Edição 368 | 04 Julho 2011

A era da memória total e do esquecimento contínuo

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Márcia Junges



IHU On-Line – O que podemos compreender por imaginário da cibercultura?

Erick Felinto – Imaginário é um conceito complexo e profundo, que pode ser definido de muitas diferentes maneiras. Para simplificar, digamos que um imaginário é, ao mesmo tempo, um repositório de imagens e uma “faculdade” de criação de imagens. Em outras palavras, um imaginário é uma tradução do mundo em imagens, compostas por mitos, símbolos, representações mentais. Uma forma rápida de definir o que seria o “imaginário da cibercultura” é explicar que nossa relação com os aparatos nunca é unicamente (ou mesmo prioritariamente) racional. Símbolos e mitos atuam frequentemente como mediadores de nossa relação com as máquinas, inclusive (e talvez especialmente) com os aparatos da cibercultura, como o computador. Aliás, poucas tecnologias foram tão poderosas em gerar imaginários como o computador, que aparece ao longo de nossa história – por exemplo, na ficção científica – como entidade dotada de vida autônoma, por vezes benéfica, por vezes maléfica. A história dos autômatos, como bem ilustra o belo estudo de Philipe Breton, À l'image de l'homme, mostra nossa relação contraditória com esses seres, que em nossas ficções frequentemente se voltam contra seus criadores. O mito de Frankenstein tem aqui um papel estrutural. Mas eu diria que o imaginário da cibercultura tem raízes fortemente religiosas, e explico isso melhor numa das respostas seguintes.

IHU On-Line – Analisando especificamente as tecnologias “mobilidade”, “computação em nuvem” e “objetos inteligentes”, que tipo de imaginário tecnológico pode ser constatado em nossa sociedade?

Erick Felinto – Essa pergunta confunde algumas categorias. Em primeiro lugar, “mobilidade” não é uma tecnologia, mas sim um aspecto relevante do paradigma tecnológico dominante na contemporaneidade. O fato de que os computadores e sistemas inteligentes podem estar em toda parte, a miniaturização dos aparatos e a possibilidade de conexão constante compõem o cenário tecnológico contemporâneo e fazem do tema da mobilidade um eixo importante. Mas obviamente, a mobilidade não é uma “tecnologia”. Em segundo lugar, ainda que esses três fenômenos possam se manifestar em conjunto, não há ligação direta necessária entre eles – e, portanto, não se compreende porque deveríamos tomá-los como balizadores especiais para uma definição do “imaginário tecnológico da nossa sociedade”. Se existe alguma relação importante entre os três termos é o fato de que nosso atual paradigma tecnológico é caracterizado pela ubiquidade. Não existe mais centro, não há mais uma “visibilidade” específica do tecnológico (que muitas vezes opera por trás de caixas pretas ou fora do alcance de nossos olhos). A noção de “internet das coisas” me parece, nesse sentido, extremamente reveladora. Imaginemos um mundo de máquinas diminutas operando por toda parte, todas conectadas entre si e desfrutando de uma espécie de “inteligência compartilhada”. Esse é um futuro bastante provável que nos aguarda e que mostra a profunda relação entre os aspectos materiais e imateriais da cultura tecnológica contemporânea – algo que nem sempre se percebe com a necessária profundidade.

IHU On-Line – O que é a religião das máquinas a que se refere em seu livro? Como essas máquinas ajudam a compor o imaginário da cibercultura?

Erick Felinto – A religião das máquinas é um título fantasioso, inspirado, por sua vez, num livro bastante fantasioso e estranho, La réligion des géants et la civilisation des insectes, de Denis Saurat. Ele pode ser lido tanto como uma imagem ficcional (imaginemos que as máquinas inteligentes desenvolvam uma cultura e criem sua própria religião...) quanto como indicador de um aspecto essencial do imaginário tecnológico contemporâneo: sua relação com a religião. Como já apontaram diversos autores, a cibercultura é pródiga em produzir mitos de cunho espiritual, como a ideia da internet como “Nova Jerusalém Celestial” ou do internauta como “anjo eletrônico”. Os vínculos da tecnologia com a religiosidade são bastante antigos, como demonstra o estudo de David Noble, The religion of technlogy. Desde pelo menos a Idade Média, ela é entendida no âmbito de um projeto de transcendência da condição humana, de modo a nos aproximar de Deus ou mesmo suplantá-lo. Um dos aspectos mais interessantes do mito bíblico da Torre de Babel (mas muito pouco estudado) é sua dimensão tecnológica. Os homens desenvolvem uma nova técnica para construir a torre e se acercar de Deus no céu. Mas com isso ameaçam o domínio da autoridade divina e são afligidos com a diferenciação linguística. Esse mito tem ressonâncias muito relevantes nos dias de hoje. Se prestarmos um pouco mais de atenção nas grandes fábulas contemporâneas da cibercultura, em suas representações ficcionais, vamos perceber claramente uma teia de valores ou noções religiosas ligadas ao mundo tecnológico. O filme Matrix, que analiso no primeiro capítulo do livro, é um excelente exemplo disso.

IHU On-Line – O que explica a postura de idolatria, euforia e inclusive de ingenuidade de algumas pessoas em relação às tecnologias como a internet, por exemplo?

Erick Felinto – Ela se explica, pelo menos em parte, por nossa colossal ignorância histórica. O discurso da “revolução tecnológica” se funda numa mitologia da transcendência que surge quando esquecemos o passado e deixamos de relativizar o “novo”. De fato, acho que o problema de muitos estudos sobre a cultura tecnológica, hoje, é sua extrema limitação de escopo – tanto em termos temporais (a assustadora ignorância de muitos pesquisadores em relação à história da tecnologia e da cultura) quanto de foco (o olhar é quase sempre microscópico, incapaz de enxergar os problemas numa dimensão panorâmica). A função de pensadores do “risco” – ou “proféticos”, como os define um amigo meu – é buscar esse olhar panorâmico que muitas vezes nos falta. Esses pensadores (Flusser é um bom exemplo) assumem muitos riscos e podem certamente cometer muitos erros. Contudo, até mesmo seus erros são frequentemente interessantes e reveladores. Bruno Latour, um pensador a quem muito admiro, escreveu com Antoine Hennion um texto sobre Walter Benjamin no qual critica radicalmente o famoso ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. O texto é sintomaticamente intitulado How to make mistakes at so many things at once – and become famous for this. Mesmo concordando com algumas das reprimendas dos autores a certas teses de Benjamin no ensaio, considero o artigo de Latour equivocado. Se Benjamin cometeu muitos erros – e ficou famoso por causa deles –, foi porque assumiu grandes riscos em seu pensar. E esses riscos e seus equívocos abriram o caminho para vários pensadores e teóricos depois dele. Como diz a célebre sentença de Bernardo de Chartres, “somos anões nos ombros de gigantes, mas por isso enxergamos melhor e mais longe”.

No Brasil, a pesquisa e o texto acadêmico no campo da comunicação vêm assumindo uma feição tecnicista e microscópica que acaba nos limitando a tabular números, analisar questionários e quantificar dados. Tudo isso é muito importante, mas o que marca a excelência num domínio do saber é o surgimento desse pensamento do risco, capaz de lançar sobre a realidade olhares mais vastos e mais fundados numa sinfonia de diferentes saberes articulados. Enquanto por aqui ficamos exaustivamente discutindo os limites legítimos e os fundamentos epistemológicos do “campo da comunicação”, em outros cenários acadêmicos estão se descortinando fascinantes novos temas e objetos de pesquisa ligados às mídias e à cultura das mídias. Para mim, um dos campos de pesquisa mais intrigantes que se descortinou nos últimos anos (com origem na Alemanha) é a chamada “arqueologia da mídia” (Archäologie der Medien). Creio que ela representa um antídoto importante contra a amnésia histórica que caracteriza boa parte da pesquisa sobre os meios hoje, mas pouquíssima gente no Brasil sabe sequer de sua existência.

IHU On-Line – O que pensa sobre a crítica de alguns teóricos que consideram que as redes sociais promovem uma ilusão de contato?

Erick Felinto – Não creio que se trate de ilusão. Aliás, por que razão devemos dizer que as relações “face a face” são “autênicas” e as mediadas tecnologicamente (nas redes sociais, por exemplo) são “ilusórias”? Isso é de uma ingenuidade absurda. O ser humano é uma criatura simbólica. Suas relações com o mundo são, desde sempre, “mediadas”. Minhas relações sociais nas redes podem ser tão ou mais intensas (ou superficiais) quanto minhas conexões “presenciais”. E meus contatos e relações fundamentais no dia a dia se dão tanto com seres humanos quanto com os aparatos e objetos que me cercam. Está mais do que na hora de revermos o humanismo rasteiro e o antropocentrismo ingênuo que operam, muitas vezes, no fundo das nossas interpretações do mundo. Ser humano é ser profundamente artificial e ter, desde sempre, uma relação visceral com a tecnologia.

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