Edição 347 | 18 Outubro 2010

Ricci e a integração entre fé e ciência

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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

 

IHU On-Line - Como analisa o debate fé/ciência promovido por Ricci?

Gianni Criveller - Ricci considerava a mensagem religiosa e a ciência europeias um todo integrado: a astronomia fazia parte da matemática, a matemática fazia parte da filosofia, e a filosofia fazia parte da teologia, que é a ciência de Deus. Assim, não havia divisão ou distância ou oposição entre a ciência e a fé; com efeito, ambas eram vistas como parte da mesma formação e vindas de Deus (veja o famoso dito de Galileu : “O livro do Universo, que fica continuamente aberto a nosso olhar, não pode ser entendido a menos que se aprenda primeiro a compreender a linguagem e a ler os caracteres em que está escrito. Ele está escrito na linguagem da matemática”). Estudar ciência era estudar a Criação, isto é, a obra de Deus, de modo que estudar a ciência era conhecer a Deus. Na China, Ricci chamou seu ensino de “estudos celestiais” (tianxue); este termo tem um duplo sentido: ciência do céu físico (o firmamento, isto é, astronomia) e ciência do céu metafísico (Deus, isto é, a doutrina cristã). A separação ou até a oposição entre fé e ciência veio um século mais tarde, com o Iluminismo. Ricci não tem nada a ver com isso.

IHU On-Line - E quais são os impactos que deixou para o diálogo inter-religoso?

Gianni Criveller - Ocasionalmente, Ricci é aclamado como uma espécie de precursor do diálogo inter-religioso. Ricci, de fato, teve conversas e disputas com monges budistas proeminentes, mas ele criticava severamente e se opunha ao budismo, ao taoísmo e às religiões populares. Depois de passar dez anos na China, em 1595, Ricci abandonou seu hábito semelhante ao dos budistas e passou a usar o manto de seda dos homens de letras confucionistas. A partir de então, a melhor forma de resumir a atitude de Ricci para com a religião chinesa é a seguinte sentença de quatro caracteres: bu ru yi fo, “aperfeiçoe o confucionismo e substitua o budismo”. Ricci abriu um diálogo com o confucionismo, mas foi muito polêmico contra o budismo e incluiu argumentos antibudistas em seus livros.

IHU On-Line - Fazer-se chinês entre os chineses era um dos lemas de Ricci. Nesse sentido, ele foi um dos precursores da globalização? Por quê?

Gianni Criveller - A rigor, esse lema não era de Ricci, mas de seu companheiro Michele Ruggieri. Entretanto, Ricci escreveu frequentemente que se “adaptava” de todas as formas ao estilo de vida chinês. Ricci era um homem capaz de aprender, aceitar e viver num ambiente estrangeiro como amigo, e não como inimigo. Ele estava aberto para a “diversidade do outro, diferente de mim”, sem medo nem agressividade. Ele foi considerado por Joseph Needham  um dos mais notáveis homens da história da humanidade porque colocou em contato duas das mais célebres civilizações da história da humanidade: a China da dinastia Ming e o Renascimento europeu. Sua lição e seu legado são muito importantes até mesmo na atualidade.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Gianni Criveller - Gostaria de dizer algo a respeito da amizade. Se uma só palavra pudesse resumir a abordagem de Ricci para com a China, essa palavra seria “amizade”, um valor humanístico que Ricci apreciava e estimava muito, junto com um amplo círculo de amigos, tanto europeus quanto chineses. Ele sempre se manteve em contato com eles, como manifesta sua extensa correspondência. De acordo com o sinólogo jesuíta contemporâneo Edward Malatesta , Ricci foi até um mártir da amizade. Sua morte precoce, em 11 de maio de 1611, na idade de 57 anos, deveu-se a um excesso de trabalho ao receber amigos e hóspedes e retribuir suas visitas. A amizade, Jiaoyou lun, foi, com exceção do mapa-múndi, o primeiro livro que Ricci escreveu em chinês, tendo sido publicado em 1595. Os amigos e conhecidos chineses de Ricci obviamente valorizavam seu amor ao aprendizado, seu desejo da verdade e estima da amizade, valores que também se encontravam em sua própria cultura antiga. A amizade é uma das cinco relações cardeais no pensamento social confucionista, uma relação baseada na participação voluntária, não no status comum, na mesma profissão ou no parentesco. Tendo recebido uma formação renascentista humanística, Ricci se sentiu muito à vontade nesse espírito de revisita aos clássicos e deve ter se sentido à vontade num mundo tão distante e, ainda assim, aparentemente tão próximo dele.
Ricci e seus amigos chineses viam na amizade um precioso ponto de encontro comum entre dois mundos que compartilhavam uma abordagem humanística da vida. A amizade pode, portanto, ser considerada um manifesto do projeto de Ricci: entrar na China pela porta pacífica da amizade. O livreto bem-sucedido, compilado em Nanchang, permitiu que Ricci abrisse essa porta. De acordo com os relatos dos jesuítas, as últimas palavras de Ricci antes de sua morte lembraram a imagem da porta: “Deixo a vocês uma porta aberta para grandes méritos, mas também para muito perigo e trabalho árduo.” A amizade foi a porta aberta por Ricci, embora os missionários depois dele nem sempre tenham conseguido manter essa porta aberta.

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