Edição 385 | 19 Dezembro 2011

A mística e o mistério hoje

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Benno Dischinger


IHU-On-Line – Em sua opinião, qual a natureza específica da linguagem mística?

Juan Martín Velasco – A comparação das linguagens, comuns em muitos aspectos, das tradições místicas tem colocado em relevo uma série de traços que as caracterizam até o ponto de que se possa falar de um modus loquendi, de uma linguagem mística, ou uma linguagem dos místicos. Ela não se reduz a nenhum gênero literário preciso. Os místicos falam como tais sob formas poéticas, em relatos autobiográficos, em textos parenéticos e declarações com intenção pedagógica, e até sob a forma de reflexões de índole filosófica ou teológica. Naturalmente, em cada um de tais gêneros se manifestam de formas distintas os traços próprios da linguagem mística. Esses traços podem reduzir-se no essencial ao seguinte: a linguagem mística se propõe em todos os casos como linguagem de uma experiência e estreitamente ligada a ela. Disso resulta que nela, sobretudo em suas formas mais originárias, predomine a função expressiva da linguagem sobre todas as outras funções da linguagem humana. “A linguagem mística é necessariamente diversa da filosófica – e também da teológica, poder-se-ia acrescentar –, porque aqui se trata de tornar sensível a mesma experiência – e que experiência! –, a mais inefável de todas” .
Desta primeira propriedade da linguagem mística seguem-se todas as outras e, em primeiro lugar, a condição simbólica de todos os seus elementos. Não é somente o fato que a linguagem mística esteja esmaltada de símbolos; é que toda ela é simbólica. Basta aludir ao prólogo de São João da Cruz às Declarações a seus poemas para se ter expressões de uma clareza meridiana sobre o que impõe à linguagem mística sua condição simbólica.

A referência a uma realidade de outra ordem do que as que significam em seu sentido literal os termos que utiliza forçam o místico ao recurso constante ao paradoxo, à antítese, ao oxímoro. Essa mesma referência explica a presença nessa linguagem de constantes alusões à inefabilidade do que pretende expressar e a presença do silêncio como horizonte e clima – “tudo envolto em silêncio” (São João da Cruz) – no que o místico inscreve palavras que sempre considera insuficientes. Em definitivo, é a condição “anagógica” da experiência que está na origem da linguagem mística o que origina a necessária analogia, o caráter simbólico e metafórico de todos os termos de que se serve.

IHU On-Line – Em linhas gerais, quem foi Teresa de Ávila? Qual a atualidade de sua vida e obra?

Juan Martín Velasco – Teresa de Cepeda y Ahumada, Teresa de Ávila, Teresa de Jesus, como quis chamar-se a si mesma, é uma figura de talhe extraordinário. Seus dotes pessoais, seus escritos, sua ação reformadora lhe valeram um lugar na história da literatura espanhola, devido “à pureza e facilidade de estilo”, “graça e boa compostura das palavras”, “elegância desafetada que deleita em extremo” (Frei Luis de León); na história do pensamento, como adiantada à experiência moderna da subjetividade; na história da Igreja, como promotora de uma reforma que serviu de modelo à renovação católica da vida religiosa; e até na história em si, pela influência social que exerceu sua forma revolucionária de viver a condição feminina.

Um texto da santa resume com admirável concisão as razões de seu prestígio espiritual e de seu magistério. Essas razões não consistem em dotes ou méritos seus. Consistem numa tríplice mercê com que Deus a agraciou: “Porque uma mercê é dar o Senhor a mercê, outra é entender que mercê e que graça, e outra é saber dizê-la e dar a entender como é”. A mercê da qual fala é a estreita união com Deus no fundo da alma, uma presença dinâmica que é presente e dom permanente que origina no ser da pessoa sua condição de imagem, sua elevação à relação de filho de Deus. A segunda mercê: “Entender qual é a mercê e qual é a graça” caracteriza as pessoas que acederam ao nível da vida mística. Nelas a presença originante e divinizante, reconhecida e consentida pela fé, aflora ao nível da consciência e é vivenciada, sempre no interior da fé, difundindo-se num novo conhecimento, numa nova forma de querer e de viver, que dão transparência ao próprio sujeito e aos que vivem com ele, o manancial do qual brota sua vida.
Essas duas primeiras mercês fazem de Teresa um eminente testemunho da vida mística cristã. A terceira mercê: “Saber dizê-la e entender como é”, nos simples colóquios com suas irmãs e na continuação desse magistério em seus escritos, convertera Teresa na mestra da vida espiritual reconhecida ininterruptamente durante os quatro longos séculos que passaram desde sua morte e, de forma oficial, na atribuição por Paulo VI do título de Doutora da Igreja.

IHU On-Line – Como se manifesta a mística de Teresa? Em que consiste sua experiência?

Juan Martín Velasco – Como todos os místicos, santa Teresa fala de experiências, fala por experiência. Mas não é fácil encontrar um autor no qual o tema da experiência adquira a multidão de modulações que alcança na Santa. Assim, a experiência é o fundamento de seu saber e da credibilidade de seu magistério: “Não direi nada que eu não tenha experimentado muito”; “o que eu disser, ei-lo visto por experiência”; “creiam-me isso, porque o tenho por experiência”. A experiência se refere sempre ao conhecimento que procura ter passado por aquilo de que se fala, tê-lo vivido pessoalmente: “Sei por experiência, que a alma que neste caminho de oração mental começa a caminhar com determinação... tem andado grande parte do caminho”; “mostra-se Senhor verdadeiro. Isso tenho experimentado muito”. A experiência procura um saber mais claro e certo que qualquer outro conhecimento: “Quem tem experiência o vê muito claramente”; “sei eu por experiência que é verdade isso que digo”.

A experiência é, ademais, o único caminho para saber o que, por exceder suas capacidades, não depende do sujeito e é a base que permite aos que recebem seu testemunho conhecer o que lhes manifesta: “Faz Deus outra mercê bem dificultosa de entender se não há grande experiência”; “a experiência dará isso a entender, que quem não a tivesse, não me espanto lhe pareça muito obscura”; “é uma amizade... que somente as que a experimentais a entendereis”. A experiência é também o recurso mais eficaz, e algumas ocasiões o único eficaz para discernir a verdade, a autenticidade e a origem divina das vivências e estados de consciência pelos quais passa o sujeito: “Quem tiver experiência do bom espírito entenderá se é de Deus ou do demônio”. A experiência, que garante o expressado por quem a vive, é, ademais, o fundamento da clareza e da coerência das expressões que suscita: “Algumas vezes consiste em experiência o sabê-lo dizer”; “eu sei isso muito bem por experiência e assim o soube dizer”; “do que não há experiência, mas se pode dar razão certa”.
Uma última referência me parece decisiva para mostrar a lucidez que comporta este recurso da santa à experiência como meio para a vida cristã. A experiência não se reduz a um estado de ânimo com as conotações psicológicas que comporta; ademais, não substitui a de quem a vive. Ao contrário, as múltiplas experiências, por mais gostosas e certas que sejam, procedem da fé, meio único para a união com Deus: “Eu sei que quem nisso não crer não o verá por experiência”. Uma sentença, fundamental para entender o alcance deste capítulo importante da espiritualidade teresiana, na qual ressoa o eco de toda a tradição cristã: “Pois quem não crer não terá experiência, e quem não tiver experiência não conhecerá” (Santo Agostinho).

Por último, a experiência da qual fala santa Teresa não consiste tão somente nos acontecimentos extraordinários, nos fatos internos extraordinários que balizan sua vida. Ao contrário, é sua vida inteira que oferece o conteúdo à relação de Deus com ela e a suas respostas ao amor com que Deus a presenteia. À luz da presença reconhecida de Deus, sua vida inteira se converte em “matéria” para a experiência de Deus. Daí resulta a importância dos escritos autobiográficos no conjunto de sua obra e o componente autobiográfico de toda a sua doutrina espiritual.

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