Edição 343 | 13 Setembro 2010

Governar no Ocidente é exercer o poder como exceção

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Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Decretos-lei, leis de necessidade e urgência, poderes especiais delegados ou assumidos pelo executivo são demonstrações de que a exceção é sinônimo de governo no Ocidente, pontua o filósofo argentino Edgardo Castro

Os aspectos aproximadores e distanciadores das filosofias de Agamben e Foucault são o tema da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line pelo filósofo argentino Edgardo Castro. “As relações entre Agamben e Foucault não são sempre fáceis de discernir. Há entre eles continuidades e rupturas. É o jogo do pensamento”, assinala. E continua: “Para Agamben, diversamente de Foucault, a produção da vida nua não é um fenômeno moderno, senão tão velho como a existência do mesmo poder soberano”. Por vida nua podemos compreender aquela vida colocada “fora da lei dos deuses e das leis dos homens”. Para Agamben, os dois polos da máquina política do Ocidente são a produção da vida nua e sua administração, explica Castro. “A ideia de Agamben é que, na política ocidental, lei e exceção se sobrepõem. Governar no Ocidente é, por isso, exercer o poder na forma da exceção: os decretos-lei, as leis de necessidade e urgência, os poderes especiais delegados ou assumidos pelo executivo”.

Edgardo Castro é doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg, na Suíça. Leciona no departamento de filosofia da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina. De seus livros, citamos Pensar a Foucault (Biblos: Buenos Aires, 1995), Betrachtungen zum Thema Mensch und Wissenschaft (Fribourg: Presse Universitaire de Fribourg, 1996) e El vocabulario de Michel Foucault (Unqui: Prometeo, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em nossos dias, como é que a vida é transformada em vida nua? Qual é a imbricação do poder com essa transformação?

Edgardo Castro - Durante a década de 1970 ou, mais precisamente, entre 1974 e 1979, uma parte importante das investigações de Foucault  giraram em torno da biopolítica. Nestes anos Foucault ensaiava várias vias de acesso a esta problemática: a partir da medicina, do direito, da guerra e da economia. Por isso, não há nele um único conceito de biopolítica. Em todos eles, sem embargo, se trata do mesmo fenômeno, da maneira em que a política se encarrega da vida biológica da população. Foucault não fala, neste sentido, de vida nua, senão de vida biológica da população.

Giorgio Agamben, ao menos em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), modifica esta ideia de biopolítica. Na relação que define a biopolítica, a relação entre política e vida, em lugar da política entendida num sentido amplo (o aparato estatal, mas também as práticas governamentais), vamos encontrar-nos com um conceito mais restrito, o de soberania ou poder soberano. Em lugar da vida biológica da população, também vamos encontrar-nos com um conceito mais restrito, o de vida nua. O poder soberano produz vida nua. O que é esta vida nua? A vida colocada pelo poder fora da lei dos deuses e das leis dos homens. A vida da qual podemos dispor sem necessidade de celebrar sacrifícios ou de cometer homicídio. Essa vida é a que exemplifica, precisamente, a figura do homo sacer, o homem sagrado do direito romano.

Para Agamben, diversamente de Foucault, a produção da vida nua não é um fenômeno moderno, senão tão velho como a existência do mesmo poder soberano. Os campos de concentração do século XX, neste sentido, não trazem mais à luz, com todo o horror que isso traz consigo, esta implicação constitutiva de poder de vida e de morte.

IHU On-Line - A partir deste aspecto, quais são as possíveis leituras biopolíticas de Agamben?

Edgardo Castro - Homo sacer I é, sem dúvida, um livro que retoma as investigações de Foucault, porém o faz de maneira crítica. O mesmo se poderia dizer de O reino e a glória (2007), porém em outro sentido. Este último trabalho, escrito um pouco mais de uma década mais tarde, sem deixar de ser crítico, está mais próximo de Foucault. Aqui Agamben, como Foucault, enfoca a biopolítica desde a perspectiva do governo, e não só da soberania. E, também como ele, Foucault de Nascimento da biopolítica vincula a biopolítica com a questão da economia e do liberalismo. Apesar disso, o modo pelo qual analisa tanto a noção de economia como a formação do liberalismo difere notavelmente do modo como o faz Foucault.

Pois bem, se tomarmos em conta este giro que se produz em Agamben, entre Homo sacer I e O reino e a glória, creio que podemos distinguir nele dois conceitos de biopolítica. Esquematicamente, biopolítica-soberana e bipolítica-economia-governo. O primeiro é, como dissemos antes, o que tem como objetivo a produção de vida nua, vida exposta à morte. O segundo é o que tem como objetivo administrá-la. Estes dois conceitos são, para Agamben, os dois polos da máquina política do Ocidente.

IHU On-Line - Por que a vida nua é o fundamento da política ocidental?

Edgardo Castro – Considerando a resposta anterior, creio que a vida nua, finalmente, não é para Agamben o fundamento da política ocidental. Este fundamento está, antes, no que articula os dois polos da máquina política, o que constitui, segundo a formulação de O reino e a glória, o arcanum imperii, o segredo melhor guardado do poder. Este fundamento é, então, a glória em seu duplo sentido, objetivo e subjetivo, o glorificado e a glorificação. Este conceito, marcadamente teológico, de glória pode ser traduzido, em termos mais modernos, por consenso. Soberania e governo, poder de expor a vida à morte e poder de administrar a vida se fundem, então, no consenso. A Agamben, neste sentido, interessa sublinhar aqui o nexo entre totalitarismo e democracia.

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