Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Teresa de Jesus: “mestra consumada da vida espiritual” em diálogo cristão-islâmico

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Moisés Sbardelotto


IHU On-Line – Como a senhora analisa a relação místico-erotismo em Teresa? Como se dá em Teresa o vínculo entre amor, sexo e o divino?

Luce López-Baralt – Como muitos autores místicos, Teresa não tem problemas para tentar expressar a sua relação com o mundo transcendente em termos eróticos. Aí está a imagem do anjo que lhe cravava o dardo no coração, que é uma das mais conhecidas, e que Bernini  celebrou na famosa escultura do Êxtase de Santa Teresa, que hoje pode ser vista na Igreja de Santa Maria della Vitoria, em Roma. No entanto, quando a Reformadora fala de seus êxtases mais elevados, não os erotiza, mas torna-se afásica.
Não devemos interpretar mal o uso do imaginário nupcial por parte dos místicos do Oriente e do Ocidente: o amor divino e o amor humano têm uma relação intrínseca porque aspiram à união total e porque constituem a experiência mais intensa que um ser humano pode viver. O místico, ávido por encontrar palavras adequadas para expressar seu êxtase, não hesita, pois, em se servir da apaixonada linguagem do erotismo humano. Assim fizeram São João da Cruz, Abu I-Hassan al-Nuri, de Bagdá, e Ernesto Cardenal, entre tantos outros. Além disso, os místicos judeus e cristãos têm se servido do Cântico dos Cânticos como texto que ilustra uma experiência mística unitiva sob a imagem de um cântico de bodas. Embora o apaixonado carmen bíblico não tivesse realmente uma intenção espiritual oculta quando começou a fazer parte do cânone escriturário hebraico, o certo é que, graças a centenas de anos de exegese, passou a ser interpretado como um livro espiritual que falava em chave alegórica, inclusive em chave mística.

IHU On-Line – Em sua opinião, qual seria a marca característica da “mística feminina”, seja cristã ou islâmica? Que outras grandes mulheres místicas a senhora destacaria?

Luce López-Baralt – Há muitas escritoras místicas no Oriente e no Ocidente: pensemos em Santa Hildegard, Santa Teresa de Jesus, Santa Rosa de Lima, Santa Teresa de Lisieux, Santa Gema Galgani, e em outras autoras como Rabi’a al-‘Adawiyya, no sufismo. O conteúdo essencial de seus ensinamentos ou testemunhos místicos é o mesmo, não importa sua religião. Também trata-se essencialmente do mesmo testemunho místico que deu sua contrapartida masculina: a experiência mística é um estado alterado de consciência em que o ser humano experimenta, para além da linguagem e dos sentidos, uma união sem intermediários com Deus. Dito isso, convém pontuar que essas místicas, com exceção de figuras como Santa Hildegard, não tiveram acesso a uma educação formal, motivo pelo qual suas obras são mais simples em terminologia e imagens, e em disquisições teológicas do que as dos místicos homens. Além disso, no caso das contemplativas cristãs, elas tendem a falar mais de visões de Cristo do que de experiências místicas infinitas, impossíveis de articular com a linguagem. Esse é, por exemplo, o caso da mística feminina da Colônia (o Vice-Reino do Peru, do México, de La Plata etc.).

IHU On-Line – Qual é a atualidade de Teresa de Jesus na sociedade de hoje? Em que pontos a mística teresiana nos questiona atualmente?

Luce López-Baralt – Creio verdadeiramente que Teresa é tão atual hoje quanto no século XVI, porque a experiência mística não conhece épocas nem pode se restringir a nenhuma religião específica. Pensemos, por exemplo, quão instruído se sente o poeta místico nicaraguense Ernesto Cardenal pelo seu diálogo intertextual com Teresa.

IHU On-Line – Em nossa situação histórico-social, qual o papel e o valor da mística? Quem são os místicos de hoje?

Luce López-Baralt – A mística, como eu disse, é uma experiência sem fronteiras e não está limitada a nenhuma religião nem credo. Ela é fundamental, por exemplo, para o diálogo inter-religioso, já que está na base de toda a espiritualidade e não divide, como o dogma, mas une. O teólogo católico Karl Rahner disse que o crente do século XXI será místico ou não será crente: ele diz isso no sentido de que a espiritualidade moderna dependerá cada vez menos dos dogmas separadores para atender mais as vivências espirituais individuais. Daí o diálogo de Thomas Merton com os monges tibetanos, que, com tanto respeito ele descreve em seu Asian Journal. Por outro lado, a psicanálise atual – pensemos em W. W. Meissner e Ana María Rizzuto – está estudando sem preconceitos a experiência mística, que já não considera como uma patologia, como outrora fizera Freud. A neurociência, de sua parte, também vai descobrindo que “estamos conectados para Deus”, já que o crente tende a ser mais saudável e mais feliz do que o não crente, constituindo-se assim em um melhor candidato para a evolução das espécies. Suspeito que estamos no limiar de uma época que atenderá com mais respeito e com mais entusiasmo o estudo do fenômeno místico.
Naturalmente, há muitos místicos modernos que ainda precisam de estudo: Yogananda , Ernesto Cardenal, Thomas Merton, Raimon Pannikar. Até mesmo agnósticos como Jorge Luis Borges admitem ter tido a experiência, que ele registra em poemas como Mateus XXV, 30 e em contos como O Zahir. Muitas vezes, eu comentei pessoalmente com Borges essa experiência, que ele teve por duas vezes, quando jovem, e que tentou articular artisticamente ao longo de sua obra.

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