poder político a partir do Estado. Está circunscrito ao conceito de modernização conservadora”. É dessa maneira que o sociólogo Rudá Ricci define o fenômeno conhecido como lulismo. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Ricci imagina que Dilma seguirá este modelo, podendo alterá-lo em alguns aspectos. Por exemplo, ela “parece mais técnica e profissional e muito menos carismática e negociadora que Lula. Mas mantém a espinha dorsal de tutela da sociedade civil, além de selar o pacto, a partir do Estado, pelo desenvolvimentismo, compondo interesses distintos”. Na visão de Rudá Ricci, “a pedra de toque do lulismo é a fragmentação de pautas da sociedade civil. É o Estado que engendra uma peculiar articulação destes interesses em agenda”. Ele defende que os valores sociais da classe média que surge a partir do lulismo são conservadores e individualistas. “Religiosos, tratam da fé como instrumento de negociação para o sucesso pessoal e familiar. São refratários a mobilizações sociais, ao espaço público, não seguem líderes (...) e sentem que estão sendo incluídos no país pelo consumo. Formam um caldo de cultura popular muito conservador, que não gosta de confronto, de rupturas, da agenda de direitos civis”. Para Ricci, “no processo de redemocratização do país, os movimentos sociais que surgiram naquele período queriam alterar o Estado. Hoje, parecem mais engolidos pela lógica do Estado que queriam alterar”.

Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela PUC-SP. É mestre em Ciência Política e o doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Atua como consultor no Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal e do Instituto de Desenvolvimento. É diretor do Instituto Cultiva e professor da Universidade Vale do Rio Verde e da PUC Minas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que podemos entender pelo fenômeno do lulismo e que modificações ele pode provocar na estrutura do Brasil para o futuro?


Rudá Ricci -
Ele é um modelo de gerenciamento do Estado brasileiro com amplos impactos sobre o sistema político, sobre a sociedade e nossa economia. Retoma o Estado orientador do desenvolvimento e cria um pacto social pelo desenvolvimento. Finalmente, por ser um pacto (uma espécie de fordismo tupiniquim), é pautado pela conciliação de interesses. Assim, toda oposição passa a ter seu espaço de atuação reduzido, tanto à esquerda, quanto à direita.

IHU On-Line - Como o senhor caracteriza o povo brasileiro alvo e foco do lulismo? Quem é o povo para o qual Lula fala?

Rudá Ricci - Lula fala para a nova classe média, que até ontem foi pobre. Estamos falando de quase 50% da população brasileira (que recebe até 10 salários mínimos de renda mensal familiar). Ele mesmo tenta criar a imagem de representante desta classe, como ex-metalúrgico e retirante que chegou ao posto maior da gestão pública nacional e se tornou astro internacional. Por falar de uma classe em transição, acaba por atingir os menos abastados, além desta classe média baixa. O lulismo trata da esperança de sucesso familiar.

IHU On-Line - Quais os valores sociais da classe média que surge a partir do lulismo?

Rudá Ricci - São conservadores e individualistas. Religiosos, tratam da fé como instrumento de negociação para o sucesso pessoal e familiar. São refratários a mobilizações sociais, ao espaço público, não seguem líderes (daí não aceitar a tese de André Singer  de que o lulismo é uma vertente do bonapartismo) e sente que está sendo incluída no país pelo consumo. Formam um caldo de cultura popular muito conservador, que não gosta de confronto, de rupturas, da agenda de direitos civis.

IHU On-Line - Quais são as perspectivas do lulismo? Como Dilma governará a partir desse cenário?

Rudá Ricci - O lulismo não se limita a Lula. Não forma uma doutrina e não cria uma legião de seguidores. É um modelo gerencial e de estrutura de poder político a partir do Estado. Está circunscrito ao conceito de modernização conservadora. Neste sentido, imagino que Dilma seguirá este modelo, podendo alterá-lo em alguns aspectos. Por exemplo, Dilma parece mais técnica e profissional e muito menos carismática e negociadora que Lula. Mas mantém a espinha dorsal de tutela da sociedade civil, além de selar o pacto, a partir do Estado, pelo desenvolvimentismo, compondo interesses distintos. A pedra de toque do lulismo é a fragmentação de pautas da sociedade civil. É o Estado que engendra uma peculiar articulação destes interesses em agenda. Minha impressão é de que Dilma dará mais espaço para vozes não alinhadas. Mas não mais que um pouco de espaço a mais. Não haverá, como na gestão Lula, espaço para o controle social.

IHU On-Line - Com o lulismo surge uma nova classe média consumista. A liberação de crédito pode gerar uma crise social no futuro?

Rudá Ricci - Acredito que sim, caso o governo federal não altere o modelo de transferência de renda, todo baseado na transferência entre assalariados. Terá que fazer cortes nos gastos públicos, conseguir aumentar os ingressos e criar financiamento público direcionado para sustentar a agregação de valor, o que possibilitará sustentabilidade no aumento do poder aquisitivo dos segmentos sociais menos abastados. Não acredito que Dilma ousará criar uma política tributária progressiva, o que romperia com o âmago do lulismo, que é a conciliação de interesses. Mas a atual ascensão social não é sustentável. Exigirá mudanças na política governamental.

IHU On-Line - Qual passa a ser o lugar e o papel dos movimentos sociais a partir do surgimento da nova classe média brasileira com o lulismo? Lutas coletivas têm lugar em uma sociedade marcada pelo individualismo e consumismo?

Rudá Ricci - O papel das organizações populares é o controle social e a democratização do Estado. Lutar por demandas econômicas é se manter no espectro do lulismo. Mas as organizações populares vivem dias difíceis. Ainda vivem a transição da sua fonte de financiamento e se envolveram em demasia com os escaninhos do Estado burocrático e patrimonialista de nosso país. No processo de redemocratização do país, os movimentos sociais que surgiram naquele período queriam alterar o Estado. Hoje, parecem mais engolidos pela lógica do Estado que queriam alterar.

IHU On-Line - Quais são as utopias da classe média brasileira hoje? Que consequências esse comportamento pode provocar a longo prazo?

Rudá Ricci - A classe média sempre acalenta a utopia do consumo total e da estabilidade. Desejam, mas sabem que dificilmente conseguirão, atingir o status de classe mais abastada. Como a política de transferência de renda do lulismo atinge só assalariados, a classe média tradicional está em pé de guerra com o governo federal, já que perde poder aquisitivo. E é justamente o grosso dos leitores da grande imprensa paulista e carioca. Daí a partidarização da grande imprensa brasileira: além de linha editorial, trata-se de estratégia de mercado. Já a classe média emergente é desconfiada de tudo e muito conservadora. Sempre foi pobre, até pouco tempo, e é ressentida por isto. Agora chegou a sua vez de consumir tudo e, por isto, não é afeta ao desenvolvimento sustentável. Não será sempre assim, mas estes dois segmentos da classe média brasileira criam, no momento, o caldo de cultura para a emergência de movimentos sociais ultraconservadores. Não posso assegurar que ele se efetivará, mas o caldo de cultura está dado.

IHU On-Line - O que podemos entender por modernização conservadora e que relação, nesse sentido, pode ser estabelecida entre Lula e Getúlio Vargas?

Rudá Ricci - Este é um conceito elaborado por Barrington Moore Jr.  Fazendo os devidos ajustes e atualizações, significaria a modernização econômica sem alteração da estrutura de poder, sob a tutela do Estado, altamente centralizado. O Estado passa a se impor sobre os interesses dispersos e cria um pacto, que é conservador, porque não altera o processo decisório, não altera o mando das oligarquias políticas regionais, mas dá uma nova configuração nacional. Em outras palavras, a inclusão se faz pelo consumo e não pela política, o que alimenta o conservadorismo e a rejeição ao conflito ou embates reivindicatórios. Daí movimentos sociais mais aguerridos perderem espaço na sociedade e se isolarem gradativamente. Getúlio foi mais autoritário que Lula. Mas ambos criaram, em seu momento histórico, uma agenda que se completa. O lulismo completa o getulismo. Não por outro motivo, Lula sugeriu enviar para o Congresso Nacional a Consolidação das Leis Sociais. Não se trata, obviamente, de mera coincidência.

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