Edição 371 | 29 Agosto 2011

A reformulação do imperativo categórico e a reabilitação da natureza

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Márcia Junges

A partir do pensamento de Kant, Hans Jonas expande o agir moral para “uma vida autenticamente humana na Terra”, e devolve importância à natureza no debate filosófico. De acordo com Lilian Godoy, a reflexão ética é o maior legado de Jonas

“A natureza já se faz presente nas primeiras publicações de Jonas – posteriores à sua reflexão inicial sobre a gnose – quando ele percebe a necessidade de se voltar para a questão do organismo, dando os primeiros passos em direção à filosofia da biologia ou à sua biologia filosófica. Nesse sentido, entre outras coisas, pode-se atribuir a Jonas o mérito de estar entre aqueles que restituíram à natureza a sua relevância como tema filosófico, devolvendo à natureza a dignidade perdida desde a emergência da ciência moderna, quando a natureza deixou de ser vista como ameaça (como era vista pelos primeiros humanos), para ser reduzida (desde a modernidade) a mero objeto a ser conhecido (matematicamente) e dominado em proveito do homem”. É o que diz a filósofa Lilian Godoy, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. A pesquisadora explica, também, a reformulação do imperativo categórico kantiano proposta por Jonas e aponta a reflexão ética como a de maior importância desse pensador para nossos dias.

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, Lilian Godoy é mestre e doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG com a tese Hans Jonas e a responsabilidade do homem frente ao desafio biotecnológico. Atualmente, leciona na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.

Confira a entrevista.

HU On-Line – Qual é a importância do pensamento de Hans Jonas no contexto da filosofia contemporânea?

Lilian Godoy – O pensamento de Hans Jonas, infelizmente ainda muito pouco conhecido no cenário intelectual brasileiro, é de extrema relevância, não só no contexto filosófico, mas para nossa situação contemporânea, de modo geral. Sobretudo porque, tendo sido aluno de filósofos importantes como Edmund Husserl  e Martin Heidegger e colega de outros tantos pensadores de destaque entre os quais Hannah Arendt, Jonas, ao longo de sua vida, participou ativamente de importantes eventos históricos do século XX (segunda grande guerra, independência de Israel, primórdios das discussões sobre temas ligados à bioética, realizadas no famoso Hastings Center), os quais tiveram uma indiscutível repercussão nos diferentes momentos de sua obra.
Desse modo, explica-se que, partindo de seus estudos iniciais sobre a gnose, durante os anos 1950, em função de sua experiência como soldado, Jonas tenha se dedicado a refletir sobre temas ligados à vida, que irão constituir a sua “filosofia da biologia” ou “biologia filosófica”. Já nos anos 1970, como integrante do Hastings Center, explica-se porque ele tenha direcionado sua reflexão para os problemas éticos levantados por nossa civilização tecnológica. E, sem sombra de dúvidas, é precisamente a sua reflexão ética a que maior importância tem para o contexto atual.

IHU On-Line – A partir da obra desse pensador, como analisa a responsabilidade do homem frente ao desafio biotecnológico?

Lilian Godoy – Em sua obra mais importante e mais conhecida – O princípio responsabilidade, cujo subtítulo é “Uma ética para a civilização tecnológica” – Jonas analisa a situação em que se encontra nossa civilização (sobretudo a ocidental), partindo da constatação de que, em função dos avanços tecnológicos alcançados, o agir humano sofreu uma profunda alteração, dado que os efeitos de nossas ações, antes restritos, agora foram significativamente ampliados tanto na dimensão espacial quanto na temporal. Por esse motivo, nenhuma das éticas da tradição filosófica nos fornece elementos para pensar essa nova configuração da ação humana. Daí, para dar conta dessa nova situação, ele percebe a necessidade de também o conceito de responsabilidade ser ampliado espaço-temporalmente. Sendo assim, ele propõe uma reformulação do mais célebre imperativo moral, o imperativo categórico kantiano, para elaborar o seu princípio responsabilidade, cuja formulação principal é a seguinte:
“Age de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra” (PR p. 40).
Com base nesse princípio, portanto, é possível confrontar os principais desafios colocados pela nova biotecnologia à nossa geração. Pois, em função das inúmeras possibilidades trazidas pela descoberta da técnica do DNA recombinante, tornou-se um enorme problema ético pensar até que ponto é possível aceitar que sejam feitas combinações genéticas, sobretudo para além dos fins terapêuticos, sem alterar, com isso, a nossa própria condição humana. O que Jonas nos fornece, portanto, é um parâmetro para pensar a aceitabilidade de tais modificações: somos hoje, mais do que nunca, responsáveis pela permanência de uma vida autenticamente humana na Terra.

IHU On-Line – Quais são os principais impasses éticos contemporâneos relacionados à biotecnologia?

Lilian Godoy – Antes de tudo, cabe frisar que existem diversas definições de biotecnologia. Para efeito dessa reflexão, o ponto de partida pode ser a definição estabelecida em 1992, pela Convenção sobre diversidade biológica da ONU, segundo a qual: “Biotecnologia significa qualquer aplicação tecnológica que use sistemas biológicos, organismos vivos ou derivados destes, para fazer ou modificar produtos ou processos para usos específicos.” Assim, já nos primórdios da civilização humana, a biotecnologia foi utilizada, especialmente na fabricação de alimentos como queijos, iogurtes, cervejas, vinhos, etc.
Por isso, quando se discutem os impasses éticos colocados pela biotecnologia, o que está em questão são as possíveis aplicações da técnica do DNA recombinante, sobretudo aquelas dirigidas direta ou indiretamente aos seres humanos e, mais especificamente, aquelas que ultrapassam os fins terapêuticos e se voltam principalmente para o melhoramento genético (eugenia positiva) e para mutações genéticas (projeto pós-humano). Justamente porque são esses dois usos aqueles que mais podem afetar a nossa descendência e comprometer a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra.

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