Edição 371 | 29 Agosto 2011

A reformulação do imperativo categórico e a reabilitação da natureza

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Márcia Junges



IHU On-Line – Em que aspectos é possível aproximar o princípio de universalização da ética do discurso de Habermas e o princípio da responsabilidade de Jonas?

Lilian Godoy – Embora tanto o princípio de universalização da ética do discurso de Habermas quanto o princípio da responsabilidade de Jonas tenham em comum uma certa filiação ao imperativo categórico kantiano: o primeiro fazendo uma reformulação linguístico-pragmática e o segundo fazendo uma ampliação (espaço-temporal) de seu antecessor, é muito difícil tentar uma aproximação entre eles. Sobretudo porque foram concebidos em contextos filosóficos muito distintos e visaram responder a preocupações éticas inteiramente diferentes. Habermas , ao lado de Apel , buscava sustentar contemporaneamente uma ética cognitivista pós-convencional, no interior de uma Teoria da Argumentação, partindo de sua Teoria do Agir Comunicativo. Enquanto Jonas, como já dito acima, buscava encontrar uma ética capaz de responder às inquietações de nossa civilização tecnológica.
Entretanto, se alguma semelhança pode ser apontada entre os dois, ela é o fato de que ambos incluem, em suas respectivas formulações, a preocupação com os efeitos e as consequências das ações, para além dos próprios agentes envolvidos, coisa que o imperativo categórico de Kant, por razões internas à sua concepção ética, não fazia.

IHU On-Line – A partir das teorias de Jonas e Alasdair MacIntyre, como percebe a ambiguidade do progresso?

Lilian Godoy – Embora tanto Jonas quanto MacIntyre sejam críticos da condição humana contemporânea, eles divergem tanto no foco da crítica, quanto na solução apontada. MacIntyre focaliza especialmente sua reflexão nos problemas das filosofias moral e política modernas, as quais – segundo entende – encontram-se enormemente fragmentadas e inflacionadas. A solução que propõe é examinar a questão não do ponto de vista liberal, mas preferencialmente do ponto de vista da concepção moral e política aristotélicas. Assim, a tarefa que ele se dá em Após a virtude é explicar o aspecto problemático do discurso moral da sociedade atual e reabilitar o que ele considera como uma alternativa esquecida: a racionalidade teleológica da ética aristotélica da virtude. Em outros termos, MacIntyre sugere como solução aos problemas atuais, uma volta à tradição, para recuperar a ética das virtudes.

Jonas, por seu turno, como já mencionado acima, faz um diagnóstico da situação contemporânea a partir do extraordinário avanço tecnológico alcançado por nossa civilização e, justamente por essa situação que ele avalia como inédita, ele considera impossível encontrar na tradição, como o faz MacIntyre, respostas aos nossos problemas éticos mais cruciais. Daí que ele assume em seu O princípio responsabilidade, a difícil tarefa de propor uma ética (também inédita) destinada exclusivamente à nossa civilização tecnológica.
Com relação às ambiguidades do progresso, poderíamos considerar que, no pensamento de MacIntyre, elas surgem particularmente em sua crítica ao individualismo, típico do liberalismo, por prejudicar nossas análises e decisões sobre importantes questões de nosso tempo. E no de Jonas, em sua análise da civilização tecnológica e em sua crítica à utopia, quando fica nítido que o progresso, de um lado, responde a inúmeras necessidades e anseios da espécie humana, mas, de outro, compromete a continuidade da vida humana e da vida em geral e, assim, o futuro de nosso planeta.

IHU On-Line – Com vistas a esse cenário, em que medida a filosofia de Hans Jonas fundamenta uma ética ambiental, ou uma ética da natureza?

Lilian Godoy – Quando Jonas nos propõe o seu princípio responsabilidade (em suas 4 diferentes formulações), ele expressa, nitidamente, a sua profunda preocupação com relação à vida futura na Terra, mais exatamente, o que ele chama de vida “autenticamente humana”.
Numa passagem particularmente significativa, ele nos diz:

“O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento humano coletivo na era da civilização técnica, que chegou a ser ‘onipotente’ de modo negativo. Não está aqui explicitamente incluído o futuro da natureza como condição sine qua non; mas ademais, independentemente disso, o futuro da natureza é de sua responsabilidade metafísica, uma vez que o homem não só se converteu em um perigo para si mesmo, mas também para toda a biosfera” (PV, p. 245; PR, p. 227).

Esse trecho evidencia que a preservação da biosfera é condição sine qua non da continuidade da vida em geral e da humana em particular. Além disso, no texto intitulado “Hans Jonas e a responsabilidade como fundamento para uma ética para a natureza”, apresentado no último encontro da Anpof (outubro de 2010), procurei mostrar que o tema da natureza não surge no pensamento jonasiano como um apêndice ou uma descoberta tardia motivada pelos dramáticos acontecimentos que, em seu tempo, já prenunciavam os problemas ambientais que hoje testemunhamos. Ao contrário, a natureza já se faz presente nas primeiras publicações de Jonas – posteriores à sua reflexão inicial sobre a gnose – quando ele percebe a necessidade de se voltar para a questão do organismo, dando os primeiros passos em direção à filosofia da biologia ou à sua biologia filosófica. Nesse sentido, entre outras coisas, pode-se atribuir a Jonas o mérito de estar entre aqueles  que restituíram à natureza a sua relevância como tema filosófico, devolvendo a ela a dignidade perdida desde a emergência da ciência moderna, quando a natureza deixou de ser vista como ameaça (como era vista pelos primeiros humanos), para ser reduzida (desde a modernidade) a mero objeto a ser conhecido (matematicamente) e dominado em proveito do homem.

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