Edição 374 | 26 Setembro 2011

O Platão de Lima Vaz

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Márcia Junges

Ainda sem o devido reconhecimento no panteão filosófico, a obra do jesuíta brasileiro aponta a similaridade das raízes do niilismo ético e da modernidade, reportando-se ao sistema platônico de maneira peculiar, aponta Marcelo Perine. Meditação sobre o Ser é “o mais grave e sério empenho da vida”, acentuava

“Platão e a Grécia estão presentes do início ao fim do itinerário filosófico do Pe. Vaz”, observa Marcelo Perine, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Considerado pelo jesuíta o “gênio tutelar da cidade dos filósofos”, há peculiaridades no platonismo que adotou ao longo de sua trajetória intelectual. Um dos grandes temas sobre os quais se debruçou foi o niilismo ético da modernidade, um dos sintomas que mais o preocuparam nas últimas três décadas de sua produção filosófica. Lima Vaz procurou desvendar o “enigma de uma civilização tão prodigiosamente avançada na sua razão técnica e tão dramaticamente indigente na sua razão ética”, recorda Perine. Assim, “as raízes do niilismo ético seriam as mesmas da modernidade, forjada no cerne das revoluções que abalaram todas as estruturas do mundo ocidental a partir do final do século XVI, dentre as quais se inscreve o cartesianismo como a maior revolução filosófica depois de Platão”. Até o momento, pontua Perine, a obra vazina “não recebeu o lugar que lhe é devido no panteão das grandes filosofias do nosso tempo, particularmente no Brasil”.

Coordenador da Comissão da área de Filosofia e Teologia da Capes, Perine é graduado em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, São Paulo, e em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É mestre e doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG, na Itália, com a tese Filosofia e violência. Um estudo sobre o sentido e a intenção da filosofia de Eric Weil (São Paulo: Edições Loyola, 1987). Fez pós-doutorado na Università Vita Salute San Raffaele, na Itália. De sua produção intelectual, citamos as obras Um conflito de humanismos (Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2001), escrito em parceria com Henrique Cláudio de Lima Vaz, Platão. A República (São Paulo: Scipione, 2002) e Quatro lições sobre a ética de Aristóteles (São Paulo: Edições Loyola, 2006). Leciona na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, no Departamento de Filosofia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que se pode falar em um “Platão de Lima Vaz”?

Marcelo Perine - A presença de Platão no roteiro da formação das ideias filosóficas do Pe. Lima Vaz é incontestável. O autotestemunho mais antigo a respeito encontra-se na sua Bio-Bibliografia, publicada inicialmente em 1976, no volume Rumos da filosofia atual no Brasil  e republicado, em 1982, no volume Cristianismo e história, organizado por Carlos Palácio como homenagem à celebração dos 60 anos de Lima Vaz.  Nesse autotestemunho Lima Vaz afirma que “a meditação do problema do sobrenatural no seu desenrolar histórico”, provocada pela obra do Pe. de Lubac , lhe descobriu “a posição arquetipal do platonismo nas estruturas mentais do Ocidente, e da teologia cristã em particular”, de modo que a partir de 1948, ainda como estudante de Teologia em Roma, ele afirma que se entregou “totalmente ao estudo dos ‘Diálogos’” e começou a “dar os primeiros passos incertos no campo sem fim da bibliografia platônica”. Esse primeiro contato com o texto de Platão foi fecundo, pois já no início do seu doutorado em Filosofia na Gregoriana, em 1950, ele afirma que “algumas linhas de uma possível tese já estavam esboçadas e era uma tese sobre Platão”.  Além desse autotestemunho, o minucioso trabalho de Rubens Godoy Sampaio  demonstrou exaustivamente a presença “fundacional” de Platão no método e na estrutura, nos temas e no sistema filosófico de Lima Vaz.  Já no primeiro capítulo, intitulado “Apresentação textual-cronológica dos temas de Lima Vaz”, Rubens Sampaio identifica em dois textos publicados em Ontologia e história, a saber, “A dialética das ideias no Sofista” e “Itinerário da ontologia clássica” , o que ele chama de “o ponto de partida da apresentação da metafísica do existir”.  De maneira mais detalhada, no capítulo quatro, sobre “O método dialético e a rememoração filosófica”, Rubens Sampaio demonstra que “o pensamento filosófico vaziano desdobra-se em sistema graças ao método dialético”, e que “Lima Vaz reinventou os métodos dialéticos platônico e hegeliano”, a ponto de determinar toda estrutura do seu sistema filosófico.

IHU On-Line - Quais são as peculiaridades de seu platonismo? E como esse platonismo se expressa em sua filosofia?

Marcelo Perine - Quando interrogado por Marcos Nobre e José Marcio Rego, em Conversas com filósofos brasileiros, sobre os conceitos mais representativos da sua posição filosófica, como eles surgiram e como os via então, Lima Vaz afirmou que se ligava a uma tradição para a qual a filosofia eleva-se sobre o transitório em busca de princípios que são também fundamentos. Os conceitos fundacionais que o acompanharam ao longo de sua evolução são o de “ato de existir”, recebido de Tomás de Aquino, que é a pedra angular da metafísica. Da antropologia filosófica, o conceito fundamental é o de eu como expressividade. A metafísica e a antropologia filosófica abriram-lhe o caminho para a ética, cujo conceito fundamental é o de bem, recebido de Platão e Aristóteles. E concluiu a sua resposta com uma afirmação que, a meu ver, revela a peculiaridade do seu platonismo e o modo como ele se expressa em sua filosofia: “Penso que os conceitos que chamo ‘fundacionais’, presentes já desde o início no núcleo básico das ideias filosóficas nas quais fui formado, foram sendo explicitados e adquirindo uma estrutura formal mais definida ao longo do meu magistério e do trabalho de preparação dos meus cursos. Aqui está realmente o roteiro da formação das minhas ideias filosóficas fundamentais”.

IHU On-Line - Em que medida Platão e a Grécia se constituíram em elementos importantes para a compreensão filosófica vaziana?

Marcelo Perine - Num texto originalmente escrito como conferência de encerramento da II Semana Filosófica da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, ocorrida de 2 a 6 de agosto de 1993, sob a epígrafe temática “Cultura e Filosofia”, publicado na revista Síntese , e retomado como primeiro capítulo dos Escritos de filosofia III, cujo subtítulo é, justamente, Filosofia e Cultura, Lima Vaz escreve algo que, a meu ver, responde a esta questão. Ele diz: “Platão e Hegel situam-se no começo e no fim da aventura da filosofia ocidental, entendida como o projeto talvez desmesurado, fruto da audácia de alguns efêmeros mortais, de recriar o mundo das coisas e o mundo dos homens à luz de um logos que julga, demonstra e unifica. Fazer-se o servidor e o seguidor desse logos, assim como Platão o propõe no Fédon, representa o risco da existência filosófica marcada [...] por essa atopia que a torna estranha ao torvelinho dos afazeres mundanos. Mas é justamente sobre esse torvelinho que o filósofo se debruça na intenção de reordená-lo segundo os cânones desse logos que ele se propôs seguir. Platão e Hegel representam, justamente, dois modelos dessa reordenação e, igualmente, duas possibilidades arquetípicas de interpretação da cultura segundo a matriz do logos filosófico”.

Na resposta anterior já citei a palavra de Lima Vaz referindo-se à presença de Platão e de Aristóteles, dos quais herdou o conceito fundamental da ética, que é o conceito de bem. Além disso, como demonstrou Rubens Sampaio, “a exposição da dialética platônica como ontologia e como método, recuperada e enriquecida por Hegel, faz-se presente na obra de Lima Vaz”.  A prova disso encontra-se num dos últimos textos de Lima Vaz, “Método e dialética”, escrito para o Terceiro Colóquio Filosófico da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, em outubro de 2000 e publicado em 2002 no volume Filosofia e método, que reúne as comunicações do evento.  Nesse texto, que é quase um testamento filosófico, Lima Vaz reflete novamente sobre a presença da dialética na histórica do pensamento ocidental e conclui exemplificando o uso da dialética na elaboração da sua Antropologia filosófica e no segundo volume da sua Introdução à ética filosófica.  Segundo Lima Vaz, esses dois textos podem ser considerados, respectivamente, como uma ontologia da pessoa humana e uma ontologia do agir humano, porque pretendem ser uma reflexão e um discurso sobre o ser humano e o seu agir do ponto de vista da sua inteligibilidade radical. Como se vê, por mais este autotestemunho, Platão e a Grécia estão presentes do início ao fim do itinerário filosófico de Lima Vaz.

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