Edição 343 | 13 Setembro 2010

A exceção jurídica na biopolítica moderna

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Márcia Junges

 

IHU On-Line – Pode-se falar num refinamento da forma de aplicar o estado de exceção, atingindo hoje muito mais a subjetividade dos sujeitos?

Castor Ruiz – Temos que ter certo cuidado em não extrapolar o sentido da exceção jurídica ou do estado de exceção para não descaracterizá-lo. A exceção é uma técnica jurídico-política de controle bipolítico de populações. Penso que o sentido da exceção pode ampliar-se para entender a condição da vida excluída como uma forma paradoxal de negação do direito em que a vontade soberana se esconde no anonimato dos dispositivos de poder do Estado e do mercado. Sem dúvida, toda forma de exceção tem um efeito de poder sobre a subjetividade dos indivíduos que a sofrem. 
Não seria apropriado denominar “formas de exceção” ou assimilar aos estados de exceção os dispositivos biopolíticos de produção e controle de subjetividades. A subjetividade tornou-se hoje um bem material muito apreciado pelo mercado e pelo Estado. Conseguir produzir subjetividades flexibilizadas acordes com as demandas do mercado é um objetivo estratégico dos dispositivos de poder. Conseguir administrar a vontade dos sujeitos, de modo que eles venham a desejar aquilo que é conveniente para o mercado e o Estado, é o ideal de governo moderno. O governo biopolítico coexiste no seio do Estado de direito e até o legitima, porém seu objetivo é aprender a governar a vontade dos outros, governar sua natureza, governar seus desejos de modo que, bem dirigidos, possam ser úteis e produtivos. Neste modelo biopolítico o indivíduo não é sujeito de governo, mas objeto a ser governado. Insisto que a forma de governo biopolítico é produtiva e não necessita da exceção para governar a vontade dos outros. Ela interfere de modo ativo no desejo dos sujeitos.
O uso da exceção como forma de controle biopolítico ocorrerá nos casos extremos em que determinados indivíduos, grupos ou populações fujam ao controle de modo que coloquem em risco a ordem social. Neste caso, a biopolítica se utilizará da exceção como controle da vida que ameaça para assegurar a vida dos ameaçados.

IHU On-Line – Em que sentido o controle sanitário originou o controle biopolítico? Poderia recuperar essa história?

Castor Ruiz – A genealogia da biopolítica é complexa e nela confluem várias práticas e discursos oriundos de várias áreas. Uma delas é, sem dúvida, o discurso da saúde. De forma breve, podemos localizar uma prática de controle biopolítico na forma como ainda nos séculos XVI-XVII se organizaram o controle das pestes e dos pesteados. Quando declarada a peste, imediatamente as autoridades decretavam um cerco geográfico com proibição terminante de que ninguém poderia entrar nem sair. Nesse campo se designavam funcionários com a lista dos nomes de cada habitante para controlar cada bairro, se indicava um responsável por cada rua. As pessoas, obrigadas a ficarem dentro de casa, eram chamadas pelo nome. Quando não se apresentavam na janela, normalmente presas a ela, um outro funcionário entrava na casa para ver se havia morrido. Neste caso, recolhia o cadáver para ser enterrado. Desta forma se tinha o controle diário e detalhado da vida da cidade, do bairro, de cada rua, de cada habitante.
Quando as pestes passaram, os governantes perceberam que esta técnica de controle de população era muito eficiente para outros fins, entre eles a arrecadação de impostos, evitar sedições políticas, controlar roubos, planejamentos urbanos, etc. É assim que a técnica biopolítica da peste migrou para uma técnica administrativa do Estado.
Uma outra prática de saúde, inerente ao modelo de governo biopolítico, é o surgimento da chamada saúde coletiva. Quando o Estado percebe que a vida humana é um bem produtivo que deve cuidar porque dele depende a riqueza, aparecem os discursos e as práticas de saúde coletiva. Enquanto a vida humana foi percebida sem valor para os governantes, ela ficou de responsabilidade particular dos indivíduos. Quando o Estado compreendeu que seu poder era dependente da qualidade de vida dos cidadãos e que a vida humana é a potência que traz riqueza para o Estado, nesse momento começaram a surgir novas formas de administrar a vida humana de forma produtiva, entre elas os discursos e as práticas da saúde coletiva. Cuidar da saúde da população virou sinônimo de cuidar da riqueza do Estado e da sociedade. E vice-versa, quando a saúde de um determinado grupo social não afete à potência do Estado, esse grupo será facilmente esquecido e abandonado à sua sorte. Este é o paradoxo do biopoder!

IHU On-Line – Por que o modelo do campo é o paradigma do governo biopolítico?

Castor Ruiz – Esta é a tese de Giorgio Agamben, que tem um grande fundamento histórico e filosófico.  Quando se impõe a exceção jurídica, é necessário demarcar geográfica e demograficamente a população sobre a que se suspende o direito. Historicamente tem prevalecido a demarcação geográfica, de modo que as populações que caíram sob o estado de exceção ficavam cercadas em um determinado confim geográfico, o campo.
O campo é o espaço geográfico e demográfico em que vigora o estado de exceção como norma. No campo, a exceção é a norma. O campo não foi inventado pelos nazistas para exterminar os judeus, comunistas e ciganos. O campo é uma herança que receberam do Estado de direito. As origens jurídico-políticas e históricas do campo podemos encontrá-las nas reservas criadas por decreto pelo estado democrático de direito dos Estados Unidos da América para confinar os grupos indígenas, aos quais não se lhes reconhecia o direito de cidadania e se lhes preservava como meros seres viventes que habitavam aquelas paragens. Nas reservas, vigorava a exceção plena. A reserva é uma figura jurídica criada expressamente para manter um estado de exceção interno. Os indígenas moradores das reservas não eram reconhecidos como cidadãos. Se eles saíssem eram imediatamente declarados criminosos, se um cidadão americano os agredisse ou matasse não cometia delito, mas se fosse ao contrário, o indígena era imediatamente acusado de crime e penalizado. A reserva cumpriu perfeitamente o objetivo biopolítico de controle e extermínio da vida indesejada.

Há muitas e tristes experiências de confinamentos em campos. Todas elas foram criações jurídicas do estado de direito para controlar a pessoas ou populações consideradas por ele perigosas. Os nazistas levaram ao clímax da barbárie uma técnica que herdaram. O processo de colonização do século XIX, feito pelos estados de direito europeus, utilizaram longamente o confinamento de populações das colônias em campos, para melhor controlar e em muitos casos exterminar.

Hoje em dia, o campo não é uma figura superada. Pelo contrário, como já enumerei anteriormente, quando há uma população considerada perigosa por algum motivo, imediatamente acerca-se em um campo para impor nele a exceção. Guantánamo, as cadeias secretas para suspeitos de terrorismo, os campos de refugiados, os centros de detenção para imigrantes ilegais, o cercamento de populações inteiras (como o caso da faixa de Gaza) para melhor controlá-las, são exemplos atuais de que o campo continua a ser o modelo jurídico sobre o qual se aplica a exceção como norma de vida. A vida no campo é reduzida à mera vida natural, a uma vida biológica; o ser humano se torna um mero ser vivente exposto à vontade dos que controlam o campo.

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>> Confira outras entrevistas concedidas por Castor Ruiz à IHU On-Line.

* Alteridade, dimensão primeira do sujeito. Edição número 334, Revista IHU On-Line, de 21-06-2010.

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