Edição 348 | 25 Outubro 2010

Reduções jesuíticas: um projeto político e evangelizador

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Patrícia Fachin

 

IHU On-Line - Como, a partir da religião, se deram os primeiros diálogos entre europeus e indígenas? De que maneira a linguagem religiosa se constituiu em uma área privilegiada da mediação simbólica entre diferentes culturas?

Adone Agnolin - Quanto apontado acima permite evidenciar, aos nossos olhos hodiernos, a difícil identificação unívoca de um “partir da religião”. Segundo a ótica de então, podemos dizer que é difícil distinguir o objetivo “religioso” daquele “político”. Dito de outra forma, ainda, a isso devemos responder propondo uma perspectiva que muda a própria pergunta: em princípio, não se parte da “religião”, mas, eventual e historicamente, se chega a ela. Isto é, ela se oferece enquanto resultado histórico de um percurso entendido enquanto “código” prioritário de identificação de determinados fenômenos que são interpretados sub specie religionis (isto é: na perspectiva religiosa). E, tendo em vista quanto apontamos relativamente à pergunta anterior e respondendo em termos gerais à presente, podemos dizer que a base do diálogo entre europeus e indígenas se deu, portanto, na perspectiva de uma (fundamental) mediação de um “religioso” que se estabeleceu enquanto código comunicativo privilegiado que devia permitir uma penetração da cultura ocidental nas outras culturas, ao mesmo tempo em que devia permitir uma inscrição das outras culturas num reconhecimento ocidental de sua (eventual e característica) “religiosidade”.
Nesta base, o diálogo propriamente dito foi se tecendo com e inscrevendo no mundo simbólico indígena: este, enfim, teve que se abrir, sempre que pôde, a uma perspectiva de tradução frente à linguagem (religiosa) de mediação simbólica dos missionários, às vezes criando ou ameaçando equívocos de que – a convivência estreita, junto com a perspicácia, de – certos missionários se deram, finalmente, conta. Assim, por exemplo, o jesuíta Acosta aponta para os problemas que se determinaram ao longo dessa experiência missionária nas Américas: segundo o missionário jesuíta, essa última manifestava claramente quanto podia ser contraproducente e perigoso falar de “igrejas”, “monastérios” e “padres” a povos que não conheciam essas coisas. Portanto, a lição dessa experiência missionária constituiu-se na necessidade de adequar-se ao grau de compreensão dos próprios indígenas: assim, corrigiam-se, necessariamente, algumas perspectivas catequéticas iniciais. Neste contexto, mas não somente nele, portanto, a “religião” tornou-se o instrumento conceitual que se modelou, mais uma vez, manifestando sua vocação em constituir-se como resultado privilegiado de uma comunicação intercultural. A projeção das categorias religiosas ocidentais nas outras culturas refundava (religiosamente) suas hierarquias de sentido: todavia, na ótica de um “diálogo” com as outras culturas, não podemos deixar de observar como essa tradução devia constituir-se como recíproca, na medida em que a cultura indígena, por exemplo, podia transformar, por sua vez, o sentido missionário das “igrejas”, dos “monastérios” e dos “padres”, a que se referia a preocupação acostiana.
Finalmente, grave ameaça do fracasso da empresa colonial global, quando a perspectiva de uma fundamental interpretação religiosa do outro se chocava com a identificação missionária de uma desesperadora ausência de religião, como acontece, por exemplo, na transformação da interpretação de Nóbrega, segundo os termos do próprio jesuíta (propostos em seu Diálogo sobre a Conversão do Gentio), realiza-se o reviramento da própria estratégia da missão jesuítica: da prioridade de uma inicial catequese como aviamento à civilização, à priorização absoluta da civilização dos indígenas a fim de poder enraizar nela, de fato, um possível (e quanto mais sólido) “processo civilizador” (o Plano Civilizador, de fato). É este método alternativo de evangelização que, finalmente, foi identificado com a operação de “redução” das culturas indígenas que, antes de institucionalizar-se nos famosos modelos alternativos da organização social que levaram esse nome, constituiu-se como prática necessária de um reconhecimento e de uma indagação próprios. E os primeiros reconhecimentos parecem delinear-se, decididamente, em forma de excessos, por um lado, e de ausências, por outro. Como analisamos em nosso trabalho, num primeiro tempo, os excessos serão identificados com os costumes e as ausências com as crenças: e, no imperativo missionário de cristianizar os indígenas, os primeiros parecem, a princípio, ter preocupado mais do que as segundas. Neste sentido, na base do processo de catequização impunha-se o trabalho enquanto instrumento de civilização. De fato, tanto a aldeia quanto as reducciones constituíram-se como lugares de trabalho que, enquanto tais, eram finalizados à civilização do indígena americano: estabilidade, regularidade, hierarquia, constituíam-se quase como uma administração de diferentes temporalidades. O processo (civilizador, antes que missionário) de redução manifesta, portanto, o domínio político enquanto policiamento endereçado a modificar os (excessos dos) costumes indígenas: processo de “mediação concreta”, sucessiva e, depois, paralela e complementar à linguagem religiosa enquanto área privilegiada da “mediação simbólica” entre diferentes culturas. E, ao que parece, se a mediação concreta intervém para corrigir os excessos, aquela simbólica intervém para preencher algumas significativas ausências em relação à memória, à vontade e, finalmente, à religião: e isso, apesar do definitivo reconhecimento (religioso) da alma dos indígenas americanos.

IHU On-Line - Quais as diferenças e peculiaridades dos projetos de catecismos jesuíticos compostos nas missões asiáticas e no ocidente?

Adone Agnolin - Face à tradição humanista europeia, esquematicamente podemos tentar resumir as peculiaridades e as diferenças dos projetos catequéticos jesuítas relativos às missões asiáticas na dupla perspectiva “religiosa” e “política”. Olhando para o Oriente, de fato, o humanismo renascentista descobrira, sobretudo, uma outra modalidade de construção do civil: às vezes aproximado ao mundo antigo, este último processo de civilização afastava-se dele, sobretudo no caso chinês, por constituir a base de uma possível “moralidade sem deuses”. Se a redescoberta e a investigação do mundo clássico (paralelamente à formulação de um determinado ideal e mito humanos) preparava, condicionava e estruturava um caminho para a percepção e a conceituação de uma inesperada “nova humanidade” (aquela apresentada pelas descobertas americanas), antes disso, ganhava em profundidade a dimensão desse “civil” quando o humanismo do século XVI se debruçou sobre os “costumes civis” do Oriente. Antes da descoberta do “selvagem” americano, o “civil” oriental trazia importantes modificações – com relação ao “civil” do Mundo Clássico – no próprio processo da “construção da humanidade” que caracterizara a Renascença.
Nesta direção, portanto, o Oriente redescoberto nessa época vinha sendo interpretado enquanto resposta a esses anseios da cultura ocidental, na medida tanto mais significativa quanto mais suas culturas pareciam desvendar uma “religiosidade” bastante peculiar quando não umas preocupações morais autonomizadas em relação à religião. E se nem sempre a estrutura tranquilizadora (a leitura sub specie religionis) conseguia absolver sua função, por outro lado o estabelecimento de semelhanças e identidades (em termos de compatibilidade) era constituído, enfim, na base de uma interpretação “moral” de suas “doutrinas”: esboçava-se, assim, uma dimensão “política” que vinha preenchendo os limites da difícil compatibilização “religiosa”.

Por outro lado, vale a pena levar em consideração uma característica política (e “religiosa”) interna às próprias culturas orientais: e, tanto nela quanto na tradução jesuítica desta tradição, encontramos, de fato, a exemplificação mais representativa desses pressupostos e, na base deles, do impor-se da nova estratégia missionária jesuítica. Foi dessa maneira, enfim, que o os missionários jesuítas conseguiram, de algum modo, relativizar sua ação e seus instrumentos culturais adaptando-os à situação cultural específica na qual estavam atuando: e a nova estratégia foi se delineando, pelo menos, desde meado do século XVI.
Exemplo significativo que delineia o impor-se da nova estratégia missionária jesuítica no Oriente é, entre outros, aquele relativo ao Japão: derrubando a anterior política de discriminação contra o clero indígena instaurada por Francisco Cabral, primeiro superior da missão, com a virada da política jesuítica proposta pelo visitador Alessandro Valignano, os missionários se encontraram na possibilidade (e na necessidade) de adotar uma “política de adaptação” com os senhores feudais (daimyo) contra o budismo que se tornava seu comum e principal inimigo (acompanhando, por exemplo, os samurai cristãos para a guerra com o capelão jesuíta e com as bandeiras que representavam a cruz!): e tudo isso quando, paradoxalmente, muitos jesuítas japoneses foram monges budistas. Enfim, no esforço missionário que se destinava a realizar a tentativa de uma possível convivência com uma cultura estranha, a compatibilidade com a Escritura judaico-cristã entrecruzava-se, necessariamente, com um sistema de compatibilidades dentro do qual, segundo o entendimento dos jesuítas, chineses e japoneses deveriam poder inserir-se, partindo de sua peculiar ótica cultural.

Além do mais, precisamos destacar uma característica contextual que diferencia profundamente a situação das missões no Oriente com relação àquelas das Índias ocidentais: esta diferenciação se encontra, sem dúvida, na base das profundas diferenças de estratégias que, nos diferentes contextos, os missionários tiveram que adotar. No caso da conquista da América, permanece fora de dúvida o fato de que se tratou, antes de mais nada, de uma conquista baseada no uso da força: as próprias missões cristãs dependiam, neste caso, antes que da própria ordem religiosa (com suas peculiares estratégias de “conquista de almas”), da ordem criada pelas armas dos espanhóis e dos portugueses. Em contraposição à América, a situação das missões na Índia, no Japão e na China encontrava-se profundamente diferenciada: aqui os missionários podiam contar somente com as próprias capacidades. E se, entre o Atlântico e o Índico, o esforço comum do próprio missionário em terra de missão era, em princípio, sobretudo aquele de traduzir, possivelmente de forma clara e sem equívocos, a mensagem evangélica, entre as refinadas culturas asiáticas a ação evangelizadora teve que propor-se com muito maior cuidado para não trair e extraviar a própria mensagem.
Diferentemente do caso americano, no caso das missões no Oriente, a alteridade se constituía não mais numa oposição que criasse um mecanismo de recíproca complementariedade, mas numa significativa “oposição de alternativas”. Confirmação disso é o fato de que, no século XVI, as duas máximas autoridades jesuíticas neste lado do mundo, o Pe. Valignano , em Goa, e o Pe. Francisco Cabral , em Macau, deram início a uma áspera polêmica – através de suas respectivas correspondências para o geral da Companhia, Claudio Aquaviva  – em relação a uma oposição radical a respeito dos programas e dos métodos missionários. Nesta disputa, Valignano acabou impondo um próprio Livro das regras ou, como foi geralmente definido, Cerimonial. Sua aprovação não foi concedida sem reservas. As Regras dos ofícios, que entraram em vigor definitivamente em 1592, foram, enfim, o resultado de uma longa contratação.

Paradoxalmente, a reação ao Cerimonial de Pe. Aquaviva, geral da Companhia, demonstra quanto grande foi o sucesso da tentativa de Valignano: a apropriação de uma cultura diferente conseguiu tornar o cristianismo quase que irreconhecível aos olhos de seus próprios superiores; a escolha de imitar os bonzos do budismo “zen”, apesar de instrumental para a dissimulação, havia conseguido cancelar os traços fundamentais da missio jesuítica. Trata-se, no fundo, da repetição daquilo que Matteo Ricci , o mais célebre representante do método da “acomodação”, experimentou naqueles mesmos anos: isto é, quão pouco conveniente teria sido insistir demasiadamente com o símbolo do crucifixo; quão difícil era explicar, para os chineses, o que representava aquele homem crucificado. O próprio Ricci, ao final, resignou-se a falar dele como de “um grande santo de nossa terra”.

De qualquer maneira, todavia, enquanto ia se definindo o desfecho do percurso, na circularidade das linhas de organização da experiência missionária, entre a Europa e os países extraeuropeus, segundo Adriano Prosperi , dois tornaram-se os eixos de orientação da prática missionária: “as artes da ‘acomodação’ e da simulação, elaboradas para as culturas ‘altas’ e para os países não dominados militarmente por príncipes cristãos – Japão e China –, foram reservadas às classes dominantes e, em particular, aos soberanos dos Estados europeus não católicos. As técnicas didáticas destinadas aos ‘rudes’ da América encontraram aplicação nas missões internas que investiram as campanhas dos países católicos”.

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