Edição 374 | 26 Setembro 2011

O Platão de Lima Vaz

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Márcia Junges



IHU On-Line - Que características fundamentais apontaria em seu pensamento?

Marcelo Perine - Na resposta à segunda pergunta já lembrei que Lima Vaz afirmava que se ligava a uma tradição para a qual a filosofia se eleva, como por um movimento inato à sua natureza, sobre o transitório e o événementiel, e vai em busca de princípios, que são também fundamentos. Num de seus últimos textos dedicados a Platão, escrito em 1993 para a aula inaugural do Curso de Doutorado em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, com o sugestivo título “Platão revisitado. Ética e metafísica nas origens platônicas”, republicado recentemente no volume de Escritos de filosofia VIII. Platonica, Lima Vaz serve-se da ocasião para fazer um inventário do patrimônio que Platão legou à nossa tradição de filosofia. Logo no início do texto ele afirma: “a história de quase dois milênios e meio da pragmateia filosófica no Ocidente, a começar pelos discípulos imediatos de Platão e pelo maior deles, Aristóteles, nos mostra que o gesto inaugural de toda decisão autêntica de filosofar dentro da nossa tradição é um encontro ou um reencontro com Platão. Platão é o gênio tutelar da cidade dos filósofos, e seu pensamento é o pórtico por onde se entra nessa cidade que cresceu até tornar-se a megalopolis de ideias e sistemas por onde hoje andamos e muitas vezes nos perdemos”.  Na conclusão deste texto, Lima Vaz afirma que a atual “desplatonização” da filosofia, iniciada com Feuerbach, traduz-se hoje como “desconstrução” do edifício metafísico erguido por Platão na primeira metade do século IV a.C. Mas, continua Lima Vaz, “desconstruir esse edifício é também não deixar pedra sobre pedra na morada oferecida pela ordem das razões normativas do agir que o homem ocidental habitou durante tantos séculos e que denominamos Ética. O que resta depois dessa ‘desconstrução’ é o niilismo ou os escombros do sentido, que jazem sob os pés do homem errante do nosso tempo. Para mim, em todo caso, filosofar não é ‘desconstruir’ mas, como queria Hegel, ‘rememorar’, vem a ser, retomar no esforço presente do conceito a longa história do ser tal como foi inaugurada exatamente pela audácia do filosofar platônico; e reiterar igualmente a experiência que Platão nos mostra vivida exemplarmente por Sócrates  e que se tornou o modelo proposto aos alunos da primeira escola de filosofia que a nossa tradição conheceu: a de que a meditação sobre o Ser não é um inocente prazer da inteligência: é o mais grave e sério empenho da vida, é a passagem incessante do ser ao dever-ser (on-deon, Fed. 97 C, 99 C), do Ser ao Bem, da Metafísica à Ética”.  Portanto, a noesis em busca dos princípios e dos fundamentos, junto com a rememoração do esforço do conceito são, a meu ver, as características centrais do seu pensamento.

IHU On-Line - Qual é a atualidade e originalidade da análise de Lima Vaz sobre a modernidade?

Marcelo Perine - A meu ver, Lima Vaz nunca fez uma análise ex professo da modernidade, mas preocupou-se principalmente com alguns sintomas do que se poderia chamar de “crise da modernidade”. Talvez o sintoma que mais o preocupou foi o niilismo ético, anunciado de maneira tão impressionante por Nietzsche na aurora do século XX, com o qual a reflexão de Henrique Vaz se defrontou longa e silenciosamente nas últimas três décadas da sua vida filosófica. Como procurei mostrar num artigo publicado na Revista Síntese , o niilismo ético pode ser tomado como a chave de compreensão para o que Henrique Vaz chamou de “enigma da modernidade”, que, segundo ele, se traduz no “trágico paradoxo de uma civilização sem ética ou de uma cultura que no seu impetuoso e, aparentemente, irresistível avanço para a universalização, não se fez acompanhar pela formação de um ethos igualmente universal, que fosse a expressão simbólica das suas razões de ser e do seu sentido” , ou ainda, de maneira mais sintética, o “enigma de uma civilização tão prodigiosamente avançada na sua razão técnica e tão dramaticamente indigente na sua razão ética”.  As raízes desse niilismo ético deveriam ser buscadas numa tríplice ruptura apontada por Henrique Vaz: uma ruptura com a estrutura axiológica e normativa do ethos, que organiza teleologicamente as estruturas objetivas da socialidade; uma ruptura com a tradição pela primazia do futuro na concepção do tempo na modernidade, que levou ao predomínio do fazer técnico na concepção da ação humana, e, finalmente, uma ruptura com o fundamento transcendente das normas e dos fins da ação humana pela imanentização do sentido e do fundamento do valor na razão finita e na liberdade situada. Portanto, as raízes do niilismo ético seriam as mesmas da modernidade, forjada no cerne das revoluções que abalaram todas as estruturas do mundo ocidental a partir do final do século XVI, dentre as quais se inscreve o cartesianismo como a maior revolução filosófica depois de Platão. De fato, afirma Lima Vaz, “é na revolução operada por Descartes na estrutura do pensamento clássico que devem ser buscadas as origens de uma nova ideia da Ética e de uma nova figura da consciência moral”.

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