Edição 300 | 13 Julho 2009

Dossiê especial Caritas in veritate

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin | Tradução de Benno Dischinger

 

A caridade na verdade: primeiras impressões

Autor de Uma fé exigente, uma política realista (Rio de Janeiro: Educam, 2008), o sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza analisou, a pedido da IHU On-Line, a encíclica Caritas in veritate, publicada por Bento XVI, na terça-feira, 07-07-2009. Para o autor, o texto é longo, repetitivo, “com a ânsia de tratar de tudo e com afirmações muitas vezes ditas de maneira absoluta”. Além disso, acrescenta, a encíclica “entra em contradição com a dimensão histórica referida anteriormente, e em casos como os da reprodução, apenas repete o tradicional”. A justificação para tal modelo, assegura Gómez de Souza, “tem muito a ver com a maneira de pensar do atual papa, que tem horror aos riscos do relativismo e fica num plano teórico e doutoral, muito mais do que pastoral”. 

Luiz Alberto Gómez de Souza é graduado em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), pós-graduado em Ciência Política, pela Facultad Latino-Americana de Ciencias Sociales (Flacso), de Santiago do Chile, e doutor em Sociologia, pela Universidade de Paris Sorbonne Nouvelle. Atualmente, é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes. De sua vasta obra bibliográfica, destacamos A JUC: os estudantes católicos e a política (Petrópolis: Vozes, 1984).

Confira o artigo a seguir.

Esta encíclica de Bento XVI quer ligar-se diretamente à outra encíclica de Paulo VI, Populorum Progressio, de 1967, que considera a Rerum Novarum da época contemporânea e toda a primeira parte é dedicada a ela. Porém, não quer apenas repetir – ainda que o faça de maneira longa demais. Fala de “um único ensinamento coerente e simultaneamente novo” (12). Vê uma dimensão histórica no “patrimônio” da doutrina social da Igreja, para enfrentar novos problemas que não existiam ainda tão nítidos na fase imediatamente posterior ao Concílio Vaticano II. Nisso parece seguir a idéia do teólogo inglês J.H. Newman,  que o papa estima particularmente, sobre o desenvolvimento da doutrina, que se refaz no tempo e vai mudando. Assim há “coisas novas”: novo contexto econômico comercial e financeiro internacional, em grande crise em nossos dias (24), novos problemas com os fluxos migratórios (21,62), mobilidade laboral associada à desregulamentação (25), aspectos novos do desemprego (25), o problema dos recursos energéticos não renováveis (49), a interação das culturas com a globalização (26). Indica como os estados-nação são ultrapassados por essa globalização. Na linha do que João XXIII  indicou na Pacem in Terris,  acena para uma autoridade política mundial no futuro (67), na interdependência mundial (33), mas vê os riscos de novas formas de colonialismo e dependência (33) e o perigo de um poder universal monocrático, sem as dimensões da subsidiariedade, da descentralização e da democracia (57). Refere-se a um quadro de desenvolvimento policêntrico, onde pode crescer a riqueza, mas aumentam as desigualdades (22).

Um documento contraditório

É um longo documento, muitas vezes repetitivo e exageradamente referido a outros atos do magistério dos últimos papas, de leitura necessariamente lenta, com a ânsia de tratar de tudo e com afirmações muitas vezes ditas de maneira absoluta. Entra em contradição com a dimensão histórica referida anteriormente, e em casos como os da reprodução, apenas repete o tradicional.  Talvez isso se deva à inversão que propõe entre caridade e verdade. São Paulo, na Epístola aos Efésios, fala de “verdade na caridade” (Ef. 4,15): seria na relação entre as pessoas que iria se desocultando a verdade. Bento XVI vê a relação em sentido contrário, a caridade brotando de uma verdade que lhe é anterior e de certa maneira fixa. Isso vai dificultar o diálogo com não católicos, ao qual nos referiremos mais adiante e há uma dimensão de certa onipotência, num magistério mais inclinado a saber do que a escutar. Isso tem muito a ver com a maneira de pensar do atual papa, que tem horror aos riscos do relativismo e fica num plano teórico e doutoral, muito mais do que pastoral.      

Talvez tivesse sido melhor um texto mais curto, com interrogações abertas e pistas de ação nesse campo da justiça social e da caridade, de fácil acesso às comunidades cristãs. Mas isso é um hábito neste tipo de documento e inclusive nas “orientações” dos episcopados. Particularmente, este papa fala mais como teólogo do que como pastor.

Polêmicas

Na área da sexualidade e da reprodução repete o que vem de Paulo VI na Humanae Vitae e de João Paulo II.  Tem uma atitude de defesa diante das “delicadíssimas” questões de reprodução in vitro, clonagem, eutanásia, investigações com células-tronco (51) e uma crítica, com certa dose de razão, ao hedonismo e à sexualidade apenas como fonte de prazer (44). Mas também, na linha que percorre todo o documento, de não querer simplificar, poderia ter, além disso, se referido aos aspectos positivos do prazer e da sexualidade amorosa como alteridade.
Indica que a Igreja não tem soluções técnicas, mas aponta orientações e tenta iluminar a realidade (13). Nesse sentido, em frases às vezes perdidas num contexto demasiado totalizador, traz afirmações interessantes. Assim, vai valorizar a sociedade civil (24) e tem parágrafos muito ricos sobre o dom e a gratuidade: ”O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência” (34).

Também se refere à saúde ecológica da terra (32) e à democracia econômica (38). Indica que, mais além da relação privado e estatal, há experiências de economia solidária na sociedade civil (39), que chama de “organizações produtivas que perseguem fins materialistas e sociais”, além de lógica do lucro (38). Insiste numa orientação personalista e comunitária (42) e me faz pensar aí em Emmanuel Mounier.

Religião

Ao mesmo tempo em que fala de um “humanismo cristão” e da necessidade de toda a realidade estar iluminada por Deus, vai reconhecer que “outras culturas e outras religiões ensinam a fraternidade e a paz”, criticando ao mesmo tempo o sincretismo e as crenças mágicas (55). Mas, o que é importante, chama a “unir esforços com todos os homens e mulheres de boa vontade de outras religiões e não crentes” (57).

Há uma interessante observação entre razão e fé: “a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria onipotência, enquanto a fé sem razão corre o risco de alheamento da vida concreta das pessoas” (74).

Alternativa ao capitalismo

Vale notar que em nenhum momento se refere ao sistema capitalista, mas aos problemas mais fundamentais do mercado, que para Bento XVI tem elementos positivos e negativos: “deixado unicamente ao princípio da equivalência do valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar coesão social” (35). Também afirma que não existe o mercado em estado puro (36). Mas um mercado que só busca o lucro e aumenta as desigualdades não está na lógica do capitalismo atual? Como ir além, na busca de outras relações de produção que não as do sistema vigente? Talvez o documento considere que isso são indicações técnicas e queira ficar ao nível das grandes orientações. Mas é interessante que se coloca, na prática, em direção contrária a uma teologia da prosperidade, das raízes do capitalismo e de uma mentalidade neoliberal.

Fala em evitar mecanismos funestos de uma civilização tecnológica globalizada. Insiste no princípio da subsidiariedade, que percorre todo o ensinamento social da Igreja, muito importante nestes tempos de mundialização, onde há que saber articular o local e o global.   Vê as relações humanas em analogia com a Trindade, na unidade de um só Deus e na dimensão de relação entre as pessoas trinitárias.

Enfim, garimpando o texto, encontramos elementos bastante relevantes. Faltaria, como disse antes, ao lado dele, um documento mais ágil, pastoral e curto, que levasse esse ensinamento e linhas de ação às comunidades dos fiéis, para não ficar circunscrito aos especialistas. E os não católicos precisariam sentir que são realmente chamados ao “acordo entre crentes e não crentes” (79) e não postos diante de um discurso já pronto e totalizante. Nestes tempos de transição histórica, de novos paradigmas, de mudanças profundas e de um necessário pluralismo, essa atitude e esse estilo seriam da maior importância.

Leia mais...

>> Gómez de Souza já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Na página do IHU (www.unisinos.br/ihu), nas Notícias do Dia, podem ser conferidos vários artigos do pesquisador.

Entrevistas:

• A redescoberta de Gramsci. Publicada na edição número 231, de 13-8-2007, intitulada Gramsci, 70 anos depois; 

• Com Lula, onde ele estiver, publicada em 19-8-2006.

Artigos:

• Fé e Política. Os debates arejam e ajudam a precisar posições. Publicado em 22-1-2008;

• “Daí a César o que é de César...” Fé e Política em discussão. Publicado em 4-1-2008;

• Uma prece a São Francisco: solidários com os pobres e livres dos fundamentalismos religiosos e ecológicos. Publicado em 15-12-2007;

• O protagonismo popular na América Latina ameaça as elitetes classistas. Publicado em 10-12-2007;

• “O que fazer com eles?” A violência que gera mais violências. Publicado em 15-2-2007.

 

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