Edição 339 | 16 Agosto 2010

Kierkegaard e Dogville: a desumanização do humano

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Márcia Junges

 

IHU On-Line – Em que aspectos Dogville e a filosofia de Kierkegaard promovem uma crítica à massificação igualitária promovida pelo cristianismo e pela democracia?

Fransmar Barreira Costa Lima – Primeiramente, a crítica promovida pela filosofia de Kierkegaard não é uma crítica ao cristianismo, e sim uma crítica à cristandade. O cristianismo não é um estilo de vida ou uma constituição cultural; é uma opção pela verdade e pela verdade encontrada no absoluto, exigente pela autenticidade e pelo compromisso frente ao outro. Na Dinamarca luterana do século XIX, Kierkegaard encontra no bispo Mynster um fomentador do cristianismo como concepção cultural – e ele escreve sobre isto nos diários – e combate esta ideia de um “cristianismo cultura” que não é o verdadeiro cristianismo, e sim uma estruturação institucional da cristandade.  Tal cristandade promove a igualdade a partir de uma assimilação identitária entre eu e o outro. Todos são iguais e até legalmente cristãos. Não se reconhecem as diferenças entre os indivíduos e também não se respeitam as individualidades. Note-se que não falamos de um individualismo, ou uma condição egoística de ser, mas na individualidade, na consideração que cada indivíduo deve ter por outro reconhecendo-o como singular; idêntico, mas não igual. O termo massificação igualitária não cabe propriamente na filosofia de Kierkegaard, mas se adéqua à ideia de Dogville. O conceito de massificação só aparecerá na filosofia com Adorno , já na primeira metade do século XX.Não se pode negar, porém, que Adorno não sofra influência de Kierkegaard, até porque sua tese de livre docência é sobre Kierkegaard. (Kierkegaard: A construção do Estético, inédita ainda em nossa língua mas que deve brevemente ser publicada com uma tradução de Álvaro Valls.)
A distância histórica entre Kierkegaard e o filme de Lars von Trier é grande; muita coisa aconteceu nestes quase 150 anos. É possível, entretanto, pensar algumas aproximações quando consideramos que o legado do pensamento de Kierkegaard é determinante para a filosofia do séc. XX. Em Dogville, a democracia – no modelo norte-americano – encontra na cristandade um embasamento muito forte: citamos Deus à todo momento e o encontramos referências a ele até em nossas moedas correntes. Há de se perguntar, no entanto: De qual deus falamos? Qual Deus citamos? É o Deus do cristianismo, que exige compromisso ético, alteridade, virtude; ou é um Deus da cristandade, já sem identidade e que atende a nossos preceitos culturais ou institucionais, onde a votação democrática e a vontade do todo – enquanto grupo social – determinam como premissas religiosas a vontade de Deus? É claro que estas questões só podem ser respondidas pelo indivíduo em uma reflexão que privilegie sua interioridade. Como em Dogville, é necessário escavar na profundeza do humano a forma como Deus se comunica hoje com cada um.

IHU On-Line – Qual é a atualidade dessa crítica para a nossa sociedade?

Fransmar Barreira Costa Lima – Vivemos uma sociedade desgastada, onde cada indivíduo constitui a parte de um todo sem reconhecer-se como indivíduo. Estamos sofrendo a inferência de séculos de verdades estabelecidas, não refletidas por cada um em sua interioridade. As pessoas de nossa época se acostumaram, geralmente, a acreditar simplesmente por acreditar. E este é um fenômeno bastante grave se compreendermos que há uma aniquilação do indivíduo em sua vontade e na autenticidade de sua existência. Este fenômeno ganhou força principalmente após o advento do capitalismo e da Revolução Industrial.
Por exemplo, a educação de nossa época é uma educação que torna todos os indivíduos aptos para o mercado de trabalho, mas não os tornam críticos para compreenderem o quanto estão robotizados e integrados à linha de produção econômica, política, social. Perdemos a habilidade “artística” – salvas exceções – de expressar nossa vontade pelo simples fato de expressar nossa vontade; hoje escrevemos livros, músicas, poesias, produzimos obras de arte pensando de antemão no lucro e na repercussão gerada na mídia e não pela significação expressiva que um artista comunica a partir de sua interioridade. Basta observar quanto tempo gastamos em livrarias para encontrar um bom título, sem recorrer a motivações repetitivas que tratam do sucesso profissional e fórmulas mágicas de como se tornar um grande empreendedor. Chega a ser uma contradição a quantidade de segredos revelados em publicações; se há um segredo, certamente ele não se encontra num livro com tiragem de milhares de exemplares. É necessário desconstruir estas concepções sociais para que o indivíduo se reconstrua. Realmente nossa capacidade criativa, humana, está desumanizada.
 
IHU On-Line – Nesse sentido, a sociedade pós-moderna está repleta de “cidades do sistema”, “cidades do cão”? Por quê?

Fransmar Barreira Costa Lima – Talvez. Mas se lembrarmos que o único autêntico em Dogville era o cão, há de se pensar duas vezes. Pois até mesmo nossos animais perderam sua capacidade instintiva, natural, tão condicionados estão aos hábitos que lhes foram impostos. Nossas cidades, principalmente as grandes metrópoles, sugerem uma veemente contenção da natureza humana, que é impossível dizer hoje qual é, tão desacostumados em relação a ela. Seguimos uma rotina de trabalho tão alucinante que a frase mais ouvida quando se convida alguém para refletir sobre o humano a resposta é geralmente: não tenho tempo!
Mas encontramos tempo para toda a diversão e lazer amplamente divulgados pela mídia. Faça a experiência: Convite um grupo de jovens e adolescentes para formar um grupo de estudos e discussões e observe a aceitação. Convide o mesmo grupo para uma “baladinha”, um show de um grupo famoso em um grande estádio ou um “churrasco open-bar”, e você verá qual significado existencial tem maior importância para o homem contemporâneo. Será autêntico? Não estarão nossos valores sociais e culturais descomprometidos com nossa interioridade ?

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