Edição 343 | 13 Setembro 2010

O devir-Brasil do mundo e o biopoder

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Márcia Junges e Patricia Fachin

Para Giuseppe Cocco, o devir-Brasil do mundo confirma a abertura do conceito foucaultiano de biopoder em duas linhas antagônicas: “por um lado, no processo de brasilianização, encontramos as dinâmicas do biopoder como poder sobre a vida, como regulação dos pobres; pelo outro, temos a potência dos pobres, ou seja, a biopolítica como potência da vida”

“A crise da modernidade industrial e a formação de um capitalismo globalizado, financeiro e cuja acumulação tem características cognitivas, fez entrar em colapso as significações (implícitas e explícitas) dessa perspectiva: não é mais o Brasil que se torna futuro, mas é o futuro que virou Brasil e, dessa maneira, o futuro do Brasil passa a ser o próprio Brasil!”. A ideia é defendida por Giuseppe Cocco. Em entrevista à IHU On-Line, por email, o pesquisador explica que essa inversão paradoxal tem um nome: “Se chama ‘brasilianização do mundo’”. A partir desse novo paradigma, o país pode repensar sua relação para com o mundo ou, “a relação do Brasil com o mundo pode ser atravessada por uma alternativa radical”. Segundo ele, “o agenciamento do Brasil e do mundo acontece (pode acontecer e ser visto) num plano radicalmente outro e põe, positivamente, o Brasil no cerne dos movimentos de construção de uma outra métrica, de um outro padrão de valor. É nesses termos que podemos apreender o destaque impressionante que o Brasil tem no mundo hoje, um destaque ainda mais forte depois da crise dos subprimes”. Cocco menciona ainda que a partir do devir-Brasil do mundo é possível operar uma troca radical de pontos de vista, deixando de assumir um ponto de vista do Sul antiimperialista, e dando espaço ao “devir-Sul do mundo, para além do Norte e do Sul, em direção à construção de novos valores”.

Giuseppe Cocco possui graduação em Ciências Políticas pela Universidade de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciências Tecnológicas e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Doutor em História Social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne), atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Publicou com Antonio Negri o livro Global: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Ed. Record, 2005). No XI Simpósio Internacional IHU – O (des)governo biopolítico da vida humana, Cocco ministrará o minicurso Pensar a crise do capitalismo Global na perspectiva do devir-Brasil do Mundo, às 14h30min, do dia 15-9-2010.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que medida é possível pensar a importância do devir-Brasil do mundo na perspectiva da crise do capitalismo global?

Giuseppe Cocco - A relação “moderna” do Brasil ao mundo sempre foi marcada pela ideia de futuro: dizia-se que o Brasil era o “país do futuro”. O futuro sendo o progresso que o processo de desenvolvimento nacional ia trazer por meio da industrialização e do pleno emprego. Indo em direção ao futuro, o Brasil devia dessa maneira ir da periferia para o centro, do subdesenvolvimento para o desenvolvimento. Quando a economia não crescia, falava-se (e ainda fala-se) de décadas “perdidas”. Tinha-se perdido o trem que levava para o “primeiro mundo”: era o trem do desenvolvimento nacional, seu motor se chamava “nacional desenvolvimentismo” e a gasolina era a “industrialização”.

Embora hoje haja uma corrente de pensamento neodesenvolvimentista, muito forte no governo Lula, a crise da modernidade industrial e a formação de um capitalismo globalizado, financeiro e cuja acumulação tem características cognitivas, fez entrar em colapso as significações (implícitas e explícitas) dessa perspectiva: não é mais o Brasil que se torna futuro, mas é o futuro que virou Brasil e, dessa maneira, o futuro do Brasil passa a ser o próprio Brasil! Essa inversão paradoxal tem um nome preciso, se chama “brasilianização” do mundo. O capitalismo global e financeiro, por um lado, substitui a empregabilidade ao emprego e precariza o trabalho, pelo outro privatiza os serviços e desmonta os sistemas de proteção social. Informalidade, precariedade, desemprego, subemprego, fraca (ou nula) proteção social não são mais o fruto de níveis insuficientes de modernização, mas são promovidos por essa: suas sinistras palavras de ordem são outsourcing e downsizing, terceirização das empresas e terciarização da economia. Centro e periferia se misturam! De repente, a luta contra a desigualdade e contra a exclusão no Brasil deve enfrentar, ao mesmo tempo, as heranças do passado e as consequências da inserção na globalização.
Ao mesmo tempo, também esse capitalismo global, esse “futuro que virou Brasil”, entrou numa crise profunda. Aquela que estourou com o desmoronamento do crédito imobiliário nos Estados Unidos (os subprimes). Com as finanças, entrou em crise a ilusão de poder governar a contradição que esse deslocamento do trabalho para fora da relação salarial implica: por um lado, o trabalho se separa do emprego e se torna empregabilidade, pelo outro o trabalhador precisa continuamente investir no que a retórica neoliberal chama de capital humano e capital social. O poder de compra, a segurança e proteção do trabalhador diminuíram proporcionalmente à sua transformação em genérico “empregável”. Ao mesmo tempo, esse poder de compra continua sendo importante – mas de maneira menos decisiva, na medida em que a integração produtiva de zonas de baixíssimos salários e a própria globalização dos mercados já relativizaram esse mecanismo fordista-keynesiano que ligava a produção em massa ao consumo em massa por meio dos salários operários – para manter os níveis de crescimento, mas, sobretudo, ele é decisivo para que o trabalhador realize os gastos, que são investimentos, em sua própria empregabilidade. O capitalismo cognitivo (sob hegemonia neoliberal), para explorar as redes de empregabilidade, passou a privatizar os serviços e reduziu a renda de um trabalho que cada vez mais necessita de boa educação, saúde, infraestrutura, transportes e moradia “conectada” às redes. Tudo isso, como dissemos, para continuar a ser empregável: algo que ele passou a fazer graça ao crescente recurso ao crédito: crédito ao consumo, para a saúde, para a educação, para a moradia: um débito que se tornou impagável! Assim, a brasilianização da qual falaram Michael Lindt e Ulrich Beck  e a favelização que alimenta o catastrofismo conservador de Mike Davis  acabam por abrir-se a uma alternativa radical de tipo novo. A crise, evidentemente, amplifica os efeitos de crise social (exclusão) e crise civil (violência) desse processo. Ao mesmo tempo, ela aparece claramente como uma crise de valor, do próprio conceito de desenvolvimento e, pois, como crise da ideia de futuro, da própria noção de tempo.

A relação do Brasil no mundo

De repente, o Brasil pode repensar sua relação para com o mundo ou, dito de outra maneira, a relação do Brasil com o mundo pode ser atravessada por uma alternativa radical, de novo tipo: por um lado, como dissemos, a brasilianização do mundo, ou seja, a dimensão pejorativa do futuro (o progresso) que nunca chegava e agora – pelo mesmo mecanismo - se torna regresso; pelo outro, um devir-Brasil do mundo que é necessariamente um devir-mundo do Brasil. O agenciamento do Brasil e do mundo acontece (pode acontecer e ser visto) num plano radicalmente outro e põe, positivamente, o Brasil no cerne dos movimentos de construção de uma outra métrica, de um outro padrão de valor. É nesses termos que podemos apreender o destaque impressionante que o Brasil tem no mundo hoje, um destaque ainda mais forte depois da crise dos subprimes. Apesar da dramaticidade da “brasilianização”, o devir-Brasil do mundo se define pelo plano de construção de uma política dos pobres, quer dizer da diferença e da paz. No devir-Brasil do mundo temos, pois, a possibilidade de operar uma troca radical de pontos de vista, assumindo o ponto de vista não mais do Sul antiimperialista (a identidade subalterna contra aquela da dominação, o terceiro-mundo que quer ser primeiro-mundo, como se diz nas reuniões da elite), mas do devir-Sul do mundo, para além do Norte e do Sul, em direção à construção de novos valores.

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