Edição 345 | 27 Setembro 2010

Cerca de 95% das terras pantaneiras são privadas

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Patrícia Fachin

O biólogo Walfrido Tomas questiona a informação de que o Pantanal é um dos ecossistemas mais preservados do Brasil. Segundo ele, mapas são feitos através de fotografias instantâneas da paisagem, as quais não captam as alterações em processos ecológicos-chave

“Em 2008, durante uma expedição pelo Pantanal norte, fiquei estarrecido ao verificar a intensidade do assoreamento do Rio Paraguai, o principal Rio do Pantanal”, conta Walfrido Tomas, pesquisador da Embrapa, à IHU On-Line, por e-mail. Há 25 anos estudando o ecossistema, ele aponta o assoreamento dos rios pantaneiros como um dos aspectos mais negativos da região. O assoreamento é resultado do mau uso do solo nos planaltos adjacentes à planície e, de acordo com o pesquisador, tal cenário é prejudicial para o macroecossistema. “A impressão é de que o Pantanal está passando por uma fase de ‘taquarização’, uma alusão ao maior desastre ambiental e econômico já visto no Pantanal - o Rio Taquari foi sendo assoreado desde a década de 1970, e continua até hoje. O resultado foi que este rio ficou entupido de areia, rompeu suas margens e alagou uma área imensa da planície onde as cheias eram sazonais, passando a ficar permanentemente alagada”.

O desmatamento da vegetação pantaneira também é um problema ambiental que começa a chamar a atenção dos pesquisadores. Para Tomas, o preocupante, por enquanto, não são as cifras que indicam o aumento do desmatamento, mas, “o fato de que o desmatamento é acumulativo. Também é preciso pensar que estamos falando de uma tendência, o que é preocupante”.

Walfrido Tomas é graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS, especialista em Biologia de Ambientes Inundáveis pela Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT. Atualmente é doutorando em Gestão de Biodiversidade na University of Kent, na Inglaterra.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O senhor estuda o Pantanal desde meados da década de 1980? Quais foram as principais transformações ambientais ocorridas na região nesse período?

Walfrido Tomas -
Comecei a trabalhar no Pantanal em 1985, inicialmente em Poconé-MT . No final de 1986, vim para o sul, trabalhar junto à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa em um projeto de manejo de jacarés. Neste período, o Pantanal atravessava uma sequência de anos de grandes cheias, sendo que em 1988 foi registrada a maior cheia do século passado. De lá para cá, o Pantanal entrou em um período de cheias menores, principalmente a partir de meados da década de 1990. Neste sentido, acho que é um privilégio conhecer duas fases distintas do Pantanal, já que a intensidade das cheias determina muitas coisas em temos de vegetação, fauna etc. Pelo lado negativo, tenho visto um aumento no desmatamento, mas esta é uma percepção e não uma quantificação. Como desde 1991 realizamos levantamentos aéreos em todo o Pantanal, e em algumas regiões mais restritas também, é evidente que muita coisa já foi alterada via desmatamento. Outro aspecto negativo também é o aumento do assoreamento dos rios, de quase todos os rios do Pantanal. O assoreamento é resultado do uso do solo nas partes altas, nos planaltos adjacentes à planície, onde nascem todos os rios que convergem para o Pantanal. Em 2008, durante uma expedição pelo Pantanal norte, fiquei estarrecido ao verificar a intensidade do assoreamento do rio Paraguai, o principal rio do Pantanal. Isso é um sinal de que as coisas não estão boas para o macroecossistema, por assim dizer, do Pantanal. A impressão é de que o Pantanal está passando por uma fase de “taquarização”, uma alusão ao maior desastre ambiental e econômico já visto no Pantanal - o rio Taquari foi sendo assoreado desde a década de 1970, e continua até hoje. O resultado foi que este rio ficou entupido de areia, rompeu suas margens e alagou uma área imensa da planície onde as cheias eram sazonais, passando a ficar permanentemente alagada. Fazendas foram literalmente afogadas, a fauna e a flora foram substituídas por espécies mais adaptadas a esta situação, a navegação e a produção pesqueira foram prejudicadas, e a solução pode ser tão cara a ponto de se tornar inviável, principalmente se a interrupção da erosão nos planaltos não for garantida. Em que pesem os dados divulgados sobre desmatamento, que indicam que o Pantanal está entre os “biomas” mais preservados do Brasil, é preciso lembrar que os mapas são feitos através de “fotografias” instantâneas da paisagem (imagem de satélite), que não captam as alterações em processos ecológicos-chave, como as inundações, nem desastres contínuos, como o assoreamento, a poluição, entre outros.


IHU On-Line - É possível traçar um panorama do Pantanal: quais são as ecorregiões pantaneiras mais preservadas e, por outro lado, as mais prejudicadas?

Walfrido Tomas -
De um modo geral, pensando apenas em alterações da paisagem via desmatamento, as bordas de todas as regiões do Pantanal vêm passando por alterações. Entretanto, isso é mais evidente nas regiões de Cáceres, dos rios Piquiri, Taquari, Negro, Aquidauana e Miranda, mas também na única região de Chaco  no Brasil, próximo à cidade de Porto Murtinho. Nestas áreas, o desmatamento já atingiu proporções alarmantes. Mais para o interior, as áreas desmatadas vão diminuindo, mas os dados divulgados recentemente indicam um avanço deste tipo de ação. Aparentemente, áreas mais baixas, inundáveis e mais distantes de estradas permanecem em boa parte intocadas no que se refere à composição da paisagem original.


IHU On-Line - Entre 2002 e 2008, segundo relatório do Ministério do Meio Ambiente, o desmatamento (supressão vegetal) no Pantanal foi de 2,82%? Quais são as causas do desmatamento no Pantanal e, pensando na preservação ambiental, o que esse valor representa e significa?

Walfrido Tomas –
Alguns aspectos precisam ser considerados. Não me preocupa tanto a cifra de aumento, mas sim o fato de que o desmatamento é acumulativo. Também é preciso pensar que estamos falando de uma tendência, o que é preocupante. Uma estimativa num dado momento no tempo é como se fosse uma fotografia, e o exame continuado nos mostra um processo em andamento. Este é o ponto que não podemos perder de vista. As causas de desmatamento dentro do Pantanal são menos graves, até este momento, em comparação com o que aconteceu e com o que tem acontecido nos planaltos adjacentes, já que lá se originam as toneladas de sedimentos e os poluentes que afetam o macroecossitema inteiro, através de alterações no pulso de inundações, na qualidade e quantidade de água, e, consequentemente, na biota e na economia pantaneiras.

Dentro da planície, os desmatamentos são realizados com uma única finalidade: implantação de pastagens cultivadas para intensificar a produtividade pecuária. Aqui está o ponto central do problema. Aumentar a produtividade é buscar maior rentabilidade e competitividade das fazendas pantaneiras em relação ao mercado de produtos pecuários e, neste caso, de carne. O que precisamos urgentemente é de mecanismos e políticas que visem valorizar a produção pecuária sem que a intensificação da produção seja necessária, porque ela causa impactos ambientais. Para exemplificar isso, a produção pecuária está no Pantanal há mais de 200 anos, e não há notícia de nenhuma espécie extinta ou que chegou à beira da extinção em função desta atividade. Mesmo as espécies que entram em conflito direto com a atividade, como as onças, continuam abundantes no Pantanal, em que pesem as caçadas punitivas que sempre foram realizadas. Espécies que chegaram a ser consideras comercialmente extintas no Pantanal, como a ariranha (Pteronura brasiliensis) foram vítimas do comércio internacional de peles, já que até o final da década de 1960 a caça era permitida no Brasil. A pecuária tradicional do Pantanal, na verdade, pouco alterou a paisagem, o que resultou no Pantanal como conhecemos hoje. Mas a descapitalização destas propriedades, tocadas como patrimônio familiar e não como empresas, tem gerado sua subdivisão em função de heranças, o que diminuí seu tamanho e leva à necessidade de intensificação da produção, e assim, em alguns casos, ao desmatamento. Além disso, as terras pantaneiras estão aos poucos mudando de mãos, sendo vendidas por preços irrisórios para pessoas de fora da região, que por não ter relação com o funcionamento do ecossitema, nem a cultura que se desenvolveu na região para a produção pecuária, acabam por implantar formas intensivas de produção. E isso implica em desmatamento em larga escala dentro das fazendas.


IHU On-Line - Quais os prós e contras do desenvolvimento da pecuária para a região pantaneira?

Walfrido Tomas -
Bom, é preciso lembrar que o Pantanal foi ocupado, ou colonizado, em função de uma única característica: sua aptidão pecuária, dado que aqui sempre houve grandes extensões de campos nativos. A agricultura nunca se desenvolveu direito, e hoje ela ocorre em uma parte ínfima da planície, notadamente na região de Miranda-MS. A pecuária se desenvolveu na região porque, ao longo das décadas, as pessoas foram conhecendo como funcionavam as coisas, em especial as cheias e secas, e a distribuição de pastagens ao longo do ano. Daí surgiu o que chamamos de pecuária tradicional. Neste sentido, as gerações de pantaneiros têm uma profunda relação com o ambiente, o entendem, e uma cultura bem específica surgiu desta atividade, a qual é uma produção de cria, não de engorda de bois. Por outro lado, a intensificação da produção, via desmatamento e cultivo de pastagens com gramíneas exóticas, tenta implantar um sistema de produção mais semelhante ao de regiões produtoras de carne. Este tipo de manejo do ecossistema remove camponeses e simplifica a paisagem, antes bastante heterogênea e complexa. Todos sabemos que paisagens diversificadas abrigam maior diversidade biológica. Portanto, além da erosão biológica, pelo menos localmente, podemos dizer que há uma erosão cultural, já que o peão tradicional do Pantanal precisa se adaptar a outro tipo de manejo, a uma paisagem que não tem as referências naturais, e às exigências de aptidões que estão fora de sua experiência de vida.

Assim, o que deveria ser buscado é a valorização dos produtos da pecuária tradicional ou de outras formas de manejo que não impactam a paisagem, nem os processos ecológicos básicos do Pantanal, como as cheias periódicas. Com isso, será em muito diminuída a necessidade de intensificação da produção, bastando algumas melhorias no sistema tradicional, uma política de remuneração a quem preserva a diversidade biológica.


Sim, o desmatamento causa impactos profundos na fauna e na flora. Como a paisagem é composta de flores, cerrados, campos inundáveis e não inundáveis, além de sistemas aquáticos permanentes ou temporários, alterações neste mosaico de habitats levam à simplificação da paisagem. Com isso, espécies mais dependentes de um ou outro componente da paisagem deixam de existir localmente, e são substituídas por outras espécies mais adaptadas à nova situação, geralmente espécies que conseguem sobreviver em áreas de campos (as pastagens) ou savanas. Se a tendência persistir ao logo dos anos, a perda de espécies tende a ocorrer em escala regional.

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