Edição 339 | 16 Agosto 2010

Kierkegaard e Dogville: a desumanização do humano

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Márcia Junges

A capacidade criativa humana está desumanizada, constata o filósofo Fransmar Barreira Costa Lima, ao analisar o filme Dogville, de Lars von Trier. A cidade fictícia metaforiza as grandes metrópoles, onde a natureza humana está contida e desaprendida

Uma análise do filme Dogville, do cineasta Lars von Trier, a partir da filosofia de Søren Kierkegaard. Esse é o tema do artigo escrito por Fransmar Barreira Costa Lima publicado na coletânea Kierkegaard no nosso tempo (São Leopoldo: Nova Harmonia, 2010) e organizado por Álvaro Valls e Jasson da Silva Martins. De acordo com Fransmar, o cinema de von Trier descaracteriza o cinema cosmetizado, procurando resgatar o cinema estético e mais significativo. Metáfora para as grandes metrópoles, Dogville sugere “uma veemente contenção da natureza humana, que é impossível dizer hoje qual é, tão desacostumados estamos em relação a ela”. Nossa sociedade está desgastada, “cada indivíduo constitui a parte de um todo sem reconhecer-se como indivíduo”. E completa: “nossa capacidade criativa, humana, está desumanizada”. Para ele, a grande questão de Kierkegaard no entendimento sobre o ser humano é: “Por que não podemos ser quem verdadeiramente somos? Por que simulamos ser alguma coisa que não queremos ser?” As afirmações podem ser conferidas na íntegra na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Fransmar cursou mestrado em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma universidade. Participou, entre outras, das obras Søren Kierkegaard no Brasil – Festschrift em homenagem a Álvaro Valls (Sergipe: Idéia, 2007) e Kierkegaard no nosso tempo (São Leopoldo: Nova Harmonia, 2010). Leciona no curso de Educação e Ética para uma Cultura de Paz, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB – realizado em convênio com a diocese de Floresta (PE).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido há “aproximações gritantes” entre Kierkegaard  com Schopenhauer , Nietzsche  e Feuerbach ?

Fransmar Barreira Costa Lima – Primeiramente, o próprio contexto histórico onde os quatro se inserem. O grande pensador do século XIX é Hegel  e, em uma época de profundas mudanças, como a Revolução Industrial, o desenvolvimento do capitalismo, o anúncio das evoluções científicas e tecnológicas, o pensamento hegeliano assume um papel crucial na filosofia, principalmente com a pretensão de se “elevar a filosofia à condição de ciência”, afirmação feita no prefácio da Fenomenologia do Espírito. A partir da elaboração das lógicas e tratados hegelianos, a verdade filosófica adquire uma característica bastante sistemática, no sentido de que o método científico é um método sistemático de produção. Neste sentido, Kierkegaard e Nietzsche se aproximam com veemência em contraposição ao sistema de pensamento estabelecido por Hegel, o que pode ser observado na própria estrutura dos escritos de ambos. Kierkegaard lança mão de pseudônimos que normalmente estabelecem um diálogo entre si, às vezes publicando vários livros no mesmo ano, que tratam de diferentes questões. Por exemplo, Temor e Tremor e A Repetição, em 1843 (assinados por pseudônimos), acompanhados de Dois Discursos Edificantes, os quais ele mesmo assina.  Nietzsche começa a escrever a partir de aforismos, onde as metáforas permitem ao leitor uma liberdade de pensamento que não é controlada por nenhuma condição sistemática. O que existe nos escritos de Kierkegaard e Nietzsche é uma estrutura bem definida, mas não podemos afirmar que ali se aplique um sistema de pensamento. Feuerbach se aproxima de Kierkegaard e Nietzsche a partir da crítica ao sistema religioso. Aluno de Hegel em Berlim, influenciará Marx  posteriormente na questão da alienação. Vale lembrar que Kierkegaard e Nietzsche também fazem severas críticas ao que chamam de cristandade ou, a forma como um “senso comum”, desprovido de conhecimento efetivo, abraça o cristianismo, sem o compromisso ou a responsabilidade que implica afirmar “sou cristão”. Essa postura é alienante e não implica em nenhum valor de verdade.
Por outro lado, tal alienação se aproxima do conceito de representação que surge em Schopenhauer, que (salvo engano) chegou a ministrar aulas na mesma época que Hegel em Berlim. Nietzsche declara abertamente sua admiração por Schopenhauer, publicando inclusive um texto que reflete sua postura como educador nas Meditações intempestivas e Kierkegaard dedicou bom tempo em seus últimos anos de vida à leitura de Schopenhauer; faz até uma brincadeira com as iniciais de ambos em seus diários – A.S, Arthur Schopenhauer e S.A, Søren Aabye – apontando como ambos são próximos.
Neste sentido, três fatores aproximam estes pensadores: as grandes transformações históricas do século XIX, o pensamento de Hegel e as relações que o indivíduo estabelece com o cristianismo ou a cristandade, tendo em vista que estes termos não são sinônimos.

IHU On-Line – Por que afirma que Kierkegaard e sua filosofia estão próximas ao cinema?

Fransmar Barreira Costa Lima – É interessante observar que a primeira projeção cinematográfica, realizada pelos irmãos Lumiére , ocorreu em 1895, enquanto Kierkegaard morre em 1855, ou seja, o filósofo dinamarquês nunca presenciou uma projeção de cinema. Mas certamente gostaria. Edison Petenussi, um filósofo e fotógrafo paulista com quem tenho o prazer de disparar uns “cliques” esporadicamente, afirma em sua dissertação de mestrado que a fotografia é a manifestação artística capaz de fixar, tornar estático um momento inigualável a partir do olhar único de alguém que se sensibiliza ou emociona com aquela imagem única e irreprodutível. É claro que ele fala da fotografia enquanto arte. Os Lumiére eram filhos de um fotógrafo e o cinema é a fotografia em movimento, produzida para sensibilizar o observador de maneira que este perceba um universo que se esconde a partir do olhar de outrem.  Ora, para Kierkegaard a grande, concepção de verdade que existe no homem provém de um instante capaz de tornar-se absoluto, ou seja, um indivíduo só o é quando é um indivíduo singular. É o olhar singular do indivíduo que lhe permite uma sensibilidade ímpar sobre situações – fictícias ou plausíveis – onde possa posicionar-se existencialmente, decidir. No post-scriptum, Kierkegaard afirma que a subjetividade é essencialmente paixão pelo infinito e decisão. O cinema concebido artisticamente exige ambos, um olhar singular e a decisão, o posicionar-se de maneira reflexiva sobre a situação que se apresenta. É este posicionamento que leva à reflexão que me interessa quando penso em uma aproximação de Kierkegaard com o cinema.

IHU On-Line – Lars von Trier  aponta a “cosmetização da arte” do cinema através da técnica. A partir disso, podemos compreender Dogville  e a filosofia de Kierkegaard enquanto expressões de interiorização da verdade?

Fransmar Barreira Costa Lima – Esta “cosmetização da arte” é responsabilidade minha, ou culpa. Entendo que seja uma forma muito particular de ver arte e pode ser debatida, acredito que nem todos concordem com isto. Mas não se trata da verdadeira expressão da arte, e sim de uma pseudomanifestação artística, muito em voga nos dias atuais.
Quando utilizo este termo é para propor uma contraposição entre os termos gregos aesthese e cosmo, que dão origem às nossas palavras “estética” e “cosmética”.  Por estética entendemos a percepção do belo, enquanto que a “cosmética” implica em certa organização, uma ordem estabelecida para que algo se apresente como tal. O cinema contemporâneo pode ser identificado como aquele que produz ordenadamente uma sensação de beleza, que abusa dos efeitos especiais e da tecnologia, com vistas a uma sensação de beleza que transparece não um significado ou uma leitura do indivíduo, mas praticamente impõe a leitura que deve ser feita. É o que caracterizamos normalmente como cinema de entretenimento ou cinema comercial. O que vejo em Lars von Trier é justamente um trabalho de descaracterização deste cinema cosmetizado ou, a tentativa de um resgate do cinema estético, significativo. Principalmente durante o Dogma 95, movimento que Lars von Trier encabeça e que rejeita qualquer interface cinematográfica de uma produção elaborada.
O cinema enquanto arte manifesta-se por si só a partir do olhar de um indivíduo singular, este olhar expressa sua sensibilidade. Kierkegaard entendia a verdade como interioridade e a sensibilidade de um diretor são provenientes de sua interioridade e subjetividade. Veja Bergman , Almodóvar  ou Tornatore . Ninguém pode dizer que Cinema Paradiso  é um filme cosmético. Existe sim um aparato técnico para a elaboração do filme, mas não é a técnica que conta: é a verdade significativa no olhar do diretor, a sensibilidade como interioridade que sustenta a obra como um todo. O indivíduo que assiste a uma obra como esta transfere para sua subjetividade a leitura e a decisão de se posicionar ao lado desta ou daquela personagem. Ele não é mais um expectador, pois a percepção estética está entranhada nele; ele é um inspectador. É na subjetividade que se desdobra a emoção do indivíduo que observa o cinema como arte. O conceito de inspectador, inclusive, surgiu enquanto debatíamos, eu e Jorge Miranda de Almeida , a questão do cinema na educação, em um congresso do Museu Pedagógico, da UESB, em Vitória da Conquista. Acredito que o inspectador é o indivíduo singular, existente enquanto existente – para usarmos as palavras de Kierkegaard – que concebe a arte em sua interioridade e se decide pela verdade como expressão de sua humanidade.

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