Edição 382 | 28 Novembro 2011

René Girard e o desejo mimético: as raízes da violência humana

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Márcia Junges

Conceito é fundamental para compreender a obra do pensador francês, analisa João Cezar de Castro Rocha. Tradução das obras para o português está sendo feita pela É Realizações

A primeira intuição de René Girard é o caráter mimético do desejo humano. “Sua teoria é uma explicação do comportamento e da cultura humana”. De acordo com o historiador João Cezar de Castro Rocha, “o caráter mimético do desejo é a causa primordial da violência humana, ou seja, em princípio, a violência surge como uma derivação não calculada do caráter mimético do desejo”. Há uma coincidência entre o sujeito antropofágico oswaldiano e o mimético girardiano, “pois idêntica divisa poderia defini-los ‘Só me interessa o que não é meu’”. As declarações fazem parte da entrevista concedida por e-mail pelo coordenador da Biblioteca René Girard. João Cezar analisa o desejo triangular girardiano explicando que não desejamos a partir de nós mesmos. “Pelo contrário, aprendemos a desejar através dos olhos de modelos que consciente ou inconscientemente adotamos. Somos todos autênticos personagens shakespearianos que sempre se apaixonam a partir da sugestão de outros”. A respeito da Biblioteca René Girard, publicada pela É Realizações, João Cezar explica que a iniciativa é um convite para que o leitor venha a escrever seus próprios livros acerca da teoria mimética.

Graduado em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, João Cezar é mestre e doutor em Letras pela mesma instituição. Na Universidade de Stanford, Estados Unidos, cursou Literatura Comparada. É pós-doutor pela Universidade Livre de Berlim. È professor de Literatura Comparada da UERJ e escreveu inúmeros livros, dos quais destacamos Literatura e cordialidade. O público e o privado na cultura brasileira (Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998) e Crítica literária: em busca do tempo perdido? (Chapecó: Argos, 2011). Com René Girard e Pierpaolo Antonello escreveu Evolution and Conversion: Dialogues on the Origins of Culture (London: Continuum Books, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são os aspectos que tornam a obra de René Girard  tão atual e importante?

João Cezar de Castro Rocha - Talvez a melhor forma de responder à pergunta seja pensar na análise proposta por René Girard de um problema tão atual quanto os distúrbios alimentares.
Ora, a perspectiva aberta pela teoria mimética permite uma leitura única desse problema. Aqui, anorexia e bulimia compõem uma nova tela de Edward Munch , num grito de angústia diante de situações definidas pela estrutura do duplo vínculo, estudada por Gregory Bateson.  Situações de duplo vínculo (double bind) são marcadas por uma ambiguidade desagregadora da estabilidade emocional, pois implicam a enunciação de dois comandos contraditórios. Nos termos da teoria mimética, o mundo contemporâneo faz do duplo vínculo sua própria razão de ser.
Por exemplo, a propaganda oferece modelos que devem ser imitados. Contudo, ao mesmo tempo, valoriza-se a busca da eterna fonte da inovação, cuja lógica seria a de nunca imitar. Como reza o refrão popular: Just be yourself. Sem dúvida, “seja apenas você mesmo”; aliás, como todos os demais também o são, tornando-se sempre mais semelhantes, sobretudo quando se empenham em ressaltar suas diferenças. Ora, as jovens anoréxicas encontram um modelo “natural” nas inúmeras modelos que dominam as páginas das revistas de moda e os programas de televisão. Como imitar-lhes a não ser pela autoimposição de um regime alimentar draconiano? No entanto, como manter-se saudável e praticar exercícios, outro dogma do mundo contemporâneo, sem alimentar-se adequadamente? Como equilibrar as duas exigências, não apenas contraditórias, mas mutuamente excludentes? Talvez, como muitas jovens declaram com naturalidade, seguir constantemente um regime alimentar rígido, a fim de evitar a necessidade de dietas mais rigorosas...

Anoréxicos e bulímicos

Fiel à complexidade de sua teoria, em lugar de identificar uma origem específica para os distúrbios alimentares – seja um núcleo familiar problemático, seja a escalada da rivalidade mimética ocasionada pela proliferação de modelos midiáticos –, Girard propõe uma hipótese perturbadora: “A maior parte de nós oscila, durante a vida, entre formas atenuadas dessas duas patologias”. Portanto, somos todos, ainda que inconscientemente, um pouco anoréxicos e um tanto bulímicos.
Eis um exemplo claro da atualidade da teoria mimética. Por exemplo, o filme Cisne Negro, cuja protagonista transitava com perturbadora tranquilidade da privação constante ao excesso eventual, como se esses polos opostos fossem apenas estações de um trem desgovernado pelo desejo mimético, possui muitos outros aspectos que podem ser iluminados pela teoria mimética. Penso na rivalidade exacerbada no meio artístico, a proliferação de duplos miméticos, o desejo metafísico, as alucinações da protagonista e, no final, a resolução sacrificial que não é bem-sucedida.

IHU On-Line - Quais são as características fundamentais, as grandes linhas que norteiam os escritos desse pensador?

João Cezar de Castro Rocha - René Girard afirma, de maneira bastante confiante, que sua teoria é uma explicação do comportamento humano e da cultura humana. Esse talvez seja o ponto inicial mais importante. Para o pensador francês, a teoria mimética é uma explicação do comportamento humano. Mais do que apenas uma hipótese, portanto, a teoria mimética pretende fornecer uma explicação completa do comportamento humano e mesmo do surgimento da cultura.
Aproveito para esclarecer uma questão decisiva; na verdade, proponho um pacto de leitura para o leitor da “Biblioteca René Girard”: aceitar o poder explicativo da teoria mimética como forma inicial de abordar a obra de René Girard. O que não quer dizer que não se possa discordar aqui e ali, ou mesmo buscar refutar sua tese. Contudo, para realmente dialogar com o pensamento girardiano, é preciso confiar no poder explicativo da teoria mimética, a fim de compreender seus desdobramentos.
Tal poder tem como base a inter-relação de três intuições fundamentais. A teoria mimética desenvolveu-se a partir da publicação de três livros, que podemos chamar de “livros-evento”, porque sua publicação produziu um grande impacto na forma de compreender, respectivamente, a crítica literária, a antropologia e os estudos bíblicos. Para evitar repetições, nas próximas respostas mencionarei essas intuições fundamentais.

IHU On-Line - A publicação de suas obras em português cobre uma lacuna em nosso país?

João Cezar de Castro Rocha - Não exatamente uma lacuna, pois obras-chave de René Girard já haviam sido traduzidas. Contudo, um projeto tão abrangente e completo ainda não se havia feito – nem mesmo fora do Brasil, vale a pena ressaltar. Aqui, o mérito maior pertence ao editor Edson Manoel de Oliveira Filho, pela coragem de lançar um projeto tão ambicioso.
Afinal, cada livro conta com uma cronologia que não se pretende exaustiva da vida e da obra de René Girard. Com o mesmo propósito, compilamos uma bibliografia sintética do pensador francês, privilegiando os livros publicados. Por isso, não mencionamos a grande quantidade de ensaios e capítulos de livro que escreveu, assim como de entrevistas que concedeu. Para o leitor interessado numa relação completa de sua vasta produção, recomendamos o banco de dados organizado pela Universidade de Innsbruck: http://www.uibk.ac.at/rgkw/mimdok/suche/index.html.en.
De igual forma, selecionamos livros e ensaios dedicados, direta ou indiretamente, à obra de René Girard, incluindo os títulos que sairão na Biblioteca René Girard. Nosso objetivo é estimular o convívio reflexivo com a teoria mimética. Ao mesmo tempo, desejamos propor uma coleção cujo aparato crítico estimule novas pesquisas. Em outras palavras, o projeto da Biblioteca René Girard é também um convite para que o leitor venha a escrever seus próprios livros acerca da teoria mimética.

IHU On-Line - Qual é o maior desafio em organizar a coleção René Girard?

João Cezar de Castro Rocha - Propor o diálogo ativo com a obra de um pensador fundamental. Desse modo, cumpre-se um dos propósitos mais importantes da Biblioteca, qual seja, estimular os leitores a desenvolver suas próprias reflexões. Em segundo lugar, como disse acima, destaque-se outro objetivo da Biblioteca: não somente divulgar o pensamento girardiano, tampouco apenas pensar mimeticamente a circunstância latino-americana, como se uma teoria pudesse ser reduzida ao papel monótono de uma caixa de ferramentas conceitual, “útil” porque “aplicável” em contextos diversos. Trata-se, pelo contrário, de dar os primeiros passos para o futuro desenvolvimento de uma contribuição latino-americana radicalmente mimética à teoria de René Girard.
Por fim, a abordagem crítica é importante porque permite que se enfrentem as ressalvas usuais acerca do pensamento girardiano, pois, sem dúvida, o percurso intelectual do autor francês desafia dois dogmas aparentemente incontestáveis das ciências humanas hoje em dia.

Ideia de Deus
Outro desafio diz respeito às convicções religiosas do pensador francês. Excessivamente religioso para o mundo acadêmico contemporâneo e, ao mesmo tempo, excessivamente acadêmico para o universo religioso tradicional, René Girard permanece isolado na radicalidade de sua reflexão acerca da cultura humana.
Contudo, não se trata de construir uma falsa imagem de isolamento e ostracismo, pois, é forçoso reconhecê-lo, René Girard nunca deixou de relacionar sua reflexão à religião cristã, mesmo à Igreja Católica. Vale dizer, não seria intelectualmente honesto subtrair a dimensão religiosa da teoria mimética – fazê-lo seria falsear a obra girardiana. O próprio pensador sempre o soube e nem por isso alterou o rumo de sua investigação filosófica.

Contudo, a teoria mimética também possui um potencial analítico que não se reduz à dimensão religiosa. Em suma, a “Biblioteca René Girard” pretende ampliar o universo de leitores da teoria mimética. Eis, então, o paradoxo produtivo gerado pela leitura de René Girard: estudá-lo a partir de uma posição laica não necessariamente afasta o leitor ateu do pensador cristão, mas, pelo contrário, pode abrir uma via inesperada para esclarecer a força da teoria mimética no século XXI. Tudo se passa como se um flagrante da inteligência-relâmpago de Oswald de Andrade  finalmente adquirisse plena visibilidade: “É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus.”

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