Edição 379 | 07 Novembro 2011

A ontologia indireta da literatura e a ontologia direta da filosofia

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Márcia Junges

Nascida de uma confluência e diálogo de saberes, a filosofia se une à literatura ao nos conscientizar do “brevíssimo tempo de vida” que temos, nos levando a “assumir intensamente nossos atos e pensamentos”, acentua Luiz Rohden

A partir de um diálogo com a poesia, literatura, religião e política é que nasce a filosofia. Assim, pode-se dizer que, desde seus começos, sua razão de ser se dá “no diálogo com outras formas de saber”, pondera Luiz Rohden, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Se à filosofia cabe a tarefa de elevar o real ao conceito, a literatura também se envereda nesta direção com a diferença de que o faz por caminhos, digamos, ‘menos abstratos’. Se a filosofia está preocupada em justificar uma ontologia por assim dizer ‘direta’, a literatura institui uma ontologia indireta do ser humano”. Em sua opinião, a literatura parece fornecer matéria-prima para a filosofia: “Nesse sentido, não rarambente a literatura traz à linguagem questões que só posteriormente a filosofia, como a coruja de minerva que só levanta voo ao entardecer, confere atenção e interesse especial em elevar ao conceito”.

Rohden é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestre e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com a tese Experiência e linguagem: princípios da hermenêutica filosófica. Cursou pós-doutorado na Boston College, nos Estados Unidos. De suas obras, destacamos: O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóteles (Porto Alegre: Edipucrs, 1997); Entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem (São Leopoldo: Unisinos, 2005) e Interfaces da hermenêutica: método, ética e literatura (Caxias do Sul: Editora UCS, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as maiores conexões transdisciplinares entre filosofia e literatura?

Luiz Rohden – Embora sejam duas áreas distintas do conhecimento humano, com suas idiossincrasias, encontramos conexões íntimas entre ambas. Do ponto de vista do tema abordado, podemos dizer que ambas aproximam-se em seu esforço para explicitar e compreender o ser humano em suas distintas perspectivas e relações. Por outro lado, a literatura parece fornecer uma espécie de matéria-prima à filosofia. Ricoeur  corrobora esta indicação: “que saberíamos nós do amor e do ódio, dos sentimentos éticos e, em geral, de tudo aquilo a que nós chamamos o si, se isso não tivesse sido trazido à linguagem e articulado por meio da literatura?”. Nesse sentido, não raramente a literatura traz à linguagem questões que só posteriormente a filosofia, como a coruja de minerva que só levanta voo ao entardecer, confere atenção e interesse especial em elevar ao conceito.

Nessa perspectiva, a literatura, como um modo de expressão e de constituição da subjetividade, precede à filosofia à medida que tematiza o real ao mesmo tempo em que cria novas realidades. Dizemos que a ficção precede e ao mesmo tempo institui a [uma] realidade.

O fato é que ambas constituam-se na e enquanto linguagem. Se à filosofia cabe a tarefa de elevar o real ao conceito, a literatura também se envereda nessa direção com a diferença de que o faz por caminhos, digamos, “menos abstratos”. Se a filosofia está preocupada em justificar uma ontologia por assim dizer “direta”, a literatura institui uma ontologia indireta do ser humano.
Tomemos, a título de exemplo, a afirmação de E. A. Poe de que “quem tem apenas um momento mais de vida / Nada mais tem a dissimular” [Epígrafe empregada por Poe no seu conto “Manuscrito encontrado na Garrafa”, p. 81]. Estampa-se nela a grande questão de que é diante da consciência da finitude que ele, o ser humano, pode viver de forma mais plena e intensa. A morte, ou seja, a vida é uma questão filosófica e literária à medida que sua tematização nos ajuda a viver melhor, o que equivale a dizer que ela nos dá dicas para aprender a morrer. A consciência do nosso brevíssimo tempo de vida nos leva assumir intensamente nossos atos e pensamentos, e nisso a filosofia e a literatura encontram-se de mãos dadas.

IHU On-Line – A filosofia tem conseguido dialogar com outros saberes e culturas?

Luiz Rohden – A filosofia nasce do diálogo com a poesia, com a literatura, com a religião, com a política. Sua razão de ser enraíza-se, desde suas origens, no diálogo com outras formas de saber. Aliás, ela originou-se da confluência das diferentes culturas existentes em sua volta. Daí porque não podemos reduzir a filosofia à sua história, mas não devemos prescindir dela jamais. Mais que historiografia ou estudo de conceitos, filosofar implica dialogar com os diferentes saberes e culturas. Para corroborar isso, lembro que o curso de graduação de Filosofia da Unisinos oferece disciplinas de Filosofia e Literatura, Filosofia e Pensamento Oriental, Filosofia e Técnica, Filosofia e Bioética e na pós-graduação são disponibilizados seminários sobre temas de fronteira.

IHU On-Line – Há um diálogo ou pontos de aproximação entre a filosofia oriental e a ocidental? Se sim, em que consistem?

Luiz Rohden – Em primeiro lugar, as relações entre filosofia e pensamento oriental são tomadas, muitas vezes, como tensas e excludentes. Um olhar cuidadoso, porém, nos revela que a filosofia grega alimentou-se da tradição oriental agregando-lhe um elemento próprio, ou seja, uma leitura conceitual, ou uma espécie de formalização daquele saber.
Se o pensamento oriental baliza sua proposta em função de uma vida melhor tramada pela noção de totalidade, a filosofia também se pauta por ela com a pretensão, porém, de procurar abstrair e explicitar aquela proposição em uma forma teórica. Se a primeira pode ser vista como uma proposta de se viver a unidade, a segunda continua nesse caminho com o acréscimo de procurar justificá-la com argumentos passíveis de serem compreendidos por todos e não apenas por aqueles que creem neste ou naquele deus. Com isso não emitimos um julgamento moral sobre a distinção entre ambas.
Particularmente, às vezes tenho a impressão de que o pensamento oriental encontra-se espelhado, por exemplo, na filosofia prática de Aristóteles, ou, mais precisamente, em seus tratados sobre ética. Sou da opinião de que se a política e a economia já perceberam a necessidade vital de estreitar laços entre Oriente e Ocidente, à filosofia cabe também a tarefa urgente de enveredar-se em tal caminho por razões da sua própria natureza dialogante.

IHU On-Line – Em que aspectos Guimarães Rosa é um místico-metafísico?

Luiz Rohden – Na sua obra Tutameia, Rosa nos brinda com a seguinte declaração: “a vida também é para ser lida, não literalmente, mas no seu suprassenso”. Trata-se de uma pista que nos aponta um caminho de fazer literatura similar ao procedimento metafísico na medida em que justifica um modo de compreendermos a vida não “literalmente”, mas “no seu suprassenso”, não apenas materialmente, mas metafisicamente. Sabemos todos que não nos alimentamos apenas de pão, mas de símbolos, de ideias. Em meio à multiplicidade, à temporalidade e à diversidade da vida, por natureza somos seres metafísicos na medida em que procuramos encontrar e tecer uma unidade à imagem do cosmos. Riobaldo, o jagunço metafísico por excelência, especulava ideias e expressou seu anseio metafísico dizendo “porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total”. Esta ânsia pela totalidade expressa a dimensão místico-metafísica do humano, constitui-se pelo esforço de compreensão do real e plenifica-se numa experiência inobjetivável ao modo daquele que nos apresenta Platão na sua Carta Sétima.
Guimarães, ao falar de sua obra, nos revelou que seus livros são, em essência, “‘anti-intelectuais’ – defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão”. Aliás, era um conhecido leitor da tradição mística, sendo Plotino um dos seus preferidos.

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