Edição 385 | 19 Dezembro 2011

A mística e o mistério hoje

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Benno Dischinger


IHU On-Line – Quais foram as grandes etapas da “busca mística” de Teresa de Ávila?

Juan Martín Velasco – A vida de Teresa passa por uma primeira etapa semelhante em tudo à de numerosos crentes. Nascida numa família de cristãos de origem judaica, por linha paterna, e fervorosamente cristã, vive a infância num clima piedoso: aos doze anos perde sua mãe e se recomenda, como à sua nova mãe, à Virgem Maria; é depois internada num colégio de religiosas agostinianas e sente o chamado à vida religiosa, que a conduz, apesar da oposição de seu pai, ao mosteiro carmelita da Encarnação.

Após superar uma grave enfermidade que a teria levado às portas da morte e lhe deixara sequelas para o resto de seus dias, volta ao convento onde realiza a profissão religiosa. Seguem alguns anos de crise e estancamento na vida interior da qual vai tirá-la, aos 39 anos, uma dúplice experiência, suscitada pela contemplação de uma imagem “de Cristo muito chagado” e a leitura das Confissões de Santo Agostinho. Essa experiência vai supor sua conversão definitiva. O essencial dessa passagem decisiva consiste numa inversão da orientação da busca de Deus que nunca abandonara e do esforço por consegui-la. “Não me faltavam determinações”, porém “todas... aproveitaram-me pouco”. “Buscava remédios, mas sem resultados”, até que, quando suas forças começavam a fraquejar, abandona o intento de conseguir com seu próprio esforço que a Presença se produza, abandona a pretensão de autoafirmar-se, entrega-se a quem por diferentes caminhos está se anunciando em sua vida e aprende por experiência que “tudo aproveita pouco se, retirada a confiança em nós, não a pomos em Deus”. A partir deste momento, a vida de Teresa vai ser um processo continuado de chamadas, graças e dons de Deus a Teresa e de sucessivas entregas de Teresa nas mãos de Deus: “Para que fosse toda vossa”, “dar-me de todo a Deus”, “deixar a alma nas mãos de Deus, e Ele faça o que queira dela”.

A partir daí a nova vida que não fez mais do que iniciar-se desenvolver-se-á em três frentes principais. Duas exteriores e uma interior e determinante. A primeira leva-a a iniciar e desenvolver a tarefa, cheia de dificuldades, da reforma do Carmelo e a converte em fundadora de numerosos conventos reformados; a segunda no-la mostra entabulando relação com os mestres espirituais e os teólogos mais importantes de seu tempo, para discernir suas profundas experiências e, desenvolvendo uma infatigável tarefa de escritora, amplia o magistério oral que vinha exercendo com suas Irmãs. Mas o acontecimento fundamental de sua vida estava tendo lugar em seu interior. É o desenvolvimento de uma continuada experiência mística que havia começado como “um sentimento da presença de Deus, que de nenhum modo podia duvidar que estava dentro de mim ou eu toda engolfada nele”; continuaria na experiência cada vez mais intensa do mistério de Cristo e de sua presença em sua vida, e culminaria numa profunda experiência do Deus trinitário que, após havê-la convidado a buscá-lo em seu interior – “busca-me em ti” –, manifestava-se que era ela que precisava encontrar-se Nele – “busca-te em mim”.
Baseada nesta experiência pessoal, Teresa propõe em suas obras um itinerário preciso, um caminho de perfeição para suas filhas, as monjas que encheram seus conventos reformados, e para todos aqueles que se sentem atraídos por essa forma de vida centrada em “o único necessário”.
Santa Teresa aprendeu, graças à sua conversão, que o princípio do caminho para Deus está no próprio Deus, que tudo depende de sua presença e tem sua origem em seu chamado. Ao homem toca tão só tomar consciência e concordar com ele para assim coincidir com a força de atração que ele imprime no mais íntimo de sua alma. Essa consciência se concretizará na conformidade da própria vontade com a vontade de Deus e em poder dizer com toda verdade e com toda a vida: “Faça-se tua vontade”. Aqui está a substância e o fim da vida cristã.

Para chegar a esse fim, é indispensável dar muitos passos, utilizar muitos recursos, servir-se de numerosos meios. O primeiro, o mais importante, o caminho real para chegar a “beber da água da vida”, é a oração. Por isso a descrição do caminho da perfeição cristã vai centrar-se, para a Santa, na descrição da oração. Porque fala para suas monjas que a oração é “o ofício dos religiosos”. Embora ela nunca perca de vista que a oração é porta, meio e caminho, e que a meta e o fim é a união com Deus pela conformidade da própria vontade e de toda a vida com a vontade de Deus.

IHU On-Line – Na experiência mística de Teresa de Ávila, qual é o valor e o lugar da oração? A quem se dirige em seus momentos espirituais?

Juan Martín Velasco – Geralmente, a Santa centra seu magistério na oração mental, da qual correntes muito poderosas de seu tempo queriam excluir leigos e mulheres. No entanto, para que haja oração mental, não é preciso que a boca esteja fechada. Recitar o Pai Nosso “inteiramente, entendendo e vendo que falo com Deus, com mais advertência que nas palavras”, é ao mesmo tempo oração vocal e mental. Por outra parte, oração mental não consiste em “pensar muito”, “por que o negócio não está todo no pensamento”. O essencial da oração se reduz, para a Santa, ao trato amoroso com o Deus que nos ama: “Não é outra coisa a oração mental... senão tratar de amizade, estando muitas vezes tratando sozinha com quem sabemos que nos ama”.

“Trato” refere-se a toda forma de comunicação interpessoal, com especial insistência na simplicidade, cercania e familiaridade: contanto que a raiz e a substância seja a resposta amorosa ao amor de Deus. Tem-se dito com razão, e temos recordado antes, que a oração é religionis actus, colocação em ato da relação religiosa; fidei actus, colocação em ato da fé. Santa Teresa parece coincidir no fundamental com tais definições, porém insistindo nesta outra dimensão da atitude teologal que é o amor, a caridade. A oração em sua essência é assim, para ela, a colocação em ato do amor de Deus, o amor de Deus em exercício. Antes que atos concretos, e sustentando sua inevitável variedade, a oração é atitude de advertência e reconhecimento da Presença de Deus, escuta de seu chamado e intercâmbio amoroso com quem “sabemos que nos ama”.
O desenvolvimento desta atitude fundamental e seu exercício concreto dependem da condição humana, corporal e histórica do orante, por uma parte, e do Mistério divino, origem e termo da relação que se estabelece, por outra. Assim, o exercício da oração mobiliza a condição corporal suscitando palavras, lágrimas, êxtases e outros fenômenos corporais do sujeito. Passa por fases, cresce, amadurece e se desenvolve ao longo de sua vida: impregna o exercício de sua inteligência, faz vibrar sua dimensão afetiva e suscita opções e decisões de sua vontade. No final, como veremos, termina impregnando a vida em seu conjunto e a converte em ato permanente de adoração e em hino de louvor.

IHU On-Line – Como analisa o itinerário espiritual de Teresa de Ávila? Que simbologia e semântica são por ela utilizadas para descrever suas experiências místicas?

Juan Martín Velasco – Uma relação que tem em Deus sua origem e seu termo está chamada a progredir sem fim. Teresa viveu em sua oração um processo de desenvolvimento permanente que a levou a progredir na profundeza da própria interioridade, a abismar-se cada vez mais profundamente no Mistério divino sobre o qual descansa, a uma consciência cada vez mais translúcida dessa presença em seu interior, e a uma progressão constante na conformidade à sua vontade. Com uma arte dificilmente superável soube, ademais, analisar e descrever seu itinerário espiritual e oferecer distintas versões das etapas mais importantes do mesmo. Assim, no tratado sobre a oração incluída na Vida, expõe, sob a alegoria da água com que o hortelão rega o horto, quatro graus de oração, representados pela meditação: a água tirada com grande esforço e de um resultado pequeno; a oração de quietude representada pela água tirada “por um torno e aquedutos”, quando a ajuda de Deus reduz a necessidade de esforços e concentra a relação com Deus num simples movimento da vontade atraída pela Presença que a embarga; a oração extática na qual a Presença inunda as faculdades do homem e as “embriaga” ou “adormece”, representada por uma água que procede de uma “corrente de rio ou de fonte”, na qual Deus “é quase o hortelão e quem faz tudo”; e, por último, a oração de união, representada pelo “chover muito”, quando Deus rega o horto “sem trabalho nenhum nosso”. É sabido que o livro das Moradas desenvolve as quatro formas de oração do livro da Vida, expressando com as imagens das moradas, a larva de seda que se transforma em mariposa, a água e, sobretudo, a imagem dos esponsais e o matrimônio, a progressiva união da alma com Deus e as formas de oração em que se expressa, se exerce e se padece.

A insistência na oração não faz Teresa perder de vista que esta não é o fim da vida cristã, senão um meio, embora indispensável. Essa orientação, subordinação da oração à vida cristã que a requer, sem dúvida, mas que não se esgota nela, está insistentemente sublinhada na obra dessa santa com diferentes argumentos. As obras, as virtudes e, especialmente, o amor de Deus manifestado no amor mútuo ou no amor do próximo são propostas uma e outra vez como o fruto que todos os outros meios estão chamados a produzir e como o critério único que garante a autenticidade da oração, com os estados interiores, os gostos e até os fenômenos extraordinários que em determinadas circunstâncias traz consigo: “Não, irmãs, não; o Senhor quer obras, e se tu vês uma doente a quem podes dar algum alívio, não percas por nada essa devoção”.
A razão última dessa subordinação da oração está em que a perfeição consiste na união com Deus e esta se realiza “na união verdadeira com a vontade de Deus. Esta é a união que em toda minha vida tenho desejado, esta é a que peço sempre a nosso Senhor...”. Porque “somente estas duas (coisas) nos pede o Senhor: amor de sua Majestade e do próximo”.

Por isso, numa das ocasiões em que a Teresa se propõe aclarar “em que está a substância da perfeita oração”, orienta a resposta para o amor: “O aproveitamento da alma não está em pensar muito, mas em amar muito”.

Por outro caminho, a Santa mostra o necessário ordenamento da oração e a contemplação à vida diária e às tarefas de serviço e amor que comporta. Como haviam feito outros grandes teóricos e práticos da contemplação, santa Teresa lê o texto evangélico de Marta equiparando a tarefa das duas irmãs, declarando ambas indispensáveis e até concedendo às vezes a primazia a Marta: “Marta e Maria hão de andar juntas para hospedar o Senhor: como lhe daria hospedagem Maria, sentada sempre a seus pés, se sua irmã não lhe ajudasse?”. “ Marta e Maria nunca deixam de atuar juntas”. E, dirigindo-se a suas monjas, isto é, a contemplativas: “Santa era santa Marta, embora não digam que era contemplativa. Pois pensai que esta congregação é a casa de santa Marta”.

IHU On-Line – Que desafios a mística apresenta à Igreja institucional em uma sociedade tecnocientífica? Como a mística pode contribuir com uma fé mais madura e atualizada?

Juan Martín Velasco – Há uma atualidade da mística numa época de eclipse cultural e social de Deus e de profunda e massiva crise das religiões estabelecidas. Uma atualidade originada pela sede de experiência espiritual de que muitas pessoas padecem numa cultura instalada na imanência e que esquece e até reprime o cultivo das dimensões mais profundas do ser humano.
Mas isso supõe não só uma reação ao positivismo empobrecedor de uma cultura somente científico-técnica que ameaça asfixiar as pessoas. Constitui, ademais, um protesto silencioso contra a pobreza espiritual das Igrejas e das religiões estabelecidas. Delas é possível que se possa decidir, como os profetas de todos os tempos têm dito dos aparatos religiosos de seu tempo, que o povo padece da fome de Deus, da experiência de sua presença, e os responsáveis religiosos lhe oferecemos doutrinas, normas, ritos e submissão a uma instituição que às vezes ocupa o lugar de Deus em vez de remeter a Ele. Talvez isso explique o afastamento silencioso de muitos que abandonam as igrejas. Seguramente isso explica também a atonia espiritual de muitos dos que nelas permanecem – permanecemos? – por tradição, costume ou inércia.
Há já mais de um século, Newman  advertia que uma religião reduzida à prática herdada estava condenada a terminar, nas pessoas cultas, na indiferença, e nas simples, na superstição. A crise de nossas igrejas está confirmando sua previsão. Saberemos interpretar, como Igrejas, o sinal dos tempos que supõe, por uma parte, o abandono de tantos de seus membros, e, por outra, a sede de experiência, o desejo de transcendência, o interesse pela mística, a busca do espiritual que manifestam grupos cada vez mais importantes e variados de pessoas? Interpretá-lo adequadamente exigiria de nós respostas muito radicais: a conversão pessoal ao essencial do Evangelho e a reconversão das envelhecidas estruturas dos aparatos institucionais de nossas Igrejas.

IHU On-Line – É possível ser místico hoje?

Juan Martín Velasco – “Que homem razoável quer hoje a divinização?”, perguntava-se um conhecido teólogo crítico. O tema do intercâmbio entre Deus e o homem, tão presente nos antigos escritores cristãos, e que tão candente resultava em seu tempo, careceria, segundo esse teólogo, de todo interesse numa época como a nossa, de ausência e de eclipse de Deus. “O problema atual – sentenciava – não é tanto a limitação do homem, como sua humanização”. Como não podia ser de outra forma num teólogo, ele matizava depois que, dada a desumanização do homem que seguiu ao processo moderno de desdivinização, e que as “divindades” que substituíram o Deus cristão: Estado, raça, ciência, dinheiro etc. têm resultado terrivelmente desumanizadoras, muito bem poderia suceder que a atual situação constitua uma confirmação da velha verdade de que sem Deus não é possível uma verdadeira humanização do homem. Considero que o teólogo em questão está mais acertado na matização do que na afirmação primeira. Porque o homem, feito para Deus (“Fizeste-nos, Senhor, para Ti...”), a ser “com um Mistério no coração que é maior que ele mesmo” (H. Urs von Balthasar ) não pode realizar-se plenamente mais do que reconhecendo esse Mistério e assentindo a ele.

Os místicos, verdadeiros exploradores do infinito no homem, disseram isso de muitas maneiras. Pois debaixo de seus muitos desejos o homem é “desejo abissal”, desfundado no fundo sem fundo de Deus. Dito de forma mais simples: “Estando a vontade / de Divindade tocada / não pode ficar apagada / senão com Divindade” (São João da Cruz).
Naturalmente, isso não significa que somente os indivíduos religiosos se realizam verdadeiramente como humanos. Pessoas não religiosas e que até rechaçam formalmente a Deus dão mostras de haver tomado consciência da Transcendência que habita no homem, e de havê-la reconhecido por outros caminhos que não os religiosos, tais como uma vida moral digna ou o reconhecimento do valor incondicional que representa a pessoa do outro. Por outra parte, temos indícios para suspeitar de um reconhecimento efetivo de Deus em pessoas às quais determinadas circunstâncias têm podido conduzir a posturas aparentemente ateias e até niilistas. É Cioran , que havia chegado a escrever: “fora do suicídio não há salvação”, e que assegurava que não aguentaria nem um só dia no paraíso, que se perguntava: “Como explicar, então, a nostalgia que tenho dele? Não a explico: vive em mim desde sempre, estava em mim antes que eu”. Essa nostalgia era para ele, não me cabe dúvida, sinal da presença, de algum modo reconhecida, de um Deus, talvez desconhecido, nele.
Místicos hoje? Estou certo que sim. Místicos enquanto existam seres humanos, embora provavelmente sob formas tão variadas como eles e os tempos em que lhes caiba viver.

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