Edição 368 | 04 Julho 2011

A era da memória total e do esquecimento contínuo

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Márcia Junges

Nossos arquivos de memória estão se tornando digitais, constata Erick Felinto. Criatura simbólica, o ser humano tem relações mediadas, e aquelas “face a face” não podem ser consideradas mais autênticas do que as mediadas tecnologicamente

Na opinião do pesquisador Erick Felinto, “vivemos uma era da ‘memória total’, já que a digitalização dos suportes trouxe capacidades inauditas de armazenagem de informação”. Por outro lado, existe um excesso de informação e uma rapidez que produzem “esquecimento contínuo e um apagamento do passado. O que acontece, também, é que todos os ‘arquivos’, toda nossa memória, estão assumindo a forma do digital”. Estas ponderações fazem parte da entrevista a seguir concedida por e-mail à IHU On-Line. Felinto critica o fato de as relações “face a face” serem consideradas mais autênticas do que aquelas mediadas tecnologicamente, classificadas por vezes como “ilusórias”: “Isso é de uma ingenuidade absurda. O ser humano é uma criatura simbólica. Suas relações com o mundo são, desde sempre, ‘mediadas’. Minhas relações sociais nas redes podem ser tão ou mais intensas (ou superficiais) quanto minhas conexões ‘presenciais’”. Sobre as tecnológicas que pretensamente teriam revolucionado o mundo, é enfático: “Todas as tecnologias foram de algum modo ‘revolucionárias’, especialmente no contexto histórico de sua emergência. O desenvolvimento da escrita é tão (ou possivelmente mais) ‘revolucionário’ que o surgimento da internet”.

Erick Felinto é graduado em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutor em Letras pela UERJ, onde atualmente leciona. Cursou pós-doutorado na Universidade de Kunst, em Berlim, Alemanha. Com Ivana Bentes escreveu Avatar: o Futuro do Cinema e a Ecologia das Imagens Digitais (Porto Alegre: Sulina, 2010). Outras de suas obras são A religião das máquinas: ensaios sobre o imaginário da cibercultura (Porto Alegre: Sulina, 2005); Silêncio de Deus, Silêncio dos Homens: Babel e a Sobrevivência do Sagrado na Literatura Moderna (Porto Alegre: Sulina, 2008) e A Imagem Espectral: Comunicação, Cinema e Fantasmagoria Tecnológica (São Paulo: Ateliê, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em seu ponto de vista, quais são as tecnologias que revolucionaram o mundo?

Erick Felinto – O termo “revolucionário’ é próprio de uma abordagem tipicamente marqueteira e propagandística que caracteriza boa parte da literatura não acadêmica (e também, infelizmente, acadêmica) sobre o tema das tecnologias comunicacionais. Todas as tecnologias foram de algum modo “revolucionárias”, especialmente no contexto histórico de sua emergência. O desenvolvimento da escrita é tão (ou possivelmente mais) “revolucionário” que o surgimento da internet. E já está exaustivamente estudado como a retórica popular sobre a invenção tecnológica repete os mesmo chavões de um período histórico ao outro: o que se fala hoje sobre a internet é muito semelhante ao que se falou sobre o telégrafo no século XIX. Nesse sentido, procuro evitar expressões como essa, que produzem uma cegueira histórica danosa aos estudos de comunicação e tecnologia. Contudo, se em vez disso falarmos em transformações culturais tecnologicamente motivadas, então teremos, antes de qualquer coisa, que atentar para o caráter cíclico dessas mudanças. Essas “revoluções” parecem acontecer em ondas históricas de desenvolvimento, o que põe em cheque o discurso de “novidade radical” com que as tecnologias costumam ser apresentadas. Isso não significa que não existam novidades nem mutações radicais, mas elas são um traço contínuo da história humana – quiçá mesmo da história natural. A instauração das tecnologias digitais nos apresenta, porém, um traço interessante e singular. Eles produziram uma espécie de cesura histórico-tecnológica, no sentido em que todo tipo de informação – imagética, sonora, textual – passou a ser constituído em modo digital.

Uma língua universal

A “digitalização” do mundo é um acontecimento extremamente importante, pois atinge desde nossa visão da comunicação até nossa percepção sobre a vida, agora traduzida também em forma binária (o código genético, mapeado, por exemplo, no projeto genoma humano). Se quisermos entrar no domínio do imaginário, poderíamos especular que o digital realiza um antigo sonho da Filosofia: a criação de uma mathesis universalis, de uma língua universal capaz de traduzir tudo em bits e bytes. Desse modo, em lugar de falar de tecnologias que revolucionaram o mundo, prefiro assinalar essa peculiaridade do paradigma digital, que afeta de modo abrangente uma série de diferentes tecnologias.
Na base dessa perspectiva que prefiro adotar está uma concepção de história totalmente não linear, marcada por saltos e rupturas (ou “catástrofes”, como já se afirmou) em vez de continuidades. A história das tecnologias demonstra esse aspecto descontínuo da nossa experiência temporal. Ray Kurzweil  defende uma teoria da evolução tecnológica caracterizada por transformações exponenciais ou longo da história. Ou seja, atualmente, num espaço de 40 anos, testemunhamos mais transformações do que se processou na duração inteira dos dois séculos antecedentes.

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