Edição 367 | 27 Junho 2011

O riso e o hiato da condição humana

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Márcia Junges



Contradição existencial

O humor, mesmo que possa se prender ao inconsciente, consiste para Freud em uma contribuição do supereu para o cômico. O ponto de intersecção destas diferentes modalidades de riso se encontra se encontra no centro do culto ao deus Dionísio, o falo. Este falo simbólico que opera sua função somente se velado faz surgir a verdade do sujeito na revelação específica do cômico, visto que ele presentifica o desejo inconfessado no instante em que se dá a queda do falo. Assim, poderíamos ler o exemplo que referi acima, da senhora chique que escorrega em uma casca de banana e se estatela no passeio público, acompanhada pelo olhar de gozação dos transeuntes. Do que é mesmo que eles riem?

Retornamos sempre ao mesmo ponto, ou seja, como lidamos com esse estranho em nós mesmos? Voltando ao trágico, este pode se apresentar em relatos aparentemente banais da vida cotidiana, como o jovem se queixava a respeito de suas dificuldades em progredir na vida, tanto no trabalho quanto no estudo, e muito mais ainda em sua vida amorosa. Logo se lembra de pensamentos fugidios que o atormentam, dos quais consegue situar um: tem um pensamento terrível de que seu pai iria morrer se ele não fizesse determinadas coisas. Não se sente à vontade para falar destas coisas, pois as considerava idiotas. Finalmente as revela: para que seu pai não viesse a morrer por sua causa, deveria contar até quatro e depois descontar até zero ou dar três passos para frente, três para o lado e depois recuar os três passos e assim por diante. Parece-nos que sua narrativa apresenta a dimensão trágica de sua vida, presente no paradoxo entre avançar um tanto e recuar na mesma proporção, de modo a jamais sair do lugar. Estava paralisado por uma contradição existencial. O que poderia acontecer para que pudesse transpor tal impasse, ou seja, deixar cair o gozo deletério de seu sintoma? Semelhante ao percurso literário e social que a inventividade dos gregos construiu, da transformação do trágico em uma trilogia e a irrupção do riso na comédia, o percurso em um tratamento psicanalítico leva o sujeito a poder se apropriar de sua tragédia e, até mesmo, chegar a rir da banalidade de seu destino, renunciando então a gozar do ódio.

IHU On-Line – Podemos dizer que o chiste, o humor e o riso são formas de lidar com o mal-estar? Por quê?

Mario Fleig – Freud escreveu um pequeno artigo denominado O humor (1927), reiterando que a fonte de prazer deste provém da economia de um dispêndio afetivo que uma situação de mal-estar produz, ou seja, que o humor é gerador de um ganho de prazer para si ou para o espectador, de modo semelhante ao que se passa no chiste e no cômico. Contudo, ele apresenta uma novidade, ao afirmar que “o humor não só tem algo de libertador, sendo análogo nisso ao chiste e ao cômico, mas também tem algo de sublime e patético, traços que não encontramos nesses dois outros modos de obter prazer mediante uma atividade intelectual. Evidentemente, o sublime reside no triunfo do narcisismo, da vitoriosa confirmação da invulnerabilidade do eu. O eu recusa-se a se deixar abater e sucumbir ao sofrimento ocasionado pela realidade externa; recusa-se a admitir que os traumas do mundo externo o possam afetar, e ainda mostra que são para ele apenas oportunidades de obter prazer.”

O exemplo cabal do senso de humor irrompe na frase do condenado à forca que na segunda-feira, ao ser levado para o patíbulo, declara para seu carrasco: “Começamos bem a semana!” Não é uma frase de queixa e resignação, mas de oposição, que indica, além do triunfo do eu, a afirmação de um prazer apesar das circunstâncias desfavoráveis. Como meio de defesa contra a dor, o humor, assim como o chiste e o cômico, “ocupa um lugar dentro da grande série dos métodos que a vida anímica do ser humano construiu com o intuito de escapar da compulsão ao sofrimento, série que se inicia com a neurose e culmina no delírio, e na qual se incluem a embriaguez, o abandono de si, o êxtase”, afirma Freud.

Enfim, a sabedoria popular nos diz que “rimos para não chorar” ou que “rir é o melhor remédio”. Que verdade encontramos nestes provérbios? Se seguirmos as formulações de Freud, entendemos que nos encontramos com as diferentes elaborações e transformações da pulsão de morte, que, em vez de seguir a via direta da destruição, faz um contorno do estranho e impossível e cria algo diferente. No riso, ainda que seja de escárnio e repúdio, há um instante de suspensão do desejo de pura destruição de si e do outro. Instante que pode circunscrever outra coisa.

 
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Confira outras entrevistas concedidas por Mario Fleig e publicadas na IHU On-Line.

O desaparecimento da família tradicional. Entrevista publicada na IHU On-Line 326, de 26-04-2010;

O pedófilo: vítima de seu desejo e perversão. Entrevista publicada na IHU On-Line 326, de 26-04-2010;

O direito ao gozo e à violência. Entrevista publicada na IHU On-Line 298, de 22-06-2009;

Não cedas do teu desejo: é preciso sustentarmos o que falamos com voz própria. Entrevista publicada na IHU On-Line 295, de 01-06-2009;

“Querer fazer o mal parece algo inerente à condição humana”. Entrevista publicada na IHU On-Line 265, de 21-07-2008;

O delírio de autonomia e a dissolução dos fundamentos da moral. Entrevista publicada na IHU On-Line 220, de 21-05-2007.

O declínio da responsabilidade. Entrevista publicada na IHU On-Line 185, de 19-06-2006;

Freud e a descoberta do mal-estar do sujeito na civilização. Entrevista publicada na IHU On-Line 179, de 08-05-2006;

As modificações da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. Entrevista publicada na IHU On-Line 150, de 08-08-2005.

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