Edição 341 | 30 Agosto 2010

Os bispos nordestinos e o Vaticano II na Igreja do Brasil

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Patricia Fachin e Márcia Junges

Para Raimundo Caramuru, Dom José Vicente Távora fez parte do grupo de bispos nordestinos que empreenderam um esforço de renovação da Igreja

“A impressão que conservo dele é de alguém comprometido com a evangelização das classes trabalhadoras urbanas, mas também rurais, bem como com a promoção humana do trabalhador brasileiro”. É assim que Raimundo Caramuru lembra-se de Dom José Vicente Távora, arcebispo de Aracaju. Junto com Dom Hélder Câmara, ele “fazia parte do grupo de bispos brasileiros que deram início a um empreendimento renovador da Igreja, que foi precursor do Concílio Vaticano II”. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, Caramuru conta que visitou, nos últimos 40 anos, diversos países do mundo e ficou com a impressão de que “a Igreja no Brasil foi aquela que com maior rapidez, amplitude e profundidade implantou as grandes diretrizes conciliares”. Nesse contexto, destaca, “Dom Vicente Távora foi dentro do episcopado brasileiro um dos protagonistas da riqueza que o Concílio Vaticano II representou para a Igreja, sobretudo no posicionamento que ela amadurecidamente tomou frente aos governos militares”.

Raimundo Caramuru Barros é mestre em economia pelo Boston College, EUA. Foi consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID e atuou como especialista nas áreas de transportes, trânsito e meio ambiente, dedicando-se em seguida à assessoria de diversas organizações não-governamentais. É autor de Desenvolvimento da Amazônia – como construir uma civilização da vida e a serviço dos seres vivos nessa região (Editora Paulus, 2009). Publicou livros e artigos sobre a Igreja no Brasil, entre eles, Dom Helder: Artesão da Paz, uma publicação do Senado Federal, volume 120.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor conviveu com Dom José Vicente Távora? Como o define e o que destaca dessa convivência?

Raimundo Caramuru - Meu primeiro contato com Dom Vicente Távora foi apenas fortuito ou providencial. Aconteceu em 1943 na cidade de Mossoró, situado ao noroeste potiguar. Dom Jaime de Barros Câmara havia sido o primeiro bispo de Mossoró no período de 1936 a 1941. Ao mesmo tempo em que foi bispo, Dom Jaime era também o reitor do seminário diocesano, onde eu então residia. Nessas circunstâncias eu era apenas um seminarista menor. De Mossoró Dom Jaime fora transferido para a arquidiocese de Belém, no Pará, onde permanecera por menos de dois anos, quando foi novamente transferido para a arquidiocese do Rio de Janeiro, sucedendo Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, que havia falecido em 1942. Segundo comentários que escutei na época o candidato proposto pela Santa Sé era o arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar. Essa candidatura não vingou por causa de problemas entre Dom José Gaspar e o Estado Novo de Getúlio Vargas, o que explica a escolha de Dom Jaime, apesar de estar a muito pouco tempo na arquidiocese de Belém. Na sua viagem de Belém ao Rio de Janeiro, Dom Jaime fez questão de passar por Mossoró que havia sido sua primeira diocese. Nessas circunstâncias, o Pe. Távora veio do Rio a Mossoró para acertar com Dom Jaime os detalhes de sua posse na arquidiocese do Rio de Janeiro e, na oportunidade, hospedou-se no Seminário de Mossoró. A única lembrança que me ficou foi sua condição de sacerdote na arquidiocese do Rio de Janeiro.
Só vim a reencontrá-lo mais tarde, em 1948, em Porto Alegre. Neste momento cursava filosofia no Seminário Central de São Leopoldo. Neste ano, Porto Alegre sediava um Congresso Eucarístico Nacional, o primeiro a se realizar após o término da II Guerra Mundial. Na semana que antecedeu ao Congresso houve um Encontro Nacional de Ação Católica, onde se discutiu bastante os dois modelos de Ação Católica: o modelo italiano com seus quatro ramos e o modelo da ação católica especializada. Neste momento creio que Dom Távora era assistente da JOC.
Onze anos mais tarde voltei a encontrá-lo com mais frequência, quando vim residir no Rio de Janeiro como assistente nacional da Juventude Agrária Católica - JAC. Sabia apenas que ele estava dedicado às iniciativas da Igreja voltadas para as classes trabalhadoras, juntamente com Dom Hélder, que era o assistente Geral da Ação Católica Brasileira, que desde 1950
adotara o modelo de especialização por meio social. Por causa da relevância do assunto para o meio rural, acompanhei de perto o esforço dele para a criação do Movimento de Educação de Base - MEB em 1961. Em uma palavra, a impressão que conservo dele é de alguém comprometido com a evangelização das classes trabalhadoras urbanas, mas também rurais, bem como com a promoção humana do trabalhador brasileiro.
Olhando de longe reconheço que ele fez parte do grupo de bispos, principalmente nordestinos, que, de certo modo, empreenderam um esforço de renovação da Igreja, precursora do Vaticano II, quando este Concílio formalizou e estendeu a toda a Igreja Católica esta renovação em todas as suas dimensões.

IHU On-Line - Qual a relação de Dom José Vicente Távora com o período político getulista?

Raimundo Caramuru - Como neste período encontrava-me no seminário, seja no Nordeste, seja no Rio Grande do Sul, nada conheço a este respeito. Nos seminários a única fonte a que se tinha acesso com relação a temas políticos eram os periódicos católicos que se ocupavam do assunto como “Vozes de Petrópolis”, a “Ordem” etc.

IHU On-Line - Qual foi a importância da nomeação de Dom José Vicente Távora enquanto arcebispo de Aracaju para o Nordeste?

Raimundo Caramuru - Mesmo quando bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Távora sempre se alinhou com os bispos nordestinos que lideravam a renovação da Igreja nesta Macrorregião. Seu trabalho em Aracaju, porém, não alcançou a dimensão e a repercussão do Movimento de Natal, liderado por Dom Eugênio Sales. Como pernambucano, devia conhecer o problema das plantações de cana na Zona da Mata: um desafio multissecular que não tem condição de ser resolvido em uma geração. Dom Eugênio, no Rio Grande do Norte, quase não teve necessidade de enfrentar este desafio. A própria SUDENE dedicou-se mais ao Agreste e ao Semiárido, pois compreendeu que o desafio da Zona da Mata só tem solução no longuíssimo prazo. O fato de Aracaju ter-se tornado uma arquidiocese conferiu a Dom Távora maior ascendência no seio do episcopado.
Caso estivesse em sedes arquiepiscopais como Salvador ou Recife, sua projeção seria um pouco maior. Por Salvador passaram dois cardeais da estatura de Dom Eugênio Sales e Dom Lucas Moreira Neves. Pouco conseguiram na sua curta permanência nesta Sé primacial do Brasil. Embora em dimensões menores, pode-se comentar o mesmo com respeito a Aracaju. Tenho a impressão que Dom Távora haja passado por um verdadeiro calvário como arcebispo desta arquidiocese. Neste particular, pode-se evocar o testemunho de Dom Sebastião Leme durante os poucos anos que esteve à frente da arquidiocese de Olinda-Recife na década de 1910: tinha consciência do problema da Zona da Mata, mas sentia-se impotente para buscar uma solução mesmo a médio prazo.

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