Edição 348 | 25 Outubro 2010

Reduções jesuíticas: um projeto político e evangelizador

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Patrícia Fachin

 

IHU On-Line - Em que consistia o projeto imperial e evangelizador? Qual é o reflexo desse projeto do século XVI nas missões, no processo de catequização dos indígenas?

Adone Agnolin - No interior do percurso histórico apontado, ressemantizado com suas especificidades no contexto ibérico, se insere a ideologia imperial da Espanha e de Portugal, dentro da qual a missão “religiosa” não se distinguia daquela “política” (a ideologia que estruturava a instituição do Padroado): essas duas perspectivas ofereceram-se, conjuntamente, enquanto fundamento do projeto de monarquia universal. A extensão da universalidade do imperium constituiu-se, portanto, na imposição paralela de “civilizar” o mundo, segundo o modelo da civitas romana, e de “converter” seus habitantes, segundo o modelo do cristianismo. Finalmente, vale destacar como o pressuposto (fideístico) missionário e os choques dele decorrentes encontrar-se-ão à base da obra e dos equívocos da catequização que, em princípio, pressupunha ter que resolver “simplesmente” os problemas da forma (da doutrina) e de seu veículo (linguístico).

Esta ideologia, todavia, manifesta seu necessário limite em projetar-se, simplesmente, como “reflexo” (segundo o termo proposto pela pergunta). De fato, o “encontro catequético” que se realiza, no século XVI, junto às comunidades indígenas mostra como – segundo a análise que propusemos em nosso trabalho (sobretudo na Parte III, cap. 2: Os Sacramentos entre os Tupi) –, além de prepará-lo, realiza no encontro a abertura de uma série de convergências de horizontes simbólicos que se produzem enquanto construções históricas decorrentes do impacto colonial. Isto quer dizer que a cultura colonial nascida no interior do projeto imperial e civilizador vai alimentando, progressiva e necessariamente, um processo de seleção, absorção e transformação de elementos e estruturas culturais outros, nos respectivos dois lados do encontro: e isto, obviamente, na medida em que esses elementos faziam sentido para a cultura (indígena ou missionária) que os recebia, quando não eram transformados nessa direção. A cultura colonial acaba, de fato, constituindo-se nesse processo de convergência que a transforma numa “cultura híbrida” ou “mestiça”. Finalmente, até algumas categorias peculiares de análise ocidental, que serviram para interpretar a alteridade nesse processo histórico de encontro desenvolvido no interior do Ocidente, constituíram-se enquanto “categorias híbridas”: é o caso emblemático, por exemplo, do próprio conceito de “religião”. Por outro lado, não podemos perder de vista o fato que, no contexto da instituição do Padroado (português), mesmo em sua posição peculiar, os inacianos acabaram se tornando instrumentos da política de desenvolvimento da Colônia, servindo, portanto, aos interesses da Coroa portuguesa: nessa perspectiva a obra dos jesuítas no Brasil se caracterizava também por procurar um método alternativo de conquista e assimilação dos povos nativos, os “negros da terra”.
Portanto, não podemos perder de vista como o objetivo evangelizador se constituiu, também, enquanto base de um projeto propriamente colonial: e nesta base, inicialmente, se tornou fundamento de um entusiástico projeto missionário que via no bom selvagem a imagem de uma inocência que apontava para a possibilidade de fecundar sua alma virgem. Assim, pouco depois de sua chegada, o Pe. Manuel da Nóbrega  podia afirmar, com um tom manifestamente entusiástico em relação à atuação de seu projeto missionário, que se trata de “gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem ídolos” e, sucessivamente, que “esta gentilidad a ninguna cosa adora”. Mas pouco a pouco, a tabula rasa da cultura indígena devia manifestar-se em toda sua ameaçadora dimensão que arriscava não permitir nem a conversão (religiosa) nem a colonização (política). As ausências, até em seus fundamentos linguísticos, de Fé, Lei e Rei revelavam-se não mais como base do projeto colonial e missionário, mas sim como o perigo do fracasso da empresa colonial global. E, em sua especificidade “religiosa”, assiste-se à transformação da interpretação de Nóbrega. Em 1556, a sua consideração a respeito não é mais uma (pretensa) interpretação etnográfica: ela se torna, enfim, numa desesperadora lamentação:

“Se tiveram rei, podérão se converter, ou se adorárão alguma cousa; mas como não sabem, que cousa é crêr, nem adorar, não podem entender a prégação do Evangelho, pois ella se funda em fazer crêr e adorar a um só Deus, e a este só servir, e como este genio não adora a cousa alguma, nem crê em nada, tudo o que lhe dizeis se fica em nada”.

A possibilidade de constituir uma humanidade única – enquanto sistema de comparações de suas formas específicas: hoje diríamos de suas culturas – era ameaçada pela impossibilidade de encontrar uma série de valores (“religiosos”) comuns que deviam fundamentar a comparação. Essa ausência constituía-se como a impossibilidade de realizar uma conversão/tradução autêntica por parte dos missionários. A própria ação demoníaca caracterizava-se tênue e timidamente, neste vazio de crenças, como eco das caracterizações que o Período Clássico e a Idade Média haviam projetado nas alteridades da Índia, da Etiópia e da Escandinávia e que se transferia para a América em seguida à sua expulsão ocorrida na Europa. Mas, nas desnorteantes ausências das terras americanas, o próprio demônio corria o risco de se encontrar sem chão para implementar sua ação.

Para fundamentar a possibilidade de uma conversão autêntica, tornava-se necessário, então, efetivar a possibilidade anterior de uma “traduzibilidade” (apesar da novidade) da cultura americana. Fazia-se necessário encontrar uma gramática das culturas outras que permitisse lê-las. Nessa direção, tratava-se, antes de mais nada, de instaurar uma possibilidade de comunicação que, única e consequentemente, podia permitir, de alguma forma, uma conversão: é a partir deste ponto de vista que adquire uma importante relevância o fato das palavras “conquista”, “conversão” e “tradução” encontrarem-se envolvidas numa relação semântica tão estritamente recíproca, na época.

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