Edição 377 | 24 Outubro 2011

Agronegócio, transgênicos, agrotóxicos e a alternativa da agroecologia

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Thamiris Magalhães


IHU On-Line – No que consiste, de fato, a economia solidária? Quem são os maiores beneficiários desta alternativa?

Daniel Tygel – Do ponto de vista econômico e da oferta de produtos e serviços, a Economia Solidária se expressa em iniciativas nas quais não há patrão nem empregados: todos os trabalhadores/as são ao mesmo tempo donos/as do empreendimento, ou seja, responsáveis pela tomada de decisão coletiva sobre os rumos de cada empreendimento. Isso é chamado de autogestão. A Economia Solidária é também um movimento social, pois seus atores se organizam e debatem politicamente o atual modelo de desenvolvimento e as alternativas necessárias, as políticas públicas e a articulação com outros movimentos sociais de transformação social. Ela se baseia em um desejo de transformação social, política, cultural e econômica através da radicalização da democracia no âmbito econômico. É também um jeito de estar no mundo e de olhá-lo, baseado nas perspectivas da cooperação, da diversidade, da autonomia e da afirmação dos vários saberes e lógicas econômicas, tanto individuais como coletivos.

A economia solidária se expressa através de iniciativas econômicas dos mais diversos tipos e setores de atividade. Grupos de produção urbana, catadores de material reciclável, artesãs e artesãos, coletivos de prestação de serviços, iniciativas comunitárias de finanças solidárias (bancos comunitários e fundos rotativos), empresas recuperadas pelos antigos operários e operárias, iniciativas agroextrativistas, agroecológicas, cooperativas solidárias... A lista não para. Pelas vantagens que citei na questão anterior, percebe-se a intencionalidade do movimento de economia solidária em se comprometer com o bem-viver da sociedade como um todo. No aspecto produtivo, mais especificamente, com o bem-viver das trabalhadoras e dos trabalhadores já organizados em empreendimentos ou que querem se organizar coletivamente. No aspecto do consumo e do desenvolvimento justo e sustentável, a Economia Solidária dirige-se ao cidadão comum como consumidor.

IHU On-Line – Quais são as alternativas para o atual modelo agroalimentar?

Daniel Tygel – Há um mito da eficiência e produtividade do sistema agroalimentar hegemônico que é simplesmente falso. A produção agrícola extensiva depende de insumos químicos, agrotóxicos, grandes máquinas e exige concentração de terras e monoculturas. Por isso ela tem custos sociais, ambientais, de saúde e culturais enormes, que normalmente são velados e cobertos pelo Estado. Há uma infinidade de exemplos em que circuitos agroalimentares locais, sobre os quais os agricultores e a população local têm o controle, dão conta de garantir a alimentação saudável e adequada a quem vive no território. Esses circuitos são totalmente diferentes dos circuitos globais não territorializados que dependem de flutuações mercantis e dos interesses de acionistas ávidos por fazer render seus investimentos. Portanto, a construção de alternativas ao atual modelo agroalimentar passa pelo estabelecimento, organização e fortalecimento de redes e circuitos de produção, de comercialização e de consumo solidários, avançando na autonomia, nas relações de confiança, na proximidade e na transparência entre os produtores e os consumidores.

O fortalecimento de tais alternativas passa também pela alteração das políticas públicas de fomento e assessoria técnica e dos instrumentos de financiamento e crédito. Além disso, devem ser superadas as inúmeras barreiras e bloqueios existentes ao acesso a políticas públicas pela produção artesanal, agroecológica e de economia solidária, em especial na inspeção e vigilância sanitárias e nas cargas tributária e fiscal. Além disso, o atual marco regulatório e de políticas públicas nesses campos é totalmente voltado a uma lógica de desenvolvimento, mercado e produção das grandes empresas, do latifúndio e do agronegócio, sendo, portanto, totalmente inadequadas para a consolidação de alternativas agroalimentares para a sociedade. Sem a alteração desse marco, não é possível a popularização e consolidação de outros modelos agroalimentares agroecológicos e com base na economia solidária.

IHU On-Line – Em que sentido programas como o de alimentação escolar (PNAE) e de aquisição de alimentos (PAA) contribuem para a agricultura familiar e camponesa?

Daniel Tygel – As iniciativas que formaram a base dos debates do seminário de soberania alimentar, agroecologia e economia solidária reafirmaram a importância do PAA e do PNAE como políticas públicas em que o Estado exercita seu papel de consumidor de forma responsável. Esses programas garantem o escoamento, a preços estáveis, de parte da produção da agricultura familiar e camponesa. Eles, entretanto, não são e nem devem ser a única ou a principal fonte de sustentação financeira dessas iniciativas. Tais programas ainda atingem a uma parcela muito pequena da produção da agricultura familiar, e não há uma meta bem definida de sua expansão, seja no valor global, seja na quantidade de agricultores familiares a se beneficiarem. Durante o seminário no Encontro, tais programas foram avaliados, e um aspecto importante foi a reação que tem ocorrido nos territórios por parte de grandes empresas ou de seus sindicatos patronais que normalmente dominam o mercado institucional e que passam a se sentir ameaçados com esse tipo de programas. Têm ocorrido casos, especialmente nos setores de agroindustrialização e de processamento, como, por exemplo, a produção de doces, compotas e polpas, em que estas empresas promovem uma guerra através de denúncias à vigilância sanitária e de propaganda negativa (em rádios e TVs locais) buscando destruir a imagem da agricultura familiar e camponesa, dos assentamentos e da produção coletiva e associada. Percebe-se, nessa disputa, como os agentes de inspeção sanitária dão tratamento diferenciado: enquanto fazem vista grossa ao fiscalizar grandes empresas, dando pequenas notificações e alertas, agem, por outro lado, com severidade e rigor ao visitarem os pequenos estabelecimentos da agricultura familiar e camponesa, causando prejuízos ao fecharem imediatamente estes espaços.

IHU On-Line – Por que a agroecologia e a Economia Solidária ainda são alternativas pouco utilizadas no Brasil? O que falta para suas reais efetivações? Quais são os desafios para a implementação da economia solidária e da agroecologia no país?

Daniel Tygel – Não existe atividade econômica independente da estrutura, organização e apoio do Estado. O BNDES, por exemplo, desembolsou mais de 190 bilhões de reais em financiamento a empresas em 2010. A indústria automobilística se beneficiou de descontos impressionantes do IPI durante a crise de 2008 e agora na nova onda de crise em 2011. (Estudos do IPEA deste ano comprovam que o poder público investiu mais no automóvel individual do que no transporte público nos últimos anos!) A liberação de sementes transgênicas beneficia diretamente um império restrito de gigantescas corporações multinacionais. A política de assessoria técnica privilegia uma lógica de produção agrícola baseada no agronegócio insustentável ambientalmente e as receitas sem diálogo com a realidade local. A impunidade a assassinatos de lideranças de movimentos sociais de luta pela terra estimula um sentimento de ameaça e de intimidação à organização popular. A liberação de Belo Monte e apoio financeiro público a esta obra, apesar de seus enormes impactos ambientais e duvidosos resultados econômicos e energéticos, desestimula a produção descentralizada e ambientalmente limpa de energia. A simplificação cada vez maior da organização em micro e pequena empresa e como empreendedor individual, ao mesmo tempo em que se dificulta a organização coletiva em cooperativas e feiras populares, implica no fortalecimento de uma lógica competitiva e individualista de produção, centrada no lucro, e na fragilização de conquistas no âmbito das relações trabalhistas.

Poderia continuar esta lista por um longo tempo, para afirmar algo muito simples: o modelo hegemônico de produção agrícola e de desenvolvimento é completamente contrário à produção agroecológica e a uma Economia Solidária. Não é possível o convívio do agronegócio, dos transgênicos e dos agrotóxicos com a agroecologia. Não é possível o convívio de um modelo de desenvolvimento capitalista com as redes e cadeias de produção, comercialização e consumo solidários. Portanto, é natural que estas práticas sejam ainda muito marginais e invisibilizadas. Estamos, portanto, falando de interesses antagônicos: a agroecologia e a economia solidária trazem em seu seio os germes de uma sociedade em que a cooperação e a vida estão acima da competição e do lucro. O agronegócio, as corporações e o mercado financeiro se orientam pelos interesses econômicos de algumas poucas e influentes famílias e grupos empresariais ou de acionistas.

Nesse sentido, os desafios são muito grandes no acesso a crédito, a conhecimento, a assessoria técnica, a mercado, na participação efetiva na elaboração e no monitoramento de políticas públicas, inclusive a política econômica. As políticas existentes, sejam elas de fomento ou de promoção do desenvolvimento, não são adaptadas às especificidades da agroecologia e da economia solidária, e não é por acaso. Cada iniciativa agroecológica, cada empreendimento de Economia Solidária, significa uma resistência revolucionária, um passo rumo a mudanças estruturais de nosso país e do mundo. O domínio, por parte destes mesmos grandes grupos econômicos, dos meios de comunicação e sua influência sobre o parlamento através das doações de campanha, produz um ambiente simbólico (propaganda, novelas, telejornais ideologicamente controlados, promoção da cultura da competição, do consumismo e do individualismo) e político (criminalização dos movimentos sociais, bloqueios ao acesso da agroecologia e economia solidária às políticas públicas) que é contrário à consolidação da economia solidária e da agroecologia. Haja vista esse ambiente extremamente adverso, temos, ao contrário do que parece, uma quantidade enorme de empreendimentos, redes, e iniciativas agroecológicas bem sucedidas e que efetivamente trazem consequências positivas para os territórios em que estão, como se pôde observar nas exposições durante o seminário do Encontro. Imagine então se houvesse um ambiente favorável!

No âmbito interno aos movimentos sociais, há o grande desafio de lidar com a eterna tensão entre a necessidade de sobrevivência econômica e a luta política. Tanto a agroecologia como a economia solidária estão no campo produtivo e econômico, ao mesmo tempo em que são movimentos políticos com horizonte de transformação estrutural da sociedade.

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