Edição 382 | 28 Novembro 2011

René Girard e o desejo mimético: as raízes da violência humana

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Márcia Junges



IHU On-Line - O que é o desejo mimético e qual é a atualidade dessa proposição?

João Cezar de Castro Rocha - A intuição fundadora refere-se ao desejo mimético, ou, como René Girard posteriormente diria, à rivalidade mimética. Há uma diferença sutil entre os dois conceitos, mas, como veremos, o desejo mimético tende a gerar rivalidades.
Eis, então, a primeira intuição: o desejo humano é fundamentalmente mimético. Posso dizê-lo de maneira ainda mais clara: o desejo humano é fundamentalmente imitativo. Vale dizer, eu não desejo a partir de uma subjetividade autocentrada e autotélica – uma subjetividade que impõe suas próprias regras –, mas, muito pelo contrário, desejo a partir de um outro, que tomo como modelo para determinar meu próprio objeto de desejo.

A primeira intuição de René Girard, portanto, é o caráter mimético do desejo humano. Como se trata de conceito-chave, vale a pena reiterar: eu não desejo independentemente do grupo social no qual me encontro. O meu desejo é derivado do desejo de outros, ou de outro que adoto como modelo. Essa intuição, em princípio, não é absolutamente original, pois já havia sido mencionada por filósofos desde Platão e Aristóteles. De qualquer modo, não chega a constituir um problema grave que a elaboração da teoria mimética pouco tenha a ver com a busca da originalidade absoluta. Aliás, adiante, destacarei o diálogo de Girard com diversos pensadores na formulação de sua obra. Porém, desde o primeiro livro de René Girard, Mensonge Romantique et Vérité Romanesque,  publicado em 1961, a noção de desejo mimético possui consequências que, essas sim, são originais.

Eis a consequência-chave: o caráter mimético do desejo é a causa primordial da violência humana, ou seja, em princípio, a violência surge como uma derivação não calculada do caráter mimético do desejo. René Girard propõe que, se eu adoto um modelo para a constituição do meu próprio desejo, num primeiro momento esse fato “naturalmente” me aproxima do modelo, pois estabeleço com ele uma relação de discípulo e mestre. Porém, num segundo momento, e de igual modo “naturalmente, o mesmo fato tende a tornar o antigo modelo um futuro rival. Afinal, se desejo de acordo com o desejo de um modelo, isso quer dizer que necessariamente desejaremos o mesmo objeto – seja um objeto físico, simples, do cotidiano; seja um objeto mais complexo, um sentimento; seja um objeto metafísico, o desejo de ser como o meu modelo. Não importa a natureza do objeto: se desejamos o mesmo objeto, encontramo-nos numa zona sombria, na qual a violência pode sempre ser o passo seguinte. É aqui que se encontra o aspecto realmente original da contribuição girardiana para a compreensão da mímesis. A mímesis, ou seja, o impulso imitativo, possui potencialmente um caráter de aquisição. A partir do momento em que desejo o mesmo desejo de um modelo, em algum momento buscarei apropriar-me do seu objeto. Desse caráter aquisitivo, emerge a violência nas relações humanas.

IHU On-Line - Em que sentido o mimetismo e a violência humana fundam o sentimento religioso arcaico? O mesmo vale para nossos dias?

João Cezar de Castro Rocha - A segunda intuição do pensamento girardiano é derivada da compreensão de que a vingança ou o ressentimento são formas propriamente humanas de formalizar a violência potencial do desejo mimético. Portanto, trata-se dar conta do caráter coletivo do desejo mimético. Compreende-se, assim, a segunda intuição básica do pensamento girardiano: o mecanismo do bode expiatório. Ora, para efeito didático, defini o desejo mimético como sendo uma relação do sujeito com seu modelo. Na verdade, esse tipo de relação sempre ocorre num grupo social, ela é sempre coletiva. Se, num primeiro momento, a rivalidade afeta o sujeito e seu modelo, ou seja, se a relação é sobretudo individual e, portanto, as consequências são necessariamente limitadas, num segundo momento, essas relações começam a se disseminar, porque o desejo mimético é, em si mesmo, mimético. Então, a violência não pode senão disseminar-se, contagiando todo o grupo.
A escalada da violência do desejo mimético faz com que em algum momento a sociedade esteja ameaçada de desagregação, em virtude da proliferação de rivalidades e conflitos. Imaginemos, agora, que tais rivalidades e conflitos ainda não possuem nenhuma forma de controle institucional. Ora, era essa a situação dos primeiros grupos de hominídeos, antes mesmo da emergência da cultura. Logo, o grupo social pode desintegrar-se pela multiplicação de conflitos localizados.

Espiral de violência mimética

A hipótese do mecanismo do bode expiatório foi desenvolvida inicialmente para propor uma compreensão inovadora do surgimento da cultura humana. Por isso, é importante reiterar a referência a grupos que ainda não possuem uma forma institucional de controle da violência, ou seja, grupos de hominídeos que ainda não possuem Estado, não têm religião formalizada, estão apenas dominados pelo desejo mimético, que escala e não pode senão tornar-se cada vez mais e mais violento. Há um instante em que o grupo social pode literalmente desagregar-se pelo aumento da violência endogâmica, ou seja, da violência puramente interna, porque ainda não existe um mecanismo externo de controle da violência. Quando isso ocorre, como uma resposta à escalada da violência provocada pelo contágio do desejo mimético, surge um mecanismo, cuja descrição constitui a segunda intuição básica apresentada no segundo livro do pensador, La Violence et le Sacré,  publicado em 1972.
Recapitulemos: a crise foi provocada pelo caráter mimético do desejo e, ao mesmo tempo, a crise foi resolvida pelo caráter mimético do desejo. Ora, mas o caráter mimético do desejo é o que caracteriza o propriamente humano. Em outras palavras, depois da resolução da primeira crise, uma segunda crise necessariamente surgirá, porque o desejo continuará sendo mimético. Logo, outra crise de violência provocada pelo desejo mimético necessariamente retornará. Portanto, há uma espiral de violência mimética que não se pode evitar facilmente.
Daí, a importância da pergunta: qual a garantia de que, num segundo momento de crise absoluta o mesmo grupo encontrará aleatoriamente, pela segunda vez, um bode expiatório?
Essa é a questão-chave da teoria mimética. O mecanismo do bode expiatório torna-se mais eficiente quando deixa de ser puramente arbitrário, ou seja, quando deixa de ser aleatório, no sentido em que se pode ou não voltar a encontrá-lo no momento de crise. O mecanismo do bode expiatório torna-se um mecanismo propriamente civilizador – e isso no sentido forte do termo, ou seja, torna-se um mecanismo que propicia o aparecimento da cultura humana– no momento em que deixa de ser fruto do acaso, e, pelo contrário, conhece um primeiro nível de formalização.
É preciso, portanto, formalizar o mecanismo de controle da violência para que a cultura humana tenha base sólida, progressivamente formalizada em grupos de hominídeos capazes de manter a inevitável violência mimética sob controle. Assim, segundo René Girard, o umbral entre os grupos de hominídeos e o surgimento do que chamamos cultura pôde ser ultrapassado.
A formalização do mecanismo do bode expiatório implica a centralidade do fenômeno religioso na constituição da cultura. A terceira intuição básica da teoria mimética procura precisamente refletir sobre a centralidade do religioso, compreendido a partir de um ponto de vista antropológico. Nas próximas respostas, tratarei da terceira intuição fundamental.

IHU On-Line - Constitutiva do ser humano, como a violência pode ser controlada? A partir dessa concepção, como se dá o diálogo da obra de Girard com os tempos em que vivemos?

João Cezar de Castro Rocha - Tratemos do último grande livro de René Girard, a fim de responder à pergunta: Rematar Clausewitz. Ora, rematar Clausewitz obriga Girard a rematar sua própria obra, concentrando-se nas vicissitudes do mundo contemporâneo. Tal contribuição já seria suficiente para aquilatar a importância deste livro.
A novidade de Rematar Clausewitz não se refere apenas à atenção consagrada ao mundo moderno e contemporâneo, isto é, ao universo da “mediação interna”, portanto, de uma circunstância histórica dominada por conflitos. Em seu primeiro livro, Mentira Romântica e Verdade Romanesca (1961), Girard já havia trabalhado com esse período, estudando o romance europeu do século XVIII ao século XX.
Compreende-se, então, de modo ainda mais claro como Rematar Clausewitz pode ser lido como o remate da própria teoria mimética, pois, neste livro, Girard, com a contribuição de Benoît Chantre, ata as pontas de sua vasta e complexa obra. E bem ao contrário de célebre personagem de Machado de Assis , Girard realiza a tarefa com inegável êxito.  Ao mesmo tempo, uma diferença decisiva se insinua entre os dois livros – e destacar essa diferença esclarece a força do pensar girardiano.
Em Mentira Romântica e Verdade Romanesca a resposta à violência engendrada pelos desdobramentos do desejo mimético consistia num gesto de caráter pessoal: a conversão romanesca. Em vocabulário mimético, o conflito interdividual era resolvido no mesmo plano, implicando uma transformação pessoal: “É uma vitória sobre o desejo metafísico que faz de um escritor romântico um verdadeiro romancista”.
Já em Rematar Clausewitz tudo se torna muito mais complexo. Não se dispõe mais de uma resposta interdividual à questão da violência, pois, agora, o problema possui dimensão planetária – o contágio mimético, por assim dizer, disseminou-se para além do controle possível de uma decisão pessoal.
Nas circunstâncias contemporâneas, a “conversão” como método geral não parece possível porque converter-se significa aceitar os limites da “mediação externa”, renunciando ao propósito de apoderar-se do objeto de desejo do modelo. Ora, num mundo dominado pela “mediação interna”, tal opção se encontra cada dia mais distante.
Talvez por isso Girard tenha desenvolvido o que se pode denominar uma “imaginação apocalíptica”. Tal é o sentido forte da afirmação de outro modo surpreendente: “Essa escalada para o apocalipse é a realização superior da humanidade”.

Radicalidade do pensamento
Entenda-se a perspectiva corajosa do pensador: apocalipse, aqui, remete à etimologia: do latim tardio apocalypsis, é derivado do grego apokalúpsis e descreve o “ato de descobrir, descoberta; revelação”. No caso, a ascensão da violência em escala planetária revela inequivocamente a encruzilhada a que a humanidade chegou. Trata-se de promover a própria extinção ou aprender a lidar com o conflito que constitui a fábrica do humano – mimeticamente concebido. O apocalipse, então, pode significar tanto o descontrole completo da violência, quanto a esperança de uma via realmente nova de convivência, com base no reconhecimento recíproco do mimetismo que a todos contagia. Na radicalidade típica de seu pensamento, Girard assim situou o problema:
Não podemos fugir ao mimetismo senão pela compreensão de suas leis. É só o entendimento dos riscos da imitação que nos permite cogitar uma verdadeira identificação com o outro. Mas tomamos consciência desse primado da relação moral no momento mesmo em que se conclui a atomização dos indivíduos, em que a intensidade e a imprevisibilidade da violência já aumentaram.
Vale dizer, no remate de sua obra, Girard não procurou oferecer uma resposta cômoda; pelo contrário, lançou os dados numa aposta cujo resultado final é imprevisível e pode muito bem, como no lance mallarmaico, depender do acaso.

IHU On-Line - Qual é o sentido do sacrifício hoje?

João Cezar de Castro Rocha - A originalidade da abordagem de René Girard se nutre de sua concepção do mundo moderno, tal como explicitada em Achever Clausewitz. Na ótica do pensador francês, o mundo moderno, especialmente a partir da Revolução Francesa, caracteriza-se por uma circunstância inédita na história da humanidade: há mais de duzentos anos vivemos num mundo dominado pela mediação interna, vale dizer, pela onipresença de estruturas de duplo vínculo.
Ora, grosso modo, o universo da mediação externa, mesmo em função da distância social e simbólica que havia entre sujeitos e modelos, impunha uma hierarquia cuja rigidez deveria manter sob controle a possibilidade de conflitos e, portanto, a explosão de crises de violência. Já o universo da mediação interna, pelo contrário, com base no ideal de igualitarismo revolucionário, estimula a multiplicação de rivalidades mimeticamente engendradas: se todos são potencialmente iguais, como evitar a contaminação recíproca de seus desejos? Ocorre, então, uma escalada mimética, cuja violência não pode senão aumentar na proliferação de rivais disputando os mesmos objetos e almejando as mesmas posições, uma vez que as hierarquias e as proibições são suprimidas.
O célebre conto de Rubem Fonseca , “O cobrador”, trata precisamente desse tema.  O protagonista decide obter pela força todos os bens e confortos dos quais foi sistematicamente privado em sua vida, embora a propaganda tenha estimulado seu desejo mimético de todos os modos. Sem condições de ir ao dentista, pois não pode arcar com os custos do tratamento, o cobrador decide reagir: “‘Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!’ Dei um tiro no joelho dele”.  Ele começa então a “cobrar” com violência crescente tudo que lhe foi prometido e, ao mesmo tempo, recusado, no sistema de duplo vínculo típico das sociedades contemporâneas. Aliás, o mundo atual, adverte Girard, produz “cobradores” em escala planetária. O problema é ainda mais grave, pois, hoje em dia, o sacrifício não mais produz sagrado, apenas reproduz a violência mimeticamente engendrada.

IHU On-Line - Em que sentido a obra de Girard desafia o conceito de desejo freudiano?

João Cezar de Castro Rocha - Começo a resposta esclarecendo a ideia-chave do mecanismo do bode expiatório, pois aí se encontra o diálogo mais intenso com a obra de Sigmund Freud .
Com a publicação de A Violência e o Sagrado (1972), o pensador francês propôs uma hipótese ousada acerca da origem da cultura humana. Dada a natureza mimética do desejo, os homens tendem a desejar os mesmos objetos. O conflito então se torna inevitável, pois disputaremos a posse daqueles objetos. Sua generalização – recorde-se que a hipótese busca entender o momento imediatamente anterior à emergência da cultura – levaria o grupo à desagregação, se uma forma de controle da violência não fosse desenvolvida.
Através da leitura comparativa de mitos e textos literários, René Girard propôs que a violência de todos contra todos somente é apaziguada quando se metamorfoseia em violência de todos contra um único membro do grupo. Trata-se do mecanismo do bode expiatório que permitiu disciplinar a violência primordial. Os ritos e mitos originários seriam assim formas culturais de elaboração do mecanismo matriz da cultura humana. Por isso, a violência e o sagrado são inseparáveis.

A hipótese gerou muitas controvérsias. E quando René Girard precisou defender a “unidade de todos os ritos”, ou seja, a origem comum dos ritos no mecanismo do bode expiatório, ele recorreu ao canibalismo tupinambá como evidência de sua teoria. Mais uma vez, Oswald e Girard encontram-se inesperadamente. E como veremos, encontra-se aí um “triângulo especulativo” com a inserção de Sigmund Freud.
Em 1978, com a publicação de Coisas ocultas desde a fundação do mundo, Girard rematou a arquitetura de seu pensamento através de uma dupla articulação.
De um lado, a combinação da etnologia com a etologia: sem reducionismos, tampouco exclusivismos, a emergência da cultura humana é vista no contexto das sociedades animais, mas sempre ressalvada a força do simbólico em nossa constituição.

De outro, a leitura antropológica das Escrituras judaico-cristãs: Girard defende que os episódios bíblicos devem ser lidos como uma reflexão autenticamente antropológica acerca do elo indissolúvel entre o sagrado e a violência. O pensador francês sustenta que nas Escrituras há uma denúncia da violência do mecanismo do bode expiatório, o que implica adotar uma atitude ética de defesa da vítima – eis a terceira intuição-chave da teoria mimética.

Daí a natureza estrutural do diálogo na obra girardiana: a interlocução assegura a centralidade do outro na formulação do próprio pensamento. E não me refiro exclusivamente ao ato mesmo de conceder inúmeras entrevistas, ou de participar de longos diálogos, transformados em livros – ambos os gestos são frequentes na produção do pensador francês. Penso no hábito polêmico, definidor do estilo intelectual girardiano, como uma forma propriamente dialógica, essencial ao conteúdo de sua teoria.

Sujeito mimético e sujeito antropofágico
Nesse sentido, o que Girard diz acerca do criador da psicanálise reveste-se de relevância particular: “(...) Freud passou muito perto do esquema mimético, o que me incomodou bastante no ponto de partida do meu trabalho, fez-me perder bastante tempo, uma vez que eu via a ambiguidade da minha relação com Freud”. É como se, através das inúmeras polêmicas em que se engajou, Girard estivesse colocando em prática o pressuposto da centralidade do outro na definição da identidade. Afinal, não é verdade que o debate de ideias é um modo oblíquo de admiração?
O sujeito mimético, portanto, coincide com o sujeito antropofágico oswaldiano, pois idêntica divisa poderia defini-los “Só me interessa o que não é meu”.  Isto é, até transformar o alheio em próprio, e transformá-lo a tal ponto que as fronteiras entre o eu e o outro se confundem. No fundo, e cada um a seu modo, Oswald de Andrade e René Girard assimilaram criativamente a lição freudiana. A partir da leitura especialmente de Totem e Tabu (1913), o pensador e poeta brasileiro inverteu os termos da equação, descobrindo “a transformação permanente do Tabu em totem”.  O crítico literário e pensador francês superou a angústia da influência através da “força da explicação do desejo mimético mesmo em campos especificamente freudianos, como a psicopatologia”. Ou seja, em alguma medida, metamorfoseando o alemão no francês.
Oswald e Girard, então, sabem que é sempre a partir do outro que se define uma identidade, cuja precariedade pode ser vivida como abertura precisa à contribuição milionária da alteridade. No centro do sujeito mimético, portanto, encontra-se a multiplicação de outros, ou seja, de inúmeros modelos adotados na definição do desejo. Em outras palavras, há um novo caminho de pesquisa a ser trilhado no cruzamento inesperado entre René Girard, Sigmund Freud e Oswald de Andrade.

IHU On-Line - De que forma Girard analisa Deus como uma “invenção”? O que essa constatação demonstra sobre o sagrado e as projeções humanas?

João Cezar de Castro Rocha - “Deus é uma invenção?”, eis uma pergunta à qual respondo sem hesitar:
“Não”.
Assim, in media res (ou, dependendo da perspectiva, devidamente ab ovo) René Girard principia seu ensaio neste livro pela conclusão. E o faz de modo deliberadamente polêmico. A resposta lhana oferecida por Girard à pergunta-título deste livro é sintomática dos “olhos livres” com os quais construiu sua obra. O método utilizado para sustentar uma réplica tão confiante é o mesmo que fundou os alicerces da teoria mimética: um método comparativo de base textual.
Eis o alfa do pensamento girardiano. Egresso da École des Chartes, com formação de paleógrafo, e primeira inserção profissional na área dos estudos literários, Girard é essencialmente um leitor agudo de textos. Porém, e mais uma vez, como aliás é próprio de seu estilo intelectual, ele se revela um leitor na contramão das correntes dominantes, tanto na teoria da literatura quanto nas humanidades em geral. Ora, a concentração girardiana na leitura minuciosa de textos não o conduziu a uma hermenêutica asséptica, na qual textos somente se relacionam com textos, no jogo infinito de uma intertextualidade onívora e onipresente – autofágica, podemos dizer com lentes bem-humoradas.
Pelo contrário, o apuro na leitura de textos oriundos de autores distintos, culturas díspares e épocas históricas distantes entre si apenas reforçou o que deve ser considerado como o motivo determinante do “realismo girardiano”, definidor da epistemologia mimética.
O realismo girardiano parte do princípio da existência (necessária) de um referente externo ao texto. Segundo Girard, esse elemento confere inteligibilidade à miríade de textos disponíveis nas mais diversas tradições, na exata proporção em que se identifica um motivo recorrente ou uma estrutura comum em textos de procedências as mais variadas e, sobretudo, sem que seja razoável (ou mesmo possível) supor o conhecimento de uma única fonte textual, origem incontestável de todas as variações posteriores. Ora, a hipótese difusionista jamais alcançou real importância precisamente pela impossibilidade de demonstrar a existência do texto-origem ou da instituição-fonte. Nesse caso, uma pergunta metodológica se impõe: como entender a presença sistemática de motivos comuns ou de uma estrutura recorrente? Pode-se, agora, ler com olhos livres a justificativa girardiana (e posso eu completar a citação com a qual principiei este texto):

“Deus é uma invenção?”, eis uma pergunta à qual respondo sem hesitar:
“Não”.

Entre as várias concepções de Deus nas sociedades arcaicas, por mais numerosas que sejam, há semelhanças demais para que a hipótese de uma pura “invenção” possa ter a menor chance de ser verdadeira.
Em geral, o leitor contemporâneo somente escuta nesse “não” rotundo uma profissão de fé incompatível com a investigação científica – e essa é a razão pela qual o pensamento girardiano enfrenta resistências quase intransponíveis num universo acadêmico majoritariamente secularizado. Para agravar a situação, o pensador francês nunca negou sua adesão incondicional à fé cristã; na verdade, em mais de uma ocasião, especialmente nos últimos livros, Girard considerou sua obra uma apologia do cristianismo. Escamotear tal dimensão seria falsear o pensamento de René Girard. Para tudo dizê-lo: seria um ato de desonestidade intelectual.
Contudo, e como o paradoxo e as estruturas de duplo vínculo (double bind) são o sal da teoria mimética, nada impede que se leia no mesmo “não”, sempre rotundo, a possibilidade de desenvolvimento de uma epistemologia laica, apta a dar conta das consequências radicais da hipótese mimética.

IHU On-Line - Por que Girard afirma que a autonomia é uma ilusão romântica? O que o pensador compreende por desejo triangular?

João Cezar de Castro Rocha - A intuição inicial da teoria mimética diz respeito à natureza triangular do desejo humano. Isto é, não desejamos a partir de nós mesmos. Pelo contrário, aprendemos a desejar através dos olhos de modelos que consciente ou inconscientemente adotamos. Somos todos autênticos personagens shakespearianos que sempre se apaixonam a partir da sugestão de outros. Como no refrão da música popular, a teoria girardiana também afirma que não há dois sem três! Acreditar no caráter autocentrado do desejo constitui, pelo contrário, a ilusão romântica.
Aliás, a centralidade do outro na determinação da própria identidade é a consequência mais radical da concepção da subjetividade na teoria mimética. René Girard e Oswald de Andrade estão de acordo: “Só me interessa o que não é meu”. O sujeito mimético, portanto, é um perfeito antropófago.

Sobre a Biblioteca René Girard
A "Biblioteca René Girard" é um projeto da Editora É, em parceria com a Fundação Imitatio, que pretende promover o conhecimento da obra de René Girard, a fim de estimular o desenvolvimento de pesquisas sobre a teoria mimética. Para maiores detalhes, consulte-se o site oficial da Biblioteca René Girard: http://www.erealizacoes.com.br/renegirard/

Leia mais...

Confira os títulos já lançados pela Biblioteca René Girard, da É Realizações, disponíveis em www.renegirard.com.br. No mesmo site é possível ver quais serão os próximos lançamentos.

ANDRADE, Gabriel. René Girard: um retrato intelectual
ALISON, James. O pecado original à luz da ressurreição
DUPUY, Jean-Pierre. O tempo das catástrofes
GIRARD, René e CHANTRE, Benoit. Rematar Clausewitz
GIRARD, René. A conversão da arte
GIRARD, René. Anorexia e desejo mimético
GIRARD, René. Dostoiévski: do duplo à unidade
GIRARD, René. O sacrifício
GIRARD, René; SERRES, Michel. O trágico e a pidedade
GIRARD, René; ANTONELLO, Pierpaolo; CASTRO ROCHA, João Cezar de. Evolução e conversão
GIRARD, René. Quando começarem a acontecer essas coisas
GIRARD, René. Deus: uma invenção?
GROTE, Jim e McGEENEY, John. Espertos como serpentes
JOHNSEN, William A. Violência e modernismo: Ibsen, Joyce e Woolf
MENDONZA-ÁLVAREZ, Carlos. O Deus escondido da pós-modernidade

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