Edição 368 | 04 Julho 2011

A era da memória total e do esquecimento contínuo

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges



IHU On-Line – Sob quais aspectos essas tecnologias são revolucionárias e ainda prometem mudar ainda mais a vida dos sujeitos contemporâneos?

Erick Felinto – Como eu disse na resposta anterior, acho que essa expressão tremendamente problemática, e toda tecnologia desencadeia transformações radicais nos sujeitos que a vivenciam. Julian Jaynes, um psicólogo hoje quase que inteiramente esquecido, que tinha vínculos com a Escola de Toronto, desenvolveu a interessante tese de que a consciência não é um fenômeno “naturalmente” humano, e que tem, na verdade, uma data de nascimento e uma origem histórica (por volta de 3 mil anos atrás). A emergência da consciência, para ele, estava de algum modo conectada ao desenvolvimento da escrita, que teria auxiliado num processo de distanciamento do sujeito em relação a seu próprio self. Reformulando o que já foi dito: toda tecnologia é “revolucionária” porque reconfigura a cultura e os processos de subjetivação. No arquivo Flusser , em Berlim, descobri um texto inédito do filósofo no qual ele estabelece uma brilhante reflexão sobre toda a cultura ocidental a partir da invenção da roda (e dos automóveis). Mais importante que enumerar tecnologias particulares, é estarmos atentos para o tipo de reconfiguração que os aparatos próprios de nosso momento histórico estão produzindo. Nesse sentido, podemos afirmar que o computador, a internet e o paradigma tecnológico digital estão cooperando para uma profunda reconfiguração do que entendemos por “ser humano”. Não é à toa que o tema do “pós-humanismo”  é um dos mais populares, hoje, no âmbito das ciências humanas. A separação entre o natural e o artificial – se é que ela realmente existiu algum dia – está para ser dramaticamente problematizada. Há fortes indicações de que o futuro trará uma reinvenção do humano, na qual a tecnologia será literalmente “incorporada” por nós, de tal modo que as fronteiras entre homem e máquina poderão se esfumaçar radicalmente. Se isso é positivo ou negativo, está aberto à discussão.

IHU On-Line – Numa cultura caracterizada pela comunicação de massas, qual é o lugar da memória e do esquecimento?

Erick Felinto – Não estou seguro de que nossa cultura ainda seja caracterizada pela “cultura de massas”. O digital problematizou esse conceito (mas não acabou com ele, como alguns parecem pensar), de modo que já não podemos falar hoje tranquilamente de uma “sociedade de massas”. Da multiplicação de emissores, graças a plataformas como blogs ou redes sociais, a fenômenos como a “Cauda Longa”, de Chris Anderson, as tecnologias digitais perturbaram amplamente a ideia de uma cultura de massas. Agora, é fato que os temas da memória e do esquecimento terão papel fundamental nos anos vindouros. Flusser, McLuhan, Benjamin, assim como outros pensadores das mídias mais recentes (por exemplo, Wofgang Ernst ou R. L. Rutsky), tomam essas questões como eixos fundamentais de suas reflexões. Vivemos uma era da “memória total”, já que a digitalização dos suportes trouxe capacidades inauditas de armazenagem de informação. Contudo, paradoxalmente, esta também é a era do esquecimento, marcada pela volatilidade da informação (e também das relações sociais). Se para Nietzsche, o excesso de memória era um grave problema para o homem do ressentimento, hoje talvez possamos afirmar que estamos realizando um projeto nietzscheano (ainda que de forma bastarda). O excesso de informação, a rapidez com que as coisas se processam produz um esquecimento contínuo e um apagamento do passado. O que acontece, também, é que todos os “arquivos”, toda nossa memória, estão assumindo a forma do digital.

Para usar uma metáfora tipicamente barroca, a internet pode ser imaginada como um “palácio da memória”. Desde a Antiguidade, temos notícia do ensino de técnicas de memorização baseadas na ideia da criação de “palácios” mentais nos quais se “armazenariam” as informações desejadas na forma de imagens e cenas (para uma excelente história dessas técnicas de memorização e dos “palácios da memória”, ver o livro de Frances Yates, The art of memory). Hoje, a internet funciona como nosso grande repositório da memória (em formas visuais, auditivas, escritas...), mas nosso maior problema passa a ser, agora, como, em meio à gigantesca névoa de dados que nos cerca, chegar à informação que é realmente relevante para nós, filtrando todo o inessencial.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição