Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Teresa de Jesus: “mestra consumada da vida espiritual” em diálogo cristão-islâmico

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Moisés Sbardelotto

Teresa escreve para homens e mulheres de todas as épocas e também de todas as religiões, comenta Luce López-Baralt. A santa de Ávila não tem receio em fundir ensinamentos cristãos com imagens islâmicas como a dos sete castelos, reelaborando em detalhe essa metáfora islâmica

Um embate entre linguagem e razão: a experiência mística – como no caso de Teresa de Jesus – “ultrapassa os limites da consciência e dos sentidos”. E Teresa “explicita sua impotência perante a linguagem, pois sabe muito bem que apenas pode dar uma ideia imprecisa do que, na realidade, lhe aconteceu além do espaço-tempo”, afirma Luce López-Baralt, professora emérita de literatura espanhola e comparada da Universidade de Porto Rico. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Luce afirma que a simbologia de Teresa traz traços marcantes da tradição islâmica e sufi. “A santa reelabora em detalhe a metáfora islâmica dos castelos, que costuma ser muito simples. Trata-se, pois, de uma amplificatio da antiga metáfora islâmica”, defende. E mais: “Como muitos autores místicos, Teresa não tem problemas para tentar expressar a sua relação com o mundo transcendente em termos eróticos”. Portanto, se a experiência mística “é um estado alterado de consciência em que o ser humano experimenta, para além da linguagem e dos sentidos, uma união sem intermediários com Deus”, também há místicos agnósticos, como Jorge Luis Borges, afirma.

Luce López-Baralt é porto-riquenha e professora emérita de literatura espanhola e comparada da Universidade de Porto Rico. É bacharel em Estudos Hispânicos pela mesma instituição. Obteve seu mestrado em literaturas românicas pela New York University in Madrid e o doutorado em literaturas românicas pela Universidade de Harvard. Fez estudos adicionais de pós-graduação na Universidade Complutense de Madri, na Universidade Internacional Menéndez Pelayo, de Santander, e na Universidade Americana de Beirut, no Líbano. É membro e vice-diretora da Academia Porto-Riquenha da Língua Espanhola. Filmou, junto com Carlos Fuentes, José Saramago e Arturo Péres Reverte, um documentário especial sobre Cervantes (Las Rutas de Quijote, Sevilha, 2007). Dentre seus mais de 200 artigos e 23 livros, destacamos San Juan de la Cruz y el Islam (Colégio do México, 1985; Hiperión de Madri, 1990); El sol a medianoche. La experiencia mística: Tradición y actualidad (em colaboração com Lorenzo Piera, Madri: Trotta, 1996); Vida en el amor/vida perdida en el amor: el cántico místico de Ernesto Cardenal (no prelo) e El Cántico Místico de Ernesto Cardenal (também no prelo).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em linhas gerais, que Mistério nos revelam as experiências místicas de Teresa de Jesus? Quais são os pontos centrais de sua mística em sua opinião?

Luce López-Baralt – As experiências místicas de Santa Teresa – pensemos, sobretudo, em suas Moradas – revelam-nos o Mistério eterno da união com Deus, que os místicos de todas as persuasões religiosas dizem ter experimentado. Mas os místicos autênticos sabem bem que nunca poderão articular com a linguagem e a razão humana essa experiência, que ultrapassa os limites da consciência e dos sentidos. Teresa explicita sua impotência perante a linguagem, pois sabe muito bem que apenas pode dar uma ideia imprecisa do que, na realidade, lhe aconteceu além do espaço-tempo.
Apesar de sua afasia, a santa detalha distintos pontos da experiência mística: o caminho hipotético da alma ao longo de sete moradas espirituais (representadas por castelos concêntricos): nas primeiras etapas ainda purifica-se a alma (isto é, concentra-se em Deus) e nas últimas duas etapas já une-se com Deus. A autora também diferencia entre uma “visão imaginativa” e uma “visão intelectual”: com esses nomes técnicos, a santa alude aos estados alterados de consciência em que a alma interior acede a imagens (visões de Cristo, os anjos etc.) e aos outros estados em que a união é tão alta que não há possibilidade de registrar imagens ou palavras.

IHU On-Line – Em sua opinião, que novidades traz Teresa para a compreensão do feminino em sua mística e literatura?

Luce López-Baralt – Teresa escreve, sobretudo, para suas monjas e leva em consideração a sua situação particular na clausura, quando lhes explica a alta vida da alma. Usa imagens cotidianas, com alusões à vida doméstica e cuida da vida dura e encerrada que suas irmãs de hábito levam: para elas, passear pelos castelos da alma será uma libertação gozosa. A santa também leva em consideração que suas leitoras não são pessoas letradas nem cultas, e adapta seu estilo a essa condição. Contudo, Teresa escreve para todos, homens e mulheres de todas as épocas e também de todas as religiões: o que dirime não é assunto nem masculino nem feminino, nem antigo nem moderno, mas universal.

IHU On-Line – Os estudos feitos pela senhora mostram que os símbolos místicos mais importantes ou “originais” utilizados por Teresa, como os “castelos interiores”, são de origem islâmica ou uma adaptação do sufismo. Como ocorreu essa mescla de linguagens religiosas?

Luce López-Baralt – Miguel Asín Palacios, o primeiro a propor uma filiação islâmica para os castelos teresianos, ignorava a maneira em que ocorrera essa possível transmissão histórica, já que Teresa, que não sabia latim, também não sabia árabe. O mestre suspeitava, no entanto, que uma imagem mnemotécnica tão bonita e tão simples como a dos castelos podia ter-se convertido em anônima e podia ter sido transmitida por via oral. No meu próprio caso, pude encontrar muito mais exemplos de castelos místicos islâmicos, dando razão a Asín. Concordo com o mestre sobre o fato de que os castelos devem ter começado a fazer parte do folclore tradicional cristão de maneira anônima e oral – a santa ignoraria onde ou quando ouvira falar pela primeira vez da metáfora. Mais ainda, ignoraria a sua origem islâmica, para mim, já sem sombra de dúvida, à luz dos inúmeros casos que pude documentar na espiritualidade sufi.

Cabe pensar que essa transmissão cultural, oral e espontânea, era algo muito natural depois do diálogo que o cristianismo e o islã tiveram na Península Ibérica ao longo de oito séculos. Aí está a célebre “olé”, que vem etimologicamente de wa-Allah (Por Deus!), que os árabes ainda exclamam perante um artista ou quando se sentem tomados por uma grande emoção. É impossível determinar quando ou como o primeiro cristão espanhol disse a frase celebrativa árabe, mas ela ainda é empregada, constituindo um testemunho silencioso da importância dos rastros do islã na cultura espanhola.

IHU On-Line – Que outros elementos e símbolos do sufismo e do cristianismo dialogam no imaginário de Teresa?

Luce López-Baralt – Há muitos mais: a metáfora do bicho-da-seda; a imagem da meditação vista em termos de um jardim que deve ser regado com aquedutos e canais; a estreiteza e a largura místicas; a árvore espiritual que cresce no interior da alma nas águas da nossa contemplação profunda; o conceito de morada ou etapa mística, que vem da maqam ou morada islâmica; a noite escura da alma, dentre outros.

IHU On-Line – Reconhecendo essa possível filiação de Teresa à tradição mística islâmica, como se dá a releitura desses elementos por parte da mística de Ávila? Qual é a “novidade” de Teresa?

Luce López-Baralt – A santa reelabora em detalhe a metáfora islâmica dos castelos, que costuma ser muito simples: o caminho da alma até si mesma é em forma de sete moradas/castelos concêntricos, e, em cada um deles, avança a nossa vida mística até alcançar a união com Deus no sétimo castelo. Teresa se detém muito mais do que os mulçumanos em cada um dos castelos e aproveita para nos dar lições de oração e para elaborar suas teorias místicas, na medida em que descreve o que ocorre em cada castelo. Trata-se, pois, de uma amplificatio da antiga metáfora islâmica. Por outro lado, cada um dos castelos islâmicos costuma ter uma cor diferente, enquanto os de Teresa são de fino diamante ou claro cristal. Contudo, é preciso dizer que Tirmidhi al-Hakim se antecipa por séculos à santa com seus castelos ou cidadelas de luz resplandecente.
É importante ter em mente que falo dos castelos islâmicos que temos documentados até agora – aproximadamente sete ou oito –, mas é possível pensar que, se continuarmos investigando, surgirão novos casos, já que se trata de um verdadeiro lugar-comum da mística islâmica.

IHU On-Line – Como analisa a simbologia e a semântica utilizadas por Teresa de Jesus em seus escritos místicos em geral? Como Teresa responde ao desafio de converter em palavras a sua experiência mística?

Luce López-Baralt – Teresa, em primeiro lugar, aceita sua derrota frente à linguagem mais de uma vez e se queixa do pouco que, na verdade, consegue comunicar sobre suas experiências mais elevadas. Pois bem, quando tenta explicá-las, faz-se eco da terminologia técnica mística que os grandes mestres espirituais urdiram muito antes dela, desde São Paulo, a quem ela cita indiretamente ao descrever o “rapto místico”, até São João da Cruz, cuja noite escura e termos técnicos ela repete de perto.

IHU On-Line – A partir do ponto de vista da literatura histórica, quais foram as contribuições e o diferencial das obras de Teresa de Jesus?

Luce López-Baralt – Santa Teresa é uma mestra consumada da vida espiritual, declarada inclusive Doutora da Igreja, apesar da cultura relativamente modesta que possuía. Ela tem o mérito de reescrever os antigos ensinamentos espirituais de autores tão diversos como São Paulo, São Pedro de Alcântara e São João da Cruz, e não tem receio em fundir esses ensinamentos cristãos com imagens islâmicas como a dos sete castelos, de grande beleza plástica. Essa riquíssima fusão cultural, unida à inovadora simplicidade com que a santa escreve, dota sua obra de uma originalidade e de um frescor muito grandes.

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