Edição 367 | 27 Junho 2011

O riso e o hiato da condição humana

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges



IHU On-Line – Em O nome da rosa, a trama se baseia em livros que tiveram suas páginas envenenadas para que seus leitores morressem após folheá-las. Uma dessas obras era o segundo tomo de A poética, de Aristóteles. O argumento do Venerável Jorge, monge beneditino que havia embebido as páginas do livro com veneno, era que o riso matava o temor e, por conseguinte, a fé. Como podemos compreender essa afirmação? O que ela guarda de verdade, embora tenha sido feita dentro de uma obra de ficção?

Mario Fleig – O nome da rosa, do escritor italiano Umberto Eco , traduz de forma literária a importância do aristotelismo para o pensamento cristão medieval. Trata-se de uma trama policial, como reverberações múltiplas da literatura ocidental, da filosofia e da ciência, que se desdobra em torno de um livro misterioso, um tratado de Aristóteles sobre como o riso pode auxiliar na busca pela verdade, que acaba por levar vários monges à morte em uma abadia medieval.

O Venerável Jorge de Burgos, monge responsável pela biblioteca do mosteiro para o qual se encaminha William de Baskerville, afirma que a obra deveria ser destruída justamente por ter sido escrita por Aristóteles. A influência do pensador grego era tamanha que, ao endossar o riso e o escárnio como fontes válidas para se chegar ao conhecimento da verdade, Aristóteles poderia desencadear o caos na sociedade, uma vez que, ao rirem do mundo, os homens espantariam o temor ao demônio e perceberiam como Deus era desnecessário, produzindo-se um colapso geral. Assim, o verdadeiro perigo viria deste livro, pois ele é que poderia contaminar os doutos, e não do riso das pessoas simples e medíocres. O riso poderia afastar o indivíduo de Deus, ao passo que o livro de Aristóteles afastaria os doutos do caminho da razão e da verdadeira sabedoria, e aí se encontrariam o verdadeiro perigo. Vejamos esta argumentação nas próprias palavras do Venerável Jorge de Burgos:

“O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sabedoria. Quando ri, enquanto o vinho borbulha em sua garganta, o aldeão sente-se patrão, porque inverteu as relações de senhoria: mas este livro poderia ensinar aos doutos os artifícios argutos, e desde então ilustres, com que legitimar a inversão. Então, seria transformado em operação do intelecto aquilo que no gesto irrefletido do aldeão é ainda e afortunadamente operação do ventre. Que o riso é próprio do homem é sinal do nosso limite de pecadores. Mas deste livro quantas mentes corrompidas como a tua tirariam o silogismo extremo, pelo qual o riso é a finalidade do homem! O riso distrai, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei é imposta pelo próprio medo, cujo nome verdadeiro é temor a Deus. E deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio: e o riso seria designado como arte nova, desconhecida até de Prometeu, para anular o medo. Para o aldeão que ri, naquele momento, não lhe importa morrer: mas depois, acabada sua licença, e a liturgia impõe-lhe de novo, de acordo com o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destrutiva aspiração a destruir a morte por meio da libertação do medo. E o que queremos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais benéfico e afetuoso dos dons divinos”.
Como oposição à pretensão de ter a verdade absoluta e à certeza de ser a “mão de Deus”, o frade Baskerville pondera que “talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.”

IHU On-Line – Por que o riso foi considerado, por vezes, demoníaco, uma vez que é prerrogativa exclusivamente humana?

Mario Fleig – Sabemos que um importante suporte das religiões é o temor dos deuses, sendo que a estratégia de cindir a divindade em duas, uma boa e protetora e a outra maléfica, permite que a primeira seja fortalecida pelo incrementado temor na segunda. Uma das hipóteses para o aumento do temor ao demônio, que se constata no período medieval e perdura até nossos dias, seria decorrente do incessante enfraquecimento do temor a Deus. Assim, quanto mais se teme ao inimigo, maior deve ser o poder daquele que nos protege. Essa hipótese poderia ser verificada pelo exame do lugar que o demônio ocupa nas assim denominadas igrejas neopentecostais no Brasil. Ora, no período medieval surgem formas novas de contestação, porta de entrada para o demônio, colocando em perigo o poder da divindade: o demônio do meio-dia, ou seja, a preguiça como expressão da melancolia, a nascente ciência moderna e sua racionalidade, e o antigo riso. Todas elas são consideradas como manifestação do demoníaco a ser combatido. São os novos poderes do demônio, que requerem uma divindade forte e firme. Assim, o antigo poder catártico e subversivo da tragédia e da comédia gregas, que preconizava o benefício libertário das lágrimas e do riso, era inaceitável para a ortodoxia medieval, que via nela a obra do demônio. Além disso, apesar de ser reconhecido como próprio do homem, o riso em geral era censurado à luz do argumento de que Jesus, modelo supremo do humano, não teria rido em sua vida terrena. Enfim, o riso e o humor, por seu poder subversivo, tenderiam a profanar e a zombar do sagrado, e nisso consistir seu poder demoníaco a ser combatido.

IHU On-Line – Em que aspectos é possível estabelecer uma relação entre o riso e o trágico?

Mario Fleig – O trágico e o cômico fazem parte das múltiplas respostas do homem confrontado com o paradoxo de sua existência. Seria o riso a melhor resposta para esse paradoxo? O humor não seria o valor supremo que permite aceitar sem compreender, agir sem desconfiar, assumir tudo sem levar nada a sério?
Sabemos que as tragédias gregas costumavam constituir uma trilogia: a primeira apresentava o conflito, como Édipo Rei , na trilogia de Sófocles ; a segunda tratava do desdobramento dos efeitos do conflito, como Antígona ; e a terceira apresentava uma solução do conflito, como Édipo em Colono . A comédia, ou seja, a dimensão do riso, viria como a solução da tragédia.
A tragédia surge na Grécia a partir do culto ao deus Dionísio , dentro da trama de narrativas denominadas de mito que delimitam o que chamamos de trágico. Assim, o trágico não se restringe ao âmbito das tragédias do teatro, mas é algo que define a especificidade da condição humana, à medida que é nele que se realiza o que há de mais estranho no estranho, como se enuncia no primeiro coro da Antígona de Sófocles: “Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho (to deinataton) do que o homem” (v. 332).
O riso da comédia e do cômico não se confunde com o mesmo efeito produzido pelo chiste e pelo humor, e funciona como um automatismo psíquico pré-consciente. O humor apresenta um riso entre parênteses, recatado, ao passo que o chiste resulta de um processo inconsciente que, com a autorização do sujeito, confessa a verdade que ser para ficar calada.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição