Edição 347 | 18 Outubro 2010

Ricci e a integração entre fé e ciência

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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

Oposição entre os dois campos veio apenas com o Iluminismo, afirma Gianni Criveller, e Ricci “não tem nada a ver com isso”. O grande manifesto do projeto desse jesuíta é a amizade, forma pacífica escolhida para entrar na China.

Nenhum estrangeiro podia viver na China, ser sepultado lá ou aprender chinês. Ricci superou todos esses tabus. Apesar de nunca ter se encontrado pessoalmente com o imperador Wanli, foi aceito e acolhido naquele país. Para Ricci, a mensagem religiosa e a ciência europeias compunham um todo integrado: “a astronomia fazia parte da matemática, a matemática fazia parte da filosofia, e a filosofia fazia parte da teologia, que é a ciência de Deus. Assim, não havia divisão ou distância ou oposição entre a ciência e a fé; com efeito, ambas eram vistas como parte da mesma formação e vindas de Deus”. A afirmação é do Pe. Gianni Criveller, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, Ricci não pode ser considerado apenas como agente de intercâmbio cultural e científico. “Ele foi bem mais do que isso”. Foi o responsável pela disseminação de disciplinas importantes na China, como a matemática, em especial a tradução dos livros de Euclides para o chinês, a astronomia e a cartografia.  Os mapas de Ricci, por exemplo, trouxeram noções novas aos chineses, ao retratar as Américas.

Criveller explica que, ocasionalmente, Ricci é aclamado como uma espécie de precursor do diálogo inter-religioso: “Ricci de fato teve conversas e disputas com monges budistas proeminentes, mas ele criticava severamente e se opunha ao budismo, ao taoísmo e às religiões populares”. Para os chineses, era difícil aceitar a doutrina da encarnação e do sofrimento de Jesus, pois isso soava como uma humilhação do Senhor do Céu. Mas o grande traço fundamental do legado desse missionário jesuíta é a amizade: “Ricci era um homem capaz de aprender, aceitar e viver num ambiente estrangeiro como amigo, e não como inimigo. Ele estava aberto para a ‘diversidade do outro, diferente de mim’, sem medo nem agressividade”. E completa: “Se uma só palavra pudesse resumir a abordagem de Ricci para com a China, essa palavra seria ‘amizade’, um valor humanístico que Ricci apreciava e estimava muito. (...) A amizade pode, portanto, ser considerada um manifesto do projeto de Ricci: entrar na China pela porta pacífica da amizade”.

Gianni Criveller é missionário em Hong Kong, do Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras, congregação religiosa fundada na Itália. Doutor em História da Igreja na China, é um reconhecido pesquisador sobre Matteo Ricci.

Confira e entrevista.

IHU On-Line - O senhor afirma que Ricci e Aleni  nunca se encontraram, mas suas vidas estavam estreitamente unidas. Quais são os aspectos que os aproximam?

Gianni Criveller - Provavelmente Aleni foi o missionário que melhor corporificou o legado apostólico de Ricci: a adoção do confucionismo como introdução ao cristianismo; o apostolado científico como parte integrante da evangelização; o método da acomodação; o apostolado através de livros. Além disso, Aleni escreveu a primeira Vida de Matteo Ricci redigida em chinês (1630). Aleni considerava Ricci seu mestre e modelo.

IHU On-Line - Qual é a importância de Ricci na disseminação do cristianismo no Oriente?

Gianni Criveller - Matteo Ricci levou o cristianismo para a China. Antes dele não havia cristãos na China; quando de sua morte, havia cinco residências de jesuítas e seis comunidades cristãs na China, nas principais cidades, todas elas (com exceção da de Xangai) fundadas pelo próprio Ricci. Esta é uma realização duradoura e notável, obtida enfrentando dificuldades de toda espécie: nenhum estrangeiro podia viver na China, nenhum estrangeiro podia aprender chinês, nenhum estrangeiro podia ser sepultado na China. Ricci superou todos esses tabus.

IHU On-Line - Quais são as peculiaridades de sua espiritualidade nesse país?

Gianni Criveller - É claro que o cristianismo é diferente de outras religiões chinesas porque se baseia na mensagem de Jesus Cristo, que os cristãos acreditam ser a encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Todos esses conceitos eram extremamente estranhos para os chineses e também difíceis de aceitar. A doutrina da encarnação e a do sofrimento de Jesus eram as mais difíceis de aceitar para os chineses porque eles as consideravam uma humilhação do Senhor do Céu. Para muitos chineses, imbuídos do neoconfucionismo imanente, a transcendência e pessoalidade de Deus (o Deus cristão é um Deus pessoal) também eram extremamente difíceis de aceitar. Outra dificuldade era o ensino moral: os missionários não permitiam aos cristãos chineses ter mais de uma esposa, numa época em que ter várias concubinas era uma prática comum. Muitos não entravam na igreja porque não conseguiam superar essa dificuldade.

IHU On-Line - Quais são os principais legados de Ricci à ciência oriental?

Gianni Criveller - Ricci introduziu na China muitas noções científicas estrangeiras, da Europa e do Renascimento, provenientes de disciplinas como a matemática, astronomia, cálculo do calendário, geografia, cartografia, medicina, física, arquitetura, linguística, fonética, filosofia, moral, belas artes, música e, naturalmente, teologia. Muitas pessoas veem Ricci apenas como um agente de intercâmbio cultural e científico. Entretanto, ele foi muito mais do que isso. Dentre as disciplinas mencionadas, são particularmente importantes a matemática, em especial a tradução dos livros de Euclides para o chinês, a astronomia e a cartografia (os mapas famosos de Ricci introduziram muitas noções estranhas aos chineses, como as Américas, por exemplo).

IHU On-Line - Em que ciências esse missionário jesuíta se destacou e como aconteceu o debate junto à corte imperial chinesa?

Gianni Criveller - No tocante às ciências, Ricci se destacou na China especialmente por causa de suas noções de matemática e cartografia. De fato, Ricci foi recebido na corte, mas nunca se encontrou pessoalmente com o imperador (o imperador Wanli só costumava se encontrar com alguns poucos eunucos, e com mais ninguém). Houve contatos entre o imperador e Ricci, mas por meio de terceiros. O imperador nunca respondeu aos pedidos que lhe foram enviados por Ricci; na verdade, o imperador Wanli nunca respondeu a quaisquer pedidos. Entretanto, é certo que Wanli tinha conhecimento de Ricci e de bom grado lhe permitiu ficar em Pequim, receber apoio do Estado e ser sepultado solenemente em solo imperial.

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