Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Marguerite Porete: a alma entre aniquilamento e nobreza

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Moisés Sbardelotto


IHU On-Line – Em linhas gerais, quem foi Marguerite Porete? Quais são os pontos centrais de sua mística e espiritualidade?

 

Ceci Baptista Mariani – Marguerite Porrete foi uma beguina, teria pertencido, segundo consta, ao Movimento Beguinal, um movimento que se desenvolveu como alternativa de vida religiosa leiga na Renania e Países Baixos. As beguinagens começam a aparecer no final do século XII. São formadas por pequenas casas agrupadas. Constituem-se comunidades com promessa (e não voto) de pobreza, obediência e castidade, inseridas num contexto social urbano. Nessas comunidades, as mulheres vivem do próprio trabalho: tecelagem, bordado, costura, ensinamento de crianças e serviço de damas idosas. O Movimento Beguinal está inserido no movimento de renovação da vida religiosa que, a partir do século X, se espalha por todos os países da Europa Ocidental. No entanto, é um movimento que permanece marginal, fora do controle institucional, pois não obedecia a uma regra aprovada.

Essa beguina, descobre a pesquisa histórica, é autora de um livro que ultrapassou seu tempo. Um livro considerado uma obra de grande sutileza intelectual, profundamente marcada por uma atitude especulativa própria da mística renana e extremamente original por seu estilo literário profano, elaborado como canção inflamada e paradoxal ao estilo dos trovadores que cantavam o fino amor. O livro Le mirouer des simples ames (O espelho das almas simples) narra de maneira original o itinerário da alma que vai despojando-se de todas as seguranças, ultrapassando todas as mediações, rumo ao encontro com Deus que ela curiosamente denomina “Senhora Amor”.

O aniquilamento é seu grande tema. Ele é, para ela, fruto de um processo que implica várias mortes. Marguerite vai distinguir, nesse caminho, sete estados: ao longo dos quatro primeiros se dá a libertação da alma que encontra-se embaraçada pelo pecado, pela escravidão da natureza, pela escravidão da razão e pela escravidão do desejo. O quinto estado será para Marguerite um marco fundamental. Depois de morta para o pecado e morta para a natureza, a alma que se dispôs a empreender esse caminho experimenta a morte para o espírito, porta de entrada para a vida de glória que será plena somente quando da união definitiva com o amado “LoinPrès”. O quinto estado é o da “liberdade da caridade”; a alma aí se encontra desembaraçada de todas as coisas. O sexto é o estágio em que a alma tem a visão (provinda do sétimo estágio) da glória que Deus quer para ela, é o estado em que a alma é pura e iluminada. Aí a alma não conhece nada, não ama nada, não louva nada que não Deus, porque sabe que não existe nada que seja fora dele. Nesse estado a alma iluminada não vê nem Deus nem ela mesma, mas Deus se vê por ele mesmo nela, por ela, sem ela. Vê tudo o que é por bondade de Deus e sua bondade doada é Deus mesmo, a bondade é o que Deus é. No sexto estado, portanto, a Bondade na alma se vê por sua bondade, se vê na transformação de amor que opera na alma. O sétimo estado é aquele que Amor reserva para a glória eterna. O itinerário descrito no Mirouer é o movimento que o amado “LoinPrès” – que não é outro que não a Trindade mesma – opera na alma para a manifestação de sua glória. Enfim, a alma aniquilada, amorosa de Deus lançando-se ao nada, recebe tudo, mais saber do que o contido nas Escrituras, mais compreensão do que a que está ao alcance da razão, ganha a liberdade perfeita e torna-se capaz de experimentar a “paz de caridade”.
Sendo transformada por Amor em Amor, a alma que acolheu a maior humilhação adquiriu alta nobreza. Ela não procura mais a Deus porque se encontra transformada em Deus. Esse paradoxo da mística que o texto de Marguerite exprime, aniquilamento e divinização, não é exatamente uma novidade, pois nos remete ao coração da mística medieval. Talvez a ousadia de Marguerite foi ter cantado em língua vernácula, tornando acessível, portanto, aos leigos, as consequências arriscadas desse processo: livre, totalmente livre, a alma transformada já não deve submissão a nada, nem às orientações da Igreja institucional. A obra dessa autora será julgada e condenada pelo Tribunal da Inquisição. Em 1310, Marguerite Porete será queimada viva em praça pública, no centro de Paris.

IHU On-Line – A senhora afirma que Marguerite Porete, para se fazer entender e expressar sua experiência mística, foi filósofa, teóloga e poeta. Como essas suas “personalidades” dialogam em torno da mística?

Ceci Baptista Mariani – Marguerite nos parece, a partir da sua obra, uma mulher tomada por uma missão: anunciar o caminho de transformação operado por Deus na alma. Uma mulher que conheceu um amor maior do que todos, um amor infinito, e que, perdidamente apaixonada, se põe a falar sobre essa experiência indizível. Seu desejo é anunciar a liberdade perfeita adquirida nessa relação total. Uma mulher, no entanto, que, sendo beguina, não fez o caminho comum das mulheres dentro do casamento ou no interior de um convento. Estando no mundo, e vivendo do próprio trabalho, teria gozado de independência social e religiosa. Consta que teria sido uma mulher erudita. As crônicas da época se referem a ela como beguina clériga. Seria possuidora de uma cultura para além da educação comum oferecida às mulheres laicas. Como clériga, teria sido cultivada na ruminacio das Escrituras e na lectio das obras teológicas.
Segundo Luisa Muraro , Marguerite conhecia o texto sagrado por leitura direta, o lia e o comentava publicamente em francês. É possível também, através de uma análise comparativa, perceber as múltiplas correspondências entre o Mirouer e os tratados teológicos mais lidos da época. Constata-se assim a familiaridade de Marguerite com a obra das escolas de pensamento cisterciense, vitorina ou ainda cartuxa. Toda essa vivência, me parece, Marguerite teria colocado a serviço do anúncio dessa experiência de Deus pela qual se sente tomada. Tudo parece estar ordenado à sua experiência mística; ela usa todos os recursos de que dispõe para realizar uma tarefa impossível: falar sobre uma realidade que se encontra fora do domínio da linguagem, sobre uma dor e uma alegria sem parâmetros dentro do domínio da imanência.

IHU On-Line – Segunda a senhora, Marguerite expressa uma “síntese entre teologia negativa e poesia trovadoresca”. Como isso se dá?

Ceci Baptista Mariani – Em sua obra, Marguerite responde ao desafio da Teologia Mística com um poema de amor. A teologia negativa ou teologia mística, que tem como referência Dionísio, o Areopagita, elabora-se buscando conectar imanência e transcendência, como uma sabedoria sobre a indizível transformação que o amor opera no mundo e em nós que se afirma como negativa por se reconhecer incapaz de falar adequadamente do Infinito do Amor e do dom que sobrevem como “ideia de Deus”. A mensagem anunciada em nome desse amor, propondo um projeto de maior realização da criatura pela graça e pelos caminhos do amor, vai além do que ela recebeu, mas vai também no sentido de sua aspiração infinita.
A teologia negativa, no entanto, introduz uma crise na realização da vocação humana à transcendência que, dentro dessa perspectiva, supõe um trabalhoso exercício do intelecto de superação pela negatividade. A partir da teologia negativa chega-se à Idade Média, afirmando a total impossibilidade para a inteligência humana de alcançar ou ser elevada ao conhecimento de Deus. A essa crise corresponde a resposta escolástica de Tomás de Aquino , mas também a resposta poética de Marguerite Porete que vai ousar falar de Deus e a Deus em trovas, elaborando uma teologia ousada que se expressa em cantigas sobre e ao amor infinito, aquele que transcende a todo nome, mas que, tomada por tão grande amor, a alma não se contém em anunciar, mesmo sob o risco de mentir, isto é, de não ter recursos para falar. Com a canção da alma aniquilada que constitui a parte final da obra, Marguerite anuncia que Deus é cortesia, amor de delicadeza que ama com “fino-amor”, oferecendo-se sem deixar-se dominar. Deus é esse amor impossível de ser possuído e que, ao mesmo tempo, se oferece ao desejo possibilitando que amante se transforme no caminho para o Amado.

IHU On-Line – O que foi o Movimento Beguinal, do qual Marguerite Porete teria feito parte? Em que pontos houve sintonias ou tensões entre esse movimento e a instituição eclesial da época?

Ceci Baptista Mariani – O Movimento Beguinal sendo parte da renovação da vida religiosa em andamento desde o século X, colaborou para que o “povo cristão” pudesse participar também do ideal de perfeição espiritual ao estilo monástico, pudessem aspirar mais do que uma participação passiva da vida da Igreja. Enquanto movimento de leigos, o Movimento Beguinal, foi desde muito cedo, alvo da desconfiança eclesiástica. A primeira notícia de reprovação a esse grupo encontra-se num pequeno tratado Scandalis ecclesiae redigido pelo franciscano Gilbert de Tounai e destinado ao Concílio de Lyon de 1274. Em uma seção intitulada De Beghinis, a obra ataca as interpretações da Escritura e o da língua vulgar para a leitura da Bíblia em reuniões que deviam ser comuns entre os membros desse grupo. Mais tarde, eles foram condenados pelo Concílio de Colônia (1306) e pelo Concílio de Viena (1311-1312), que reprova a instituição dos Begardos e Beguinas em dois decretos.
No primeiro, que diz respeito principalmente às beguinas, consta uma reprovação relativa à questão do hábito que elas usam, mesmo sem serem religiosas sob a obediência de uma regra aprovada. Consta também a acusação de que se perdem em “especulações loucas” sobre a Trindade e a essência divina, sobre outros dogmas ou pontos de doutrina e sobre os sacramentos. Num segundo decreto que se estende também aos begardos, o texto do Concílio enumera oito erros que vão se referir à ousadia de professar que o homem pode chegar à perfeição de Cristo, ao estado de “impecabilidade”, estado em que não se necessita de jejum ou oração, não se teme a fraqueza da sensualidade, não se deve mais obediência à autoridade humana nem à Igreja. Enumera também como erro a crença numa beatitude final acessível à natureza humana intelectual ainda nesse mundo, a ideia de que para esses perfeitos não existe mais necessidade de lutar para adquirir às virtudes e que a Eucaristia não requer mais a reverência (essa reverência para eles, afirma o Concílio, faz decair do estado de contemplação já alcançado).

Os erros apontados pelo Concílio de Viena refletem uma situação que ajuda a entender a condenação de Marguerite. De fato, existe uma correspondência entre eles e vários dos temas tratados no interior do Mirouer, temas que são tratados por ela, entretanto, com muito mais sutileza e profundidade. Isso mostra que ela não estava só elaborando uma vivência extravagante, mas era uma mulher de Igreja que foi capaz de recolher uma inspiração do tempo e trabalhá-la em profundidade. No entanto, uma experiência espiritual profunda está sempre sujeita aos riscos da incompreensão e dos exageros da banalização. O texto do Concílio de Viena nos informa sobre a difícil situação dessa mulher entre a popularização rasa de uma inspiração espiritual e o zelo pela ordem da instituição eclesiástica.

IHU On-Line – Qual a filiação do pensamento de Marguerite? Como se dá o seu diálogo com a teologia da época?

Ceci Baptista Mariani – A obra de Marguerite Porete está apoiada na tradição do neoplatonismo cristão cuja referência é Agostinho. Para esse autor, na interioridade do sujeito consciente está a Verdade, o objeto da sua filosofia é “a consciência, cujas profundidades e mistérios compete à inteligência desvendar...”. Marguerite se coloca nesse lugar, entre os que buscam o mistério pelo caminho da interioridade, relata sua experiência mística pessoal e, a partir dela, traça o caminho místico que fundamenta sua teologia. A palavra teológica de Marguerite Porete, no entanto, atravessa Agostinho e se aprofunda no sentido de insistir na impossibilidade do conhecimento de si e do conhecimento de Deus. Nesse sentido, ela se insere dentro da tradição da mística renana, onde a influência da teologia negativa de Dionísio, o Areopagita, é inegável. Marguerite se soma a essa teologia que assume como caminho a negatividade e pede despojamento, renúncia dos sentidos, das operações intelectuais, de todo o sensível e o inteligível, enfim, que pede que se deixe de lado o entender, no esforço de subir o mais possível até a união com aquele que está além de todo ser e de todo saber. Além disso, podemos ver também na obra de Marguerite Porete da teologia monástica que alguns autores traçam um paralelo entre sua obra e alguns escritos de Guilherme de Saint-Thierry .

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