Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Marguerite Porete: a alma entre aniquilamento e nobreza

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Moisés Sbardelotto

A nobreza, para Marguerite Porete, é a condição que nos vem do aniquilamento. Mais vale à alma, ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma aniquilada é nobre porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus nela, afirma Ceci Baptista Mariani

Há uma relação direta entre feminino e mística? Responder taxativamente pode ser arriscado. “Talvez possamos afirmar que, ao menos no âmbito da tradição cristã, especialmente no mundo medieval, tempo em que a teologia vai se autocompreendendo como ciência, tempo de valorização da razão, de ênfase na dimensão inteligível, encontramos mulheres que ousam fazer teologia e o fazem, sondando a própria experiência de Deus”. Para Ceci Baptista Mariani, professora de teologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, Marguerite Porete, mística francesa do século XII, manifesta bem a “imediatez mediada” que carcteriza a mística cristã. “A mulher no mundo medieval, não tendo voz entre os doutores, vai encontrar o caminho da arte para expressão da experiência de Deus. Poesia, teatro, música serão maneiras encontradas para narrar o caminho de encontro com o Amado”, afirma Ceci, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Em Marguerite, o aniquilamento é seu grande tema. É “fruto de um processo que implica várias mortes”: para o pecado, para a natureza, para o espírito. “A alma aniquilada, amorosa de Deus. lançando-se ao nada, recebe tudo, mais saber do que o contido nas Escrituras, mais compreensão do que a que está ao alcance da razão, ganha a liberdade perfeita e torna-se capaz de experimentar a ‘paz de caridade’”, explica a teóloga. E “a nobreza, para Marguerite Porete, é também a condição que nos vem do aniquilamento. Mais vale à alma, ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma aniquilada é nobre porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus nela”.

Ceci Baptista Mariani é professora de teologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, do Instituto São Paulo de Estudos Superiores e do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Unisal. É mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção e doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua opinião, qual a relação entre o “feminino” e a mística?

Ceci Baptista Mariani – Para se estabelecer uma relação entre o feminino e a mística, creio que é importante, em primeiro lugar, compreender bem o sentido desta última. Talvez a melhor maneira de falar de mística seja nos remetendo ao livro de Dionísio Areopagita , Teologia mística, cujo centro é a explanação sobre como Deus, o completamente incognoscível, se manifesta na criação a fim de que todos possam alcançar união com a não manifestada Fonte. Duas chaves de compreensão destacamos aqui: incognoscibilidade e união. Mística como caminho para o Mistério, é essa incrível pretensão de aproximação Daquele que, reconhecemos com grande humildade, por sua grandeza, não cabe nos limites do nosso conhecimento. Nesse sentido, ensina Dionísio, o caminho místico é o do despojamento. Supõe abrir mão de nossas mediações, ultrapassar todas as imagens, abandonar todas as seguranças. O místico conhece então, por experiência, que Deus é em tudo e além de tudo. Mistica, a partir dessa obra de Dionísio, é o grau de teologia a que se atinge depois de se passar por dois graus anteriores: o símbólico e o inteligível.

Não sei se podemos estabelecer uma relação entre o feminino e a mística. Talvez possamos afirmar que, ao menos no âmbito da tradição cristã, especialmente no mundo medieval, tempo em que a teologia vai se autocompreendendo como ciência, tempo de valorização da razão, de ênfase na dimensão inteligível, encontramos mulheres que ousam fazer teologia e o fazem, sondando a própria experiência de Deus. Olhando essas narrativas (algumas escritas por elas mesmas, outras por homens que encontravam valor nesse seu dizer), reconhecemos ali muito daquilo que a tradição cristã chamou de mística e que Dionísio sistematizou tão bem: incognocibilidade e união. Fora do domínio das mediações que pelo processo de sacerdotização da Igreja coube apenas ao homem, várias mulheres encontraram o paradoxal caminho da mística, atravessaram degraus, quebraram barreiras, e de “alma nua”, adentraram ao aposento do Amado.

IHU On-Line – Como a senhora analisa a mística cristã em geral, especialmente feminina, que se desenvolveu na Idade Média?

Ceci Baptista Mariani – A mística cristã vai afirmar a união com Deus em Cristo; ele é o Amado. Enquanto “ser um só espírito com o Senhor”, está radicada no Evangelho que constitui o seu núcleo. Em Paulo , a mística se concentra sobre a transformação do homem carnal e psíquico em homem espiritual que tem os mesmos sentimentos de Cristo. Para ele, segundo Congar , o Espírito que fez da humanidade de Jesus, uma humanidade completa de Filho de Deus, opera também em nós, transformando-nos em filhos no Filho, chamados a herdar a Promessa de Abraão, promessa ligada à fé de Abraão e que se realiza na economia da fé, não na da lei. No Filho, aprendemos a dizer “Abbá, Pai!”, a chamar a Deus com a mesma familiaridade que Jesus chamou. No Filho o próprio Deus se comunica conosco, se torna ativo em nós para aí suscitar os atos da vida filial, os de “Cristo em nós”.

Nesse sentido, o que caracteriza a mística cristã é uma imediatez mediada. Não é a substância de Deus que toma o lugar da nossa substância, mas em Cristo, a nós é comunicado um dinamismo, uma faculdade de ação, mas somos nós que agimos. Em Cristo, participamos da vida de Deus. Essa participação, no entanto, supõe um caminho, pois é um processo. A tradição mística vai descrever esse processo distinguindo nele primeiramente um momento da ruptura, no qual o místico, atendendo ao chamado para transcendência, fascinado pela visão do Absoluto, começa a despojar-se de tudo que o segura atado à imanência, de tudo o que nesse mundo parece oferecer segurança, de todos os seus amores e apegos, tudo se dissolve em nada. No bojo desse processo, um segundo momento é o do encontro. Esse é o momento em que se tem, testemunham as narrativas, uma espécie de sentimento de toda a realidade, a percepção de tudo em relação a esse Absoluto amoroso de onde tudo vem e para onde tudo vai. Outro momento é o da reconciliação universal, quando tudo o que se dissolveu em nada é devolvido e o místico, de posse da liberdade perfeita adquirida nesse processo, pode amar o mundo com amor incondicionado, absolutamente gratuito, amar o mundo como ele foi amado pelo Verbo Encarnado.

No contexto medieval, esse caminho para o encontro com o Mistério vai ser expresso de várias maneiras. No contexto escolástico podemos citar, por exemplo, a obra de São Boaventura , De tríplice via, que representa um campo de teologia mística constituído por um estudo sistemático, doutrinal, da jornada contemplativa da alma em direção a Deus por meio dos diferentes estágios da vida espiritual. São Boaventura descreve as três etapas indispensáveis para a ascensão do humano à felicidade perfeita para a qual foi criado: a da progressiva purificação (via purgativa), a da iluminação (via iluminativa) e a da união (via unitiva). Outra forma de expressão se dá a partir do ambiente monástico.

Aqui podemos citar Bernardo de Claraval e sua interpretação mística do Cântico dos Cânticos. A partir dele o tema do “matrimônio espiritual” vai se tornar quase que obrigatório na literatura mística. Bernardo vai tratar da união entre Deus e o homem em termos de união de vontades.

Uma terceira forma de falar do caminho para Deus será encontrada junto à poesia trovadoresca. O amor cortês também oferece boas possibilidades para falar desse amor total, amor despojado, amor infinito. Segundo Rougemont , em A história do amor no Ocidente, entre o Amor Cortês e a transformação descrita pelos místicos, existe mais do que uma analogia de palavras. Tanto uma realidade como outra vai se referir a uma fome, um amor desejante que não pode ser saciado porque se descobre tomado pelo amor infinito. Um amor forte como a morte. Nesse espaço menos eclesiástico, encontramos escritos de mulheres por elas mesmas – o que é um grande achado – ou por homens tocados pela importância e profundidade do que algumas mulheres relatavam a respeito da própria experiência de Deus. Uma obra interessante de Georgette-Burgard e Émile Zum Brunn vai trazer a nós a notícia de Mulheres trovadoras de Deus: Hildegard de Bingen, Mechthild de Magdeburgo, Beatriz von Nazareth, Hadewijch de Antuérpia, Marguerite Porete. A mulher no mundo medieval, não tendo voz entre os doutores, vai encontrar o caminho da arte para expressão da experiência de Deus. Poesia, teatro, música serão maneiras encontradas para narrar o caminho de encontro com o Amado.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição