Edição 346 | 04 Outubro 2010

A terra, os pobres, os animais: uma visão ecológica da vida

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Moisés Sbardelotto

 

IHU On-Line – Como podemos repensar uma nova relação economia/ecologia a partir de perspectivas bíblico-teológicas? É possível para o ser humano “crescer e se multiplicar” sem “dominar e sujeitar” a Criação?

Haroldo Reimer – A dominação e a exploração desenfreadas do ambiente não são só uma questão do aumento populacional. Têm muito a ver com o modo de organização da vida em coletividade e, claro, com o volume do consumo. Nesse sentido, a relação entre o consumo per capita nos Estados Unidos e na Índia tem diferença de algumas centenas de vezes. Isso é um elemento indicativo. O aumento populacional, contudo, não pode ser negligenciado nessa conta, pois, por meio da ação propagandística da grande mídia, acontece uma espécie de “democratização” ou internacionalização do modo de vida americano. E isso acaba por gerar demandas de produção e consumo que intervêm diretamente no ritmo de exploração do ambiente.

O mandato de “crescer e se multiplicar” da Bíblia é enunciado para dentro de um mundo no qual o ambiente constituía um desafio e uma ameaça. Hoje, ele precisa ser revisto, pois a relação se inverteu. O ser humano se tornou uma ameaça efetiva ao ambiente. Por isso, também no campo religioso é necessário conversar aberta e criticamente sobre reprodução humana. Essa é uma questão que não pode ser relegada simplesmente a ações voluntárias ou a políticas públicas sem a participação dos segmentos religiosos. O crescimento populacional aliado com a elevação dos padrões de consumo implica necessariamente em “dominar e sujeitar”. Aliás, este é o binômio bíblico mais apreciado pelo paradigma da modernidade técnico-científica. Omite-se quase por completo a existência de outro binômio no conjunto dos textos bíblicos que ressalta a dimensão do “cultivar e guardar”. “Cultivar” implica em interferir no ambiente natural; é sinônimo de trabalho. Biblicamente até expressa o trabalho duro, similar ao trabalho de um servo. A raiz verbal dos termos é igual. O termo “guardar” expressa plenamente a dimensão do que hoje chamaríamos de uma ética da responsabilidade na linha proposta por Hans Jonas. Implica em ações que buscam resguardar o ambiente e o ciclo da vida em suas dimensões ecossistêmicas, incluindo as gerações presentes e futuras. Esse é binômio que deve ser ressaltado em qualquer ética ambiental de matriz ou influência judaico-cristã.
Defender a vida é defender a vida também em sua dimensão ecossistêmica e não somente na dimensão individual. A crítica ao paradigma do crescimento ilimitado e desenfreado deve também ser realizada no âmbito do crescimento populacional.

IHU On-Line – Em seu livro Toda a Criação: Bíblia e Ecologia, o senhor aborda uma “espiritualidade ecológica” a partir dos Salmos. O que seria essa espiritualidade? Como vivê-la hoje?

Haroldo Reimer – O livro Toda a Criação: Bíblia e Ecologia é uma coletânea de artigos que fui escrevendo para diferentes periódicos nos últimos anos. Trata-se de uma espécie de “garimpagem” de textos bíblicos, inquirindo-os quanto à sua potencialidade para ajudar na promoção e na emergência de um paradigma ecológico. Por trás disso, está o reconhecimento de que a fé judaico-cristã, além de haver contribuído com vários elementos para a estruturação do paradigma moderno de caráter predatório, também contém elementos que ajudam a pensar a relação do ser humano com o ambiente no sentido ecológico, dentro de uma ética do cuidado e da responsabilidade.

Dentro do paradigma da modernidade, que ainda marca nosso modo de ser dominante, pode-se basicamente afirmar o seguinte enunciado como representativo das opiniões compartilhadas na modernidade: a terra é uma grandeza a ser dominada e explorada em favor dos seres humanos. Esse enunciado necessita de uma completa re-visão e deveria ser expresso nos seguintes termos: a terra é a casa comum de todos os seres vivos e do próprio Deus, e cada qual tem responsabilidades de cuidado. Repensar e (re) viver esses conceitos é um grande desafio que deve ser realizado no conjunto de ações educativas de ordem inter ou transdisciplinar. As religiões, a fé, a espiritualidade podem e devem dar a sua contribuição, e pode-se dizer que têm (ainda) muito a dar. No meu entender, uma das principais contribuições reside na redescoberta de elementos de sabedoria e espiritualidade no sentido da percepção das multiformes ligações e necessidades de religação do ser humano com a Criação e com o próprio Criador. O novo que ainda está em processo de construção inclui e pressupõe um novo paradigma para vivermos como criação de Deus, cuidando-nos mutuamente. Aí se trata de uma espiritualidade.

Os Salmos bíblicos evidenciam grande diversidade de temas para a oração e a contemplação. Por exemplo, o Salmo 104 pode ser considerado, sob o prisma de seu valor poético, como um dos mais belos do Saltério. Ele constitui um hino à natureza, reprisando elementos que se encontram nos relatos de criação no livro de Gênesis. A linguagem está vazada em linhas estritamente precisas e traçadas com sobriedade. Em termos de conteúdo, é de fato o Salmo que melhor expressa a dimensão de Yahveh como o Deus criador de toda a Criação. De uma maneira bela e extremamente poética, evidencia-se a concepção de uma inter-relação entre Deus e toda a criação. Aqui se manifesta a consciência dos antigos israelitas acerca da profunda relação vital de dependência da humanidade e de toda a Criação em relação a um poder originário, identificado e celebrado como o próprio Deus de Israel. A “teologia da criação”, descrita neste Salmo, possivelmente apresenta traços ecumênicos, na medida em que o Salmo toma de empréstimo elementos do hino ao sol do rei egípcio Akhenaton, do século XIV a.C., devidamente retrabalhados a partir de uma perspectiva da fé hebraica em Yahveh, como sendo o único Deus poderoso.
Viver tal espiritualidade de ligação é uma demanda no tempo atual. Há muitas formas de experimentar isso. Um passo necessário é o exercício de sensibilidade, que depende do nível de consciência de cada pessoa. Trata-se também de perceber em que medida eu, como indivíduo integrante de um todo maior, contribuo para aumentar ou diminuir crises ambientais; claro, aquelas de reconhecidas causas antrópicas. Aí a constatação do apóstolo Paulo em sua Carta aos Romanos pode servir de alerta: “Toda a Criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora” (Romanos 8, 23).
Na espiritualidade, trata-se também de se perceber a si mesmo como integrante de uma rede maior de relações de produção e consumo. A própria necessidade de sobrevivência impõe ininterrupta intervenção sobre o ambiente. Os humanos são seres de combustão. Alimentam-se de outras formas de vida para sua própria manutenção. As intervenções, contudo, podem ser diferentemente moduladas. A “pegada humana” sobre o ambiente pode ser mais pesada ou mais leve. O nível do impacto depende do modo como se pisa! Depende do modo como a pessoa concebe a sua relação com o seu entorno ambiental. Há formas mais predatórias de organizar a vida em sociedade e há formas menos predatórias. No fundo, depende do exercício de sabedoria e de espiritualidade. Há sempre um componente de espiritualidade no prato de comida que eu como, na escolha dos ingredientes. As pessoas vegetarianas, ou as expressões religiosas que abdicam do consumo de alimentos que implicam em tirar a vida de outros seres, costumam ter uma reflexão espiritual mais apurada com relação à sua forma de consumo dos bens naturais. Aí há o que aprender.

IHU On-Line – A campanha 10:10:10, unida à proposta do “Tempo para a Criação” busca transformar o dia 10 de outubro de 2010 na data com o maior número de ações positivas contra as mudanças climáticas da história. Que figuras históricas – bíblicas ou não – podem nos servir de exemplo como pessoas que colocaram em prática “formas de vida sustentáveis” em seu cotidiano e em sua vida de fé?

Haroldo Reimer – Toda campanha que contemple iniciativas teóricas ou práticas em favor de um ambiente saudável são bem-vindas. Essa proposta de visibilizar ações no dia 10 de outubro de 2010 pode ser uma excelente forma de exercício de espiritualidade ecológica. Como exercício, será algo efêmero; durará o tempo do dia, se no dia seguinte não começar a se converter em hábito.
É difícil encontrar figuras bíblicas que colocaram em prática “formas de vida sustentáveis”. Noé é uma figura ambígua (Gênesis, 6 a 9). Recolhe os animais na arca, preservando espécies, mas silencia o todo tempo sobre a crise vindoura. Sempre achei legal o entendimento entre Abraão e Ló quando perceberam que o espaço natural é pequeno demais para ambos viverem; por isso decidiram dividir-se, encontrando cada qual seu novo espaço. A prevenção da concentração é uma forma de pensar ecologicamente.

Há um texto que sempre me ocorre como exemplo de pensamento ecológico e de sustentabilidade. Em Êxodo 23, 10-11, é proposto que ao homem é legitimamente concedido cultivar a terra e recolher os seus frutos. Aí se trata da atividade da produção. Mas o ritmo produtivo e explorador deve ser temporalmente limitado a seis anos, devendo o sétimo ano ser um tempo de “descanso sabático”, isto é, de interrupção deliberada do ritmo produtivo. O texto indica três finalidades: a) primeiro, é dito que a própria terra deve poder descansar. Isso é estranho ao nosso modo de pensar, pois estamos acostumados com a ideia de que a terra deve somente servir para a satisfação de nossas necessidades (e desejos); b) em segundo lugar, os pobres devem poder colher o que nascer por conta própria no sétimo ano, tendo uma provisão extra além de sua limitada alimentação usual; c) em terceiro, indica-se que os animais do campo devem poder comer do que sobrar. Explicitamente se inclui aí os animais do campo dentro de um ciclo ecológico. Três seres ameaçados em sua existência devem ser contemplados no modo de se organizar a vida em sociedade: a terra, os pobres e os animais. Isso é o que se pode chamar de uma “visão ecológica” da vida. Os interesses são limitados pela integridade da vida e da Criação.

Há certamente figuras históricas que são ícones de vida sustentável. Francisco de Assis  é uma delas. Mahatma Gandhi  é outra. Mas não só essas figuras-ícones devem ser tomadas como exemplos. Há muitas pessoas anônimas que dão cotidianamente sinais e exemplos de formas de vida e de produção sustentável. Cresce, por exemplo, a rede de produtores agroecológicos. Na medida em que as redes de comunicação colocarem em evidência esses sinais e essas figuras, o paradigma ecológico pode experimentar um efeito quântico. Na quase absoluta fragmentação das relações na modernidade, a ação do indivíduo pode ser de importância fundamental. Há que ousar viver melhor, e o melhor nem sempre é o maior.

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