Edição 374 | 26 Setembro 2011

Será a humanidade absorvida pelo mundo dos objetos, hoje virtuais? Uma pergunta que não cala

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Márcia Junges

"Vaz foi dos primeiros a fazer a metacrítica teórica à razão instrumental, aceitando soberanamente o rótulo de se ter tornado reacionário. O que nunca foi", assevera Marcelo Fernandes de Aquino

"Entre os séculos XVII e XIX d.C., o agora do ato de filosofar – sua modernidade – não se eleva mais a um fundamento transmundano e transtemporal para assegurar as pretensões de seus métodos. A razão calculadora reorganiza os traços comuns do sistema simbólico, ou sistema das razões, da civilização que se colocara sob a regência do logos filosófico greco-cristão. Lima Vaz o denomina, inicialmente, idade pós-sacral, cultura pós-teísta, em seguida modernidade pós-moderna, fixando-se finalmente em modernidade pós-cristã", afirma Marcelo Fernandes de Aquino, professor e pesquisador do PPG em Filosofia da Unisinos e reitor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.

O Prof. Dr. Pe. Marcelo Fernandes de Aquino é pós-doutor em Filosofia pelo Boston College, Estados Unidos. Especialista em Hegel, fez doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde também obteve dois títulos de mestre, em Teologia e em Filosofia. Realizou graduação em Filosofia na Pontifícia Faculdade Aloisianum, Itália, e especialização em Filosofia na Hoschschule für Philosophie, em Munique, Alemanha. Foi reitor do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, MG. É autor de O conceito de religião em Hegel (São Paulo: Loyola, 1989).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Poderia explicar em que consiste a tríade que compõe o sistema vaziano: Antropologia, Ética e Metafísica? Quais são as relações que se estabelecem entre esses aspectos?

Marcelo Fernandes de Aquino - Antes de tudo, é preciso esclarecer a significação da ideia de sistema no pensamento de Lima Vaz. Segundo ele, o termo sistema é a transliteração do grego sýstema, proveniente do verbo synistánai, synistemí, que significa “estar de pé” ou “estou de pé”. Da acepção metafórica inicial aplicada a significar “conjunto” ou “reunião”, o termo sýstema foi empregado para designar o discurso (logos) cujas partes se interrelacionam por meio de conexões lógicas de sorte a formar um todo ordenado segundo critérios de natureza lógica. Melhor, significa um todo ordenado linguisticamente segundo critérios de natureza lógica cujas partes se interrelacionam por meio de conexões lógicas.
Para Vaz, a ideia de sistema é uma das raízes da civilização que ao longo de 26 séculos coloca a razão demonstrativa no centro do seu universo simbólico. Esse construto especulativo propõe-se pensar a liberdade ou unir dialeticamente liberdade e razão. Nele a liberdade não é exterior à razão. É intrínseca ao movimento de sua autoconstituição, ou, antes, é essa autoconstituição mesma. O desafio maior inerente à ideia de sistema é o de pensar a liberdade no próprio coração da necessidade racional que preside a construção do sistema das razões universais, e instaurar, assim, uma ordem translúcida às razões individuais numa história enfim sensata.

O problema das relações entre Sistema e Liberdade, para Vaz, configura uma opção intelectual básica cujas repercussões marcam profunda e decisivamente a história espiritual do ocidente. Se a razão demonstrativa é, por essência, sistemática, e se o sistema postula uma homologia com a realidade, onde situar a liberdade no interior do sistema? Essa é uma questão decisiva que, segundo ele, de Platão a Hegel, impele o desenvolvimento da ideia de sistema na filosofia ocidental.

Antropologia, Ética e Metafísica são dimensões fundamentais do discurso filosófico do todo. Essa ordem da exposição sinótica proposta por Vaz reflete a seriação cronológica do aparecimento dos livros Antropologia Filosófica, Introdução à Ética Filosófica e Raízes da Modernidade profundamente imbricada com as vicissitudes pessoais e as contingências históricas do existir individual de Lima Vaz. Não creio que esta ordem exponha o entrelaçamento do tempo histórico e do tempo lógico que tecem a trama da história da filosofia como intrínseca ao próprio ato de filosofar em favor da qual ele tanto se empenhou, nas aulas, nas conferências, nos escritos e nas conversas ao longo de sua fecunda atividade filosófica.

O leitor atento saberá matizar a eventual aproximação com a doutrina hegeliana dos três silogismos apresentada como fecho da exposição do Espírito Absoluto na Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Antes de tudo, seria o caso de aproximar Antropologia e Ética para entender o desenho e a envergadura especulativa da eventual doutrina vaziana do Espírito, nas vertentes subjetiva e objetiva. Pari passo, reconstruir a Filosofia da Natureza que Lima Vaz deixou nas notas e apostilas de cursos que deu em diferentes ocasiões e instituições.
Lembro que ele foi aluno e privou de intensa proximidade intelectual do Pe. Roser, fundador do Instituto de Física da PUC-Rio. Creio ter sido uma pena ele não ter dado continuidade à sua aproximação das categorias da mecânica da relatividade, pois ele teria feito com ela, o que Kant logrou fazer com as categorias da mecânica newtoniana.

IHU On-Line - De que forma a obra filosófica de Pe. relê criticamente a modernidade, diagnosticando sua crise?

Marcelo Fernandes de Aquino - Para Lima Vaz, a história intelectual da razão ideonômica que se desdobra de Platão a Hegel segue o curso das vicissitudes histórico-teóricas da noção de Ser na sua procedência aristotélica, passando pela inflexão henológica de Plotino , pela interpretação da especulação árabe, sobretudo aviceniana, pela recepção e evolução no pensamento latino-medieval desde as primeiras indicações de Boécio  até seu apogeu metafísico no século XIII com Tomás de Aquino, pela inflexão desencadeada por Duns Scotus, pela sistematização suareziana do século XVI e sua posteridade na ontologia moderna de matiz cartesiano.

O significado desse curso histórico-conceitual é a passagem da concepção polissêmica ou analógica da noção de Ser da tradição aristotélico-tomásica para a concepção monossêmica ou unívoca de Ser da tradição escotisto-suaresiana. Duns Scotus , Guilherme de Ockham  e Francisco Suarez  anunciam outro ciclo de modernidade que eclode, grosso modo, com Descartes . Kant e Hegel o levam a sua completude. Feuerbach , Marx, Nietzsche, Freud  são seus construtores maiores.

Como consequência dessa transformação da razão ideonômica em razão hipotético-dedutiva, esta história intelectual acompanha a rota da reformulação da metafísica em sistema, segundo a acepção deste termo consagrado na epistéme moderna. Essa transformação assinala o abandono da concepção da metafísica como ciência estruturalmente aberta no seu procedimento mais elevado como ciência do Absoluto ou theologia, para a concepção da metafísica como sistema fechado, de natureza axiomático-dedutiva, regido pelos princípios de causalidade e razão suficiente e pela noção unívoca de ser.
Entre os séculos XVII e XIX d.C., o agora do ato de filosofar – sua modernidade – não se eleva mais a um fundamento transmundano e transtemporal para assegurar as pretensões de seus métodos. A razão calculadora reorganiza os traços comuns do sistema simbólico, ou sistema das razões, da civilização que se colocara sob a regência do logos filosófico greco-cristão. Lima Vaz o denomina, inicialmente, idade pós-sacral, cultura pós-teísta, em seguida modernidade pós-moderna, fixando-se finalmente em modernidade pós-cristã.
O pensamento do mundo e do tempo, nos sucessivos ciclos da modernidade pós-cristã, passa a ser acompanhado pela intenção de efetivo e definitivo instalar-se no próprio tempo. A História passa a ser o primum ontologicum na fundamentação das razões da filosofia, o agora do ato de filosofar. As linhas fundamentais da representação do mundo e do tempo passam a ter outro traçado.

IHU On-Line - Qual é o impacto da filosofia de Hegel no pensamento vaziano? Em que aspectos Lima Vaz conserva e supera o hegelianismo?

Marcelo Fernandes de Aquino - Vaz considera a filosofia hegeliana como uma filosofia que pensa a liberdade no próprio coração da necessidade racional que preside à construção do sistema das razões universais e tende a instaurar uma ordem translúcida às razões individuais, numa história enfim sensata. Tenta remodelar – com que resultado? - a estrutura teórica da metafísica tomásica em chave dialética de inspiração hegeliana.
Inicialmente, procede por síntese dialética do simples ao complexo, para então seguir por procedimento analítico do complexo ao simples. A remodelação dialética do método metafísico desenhada por Lima Vaz diz respeito a um caminho do logos através de oposições que se apresentam tanto na ordem real quanto na ordem nocional, que o logos integra numa unidade superior. Oposição significa sempre distinção dos termos que se opõem. Oposição real implica uma distinção real dos seus termos. Oposição nocional implica distinção de razão dos conceitos que se opõem.
O procedimento dialético para Lima Vaz traduz a lógica intrínseca, o dinamismo próprio da inteligibilidade do conteúdo, da qual sua consideração e avaliação são inseparáveis. Não se deixa guiar por rígida necessidade em termos de lógica formal cujo procedimento aplica formas lógicas ao conteúdo que lhe é exterior. O caminho dialético avança através de opções ontológicas, onde razão e liberdade interagem para responder ao desafio das oposições que se manifestam na realidade. A afirmação “alguma coisa é”, segundo ele, constitui o conteúdo inteligível mais elementar do método dialético. Mediante o argumento de retorsão se exprime logicamente pelo princípio de não-contradição, suprassume a oposição mais primitiva que opõe o ser ao nada. Esse é o fundamento a partir do qual se forma a oposição do uno e do múltiplo que sobrelevada na relação de alteridade, dá início ao caminho da metafísica.

A síntese dialética percorrida por Lima Vaz aplica-se primeiramente à esfera do Esse absoluto, em seguida à esfera dos esse relativos. Parte da intuição e afirmação originais do esse e desenvolve as implicações lógico-dialéticas dessa posição inicial. A intuição do esse, no roteiro vaziano, não é uma intuição pura, a priori. Ao termo do percurso, obedecendo a procedimento analítico, retorna ao princípio. Instaura-se uma totalidade de estrutura dialética que realiza a natureza de um sistema aberto, já que seu termo é o reconhecimento de um hiato metafísico infinito, intransponível pelo discurso e que separa a esfera dos esse relativos da esfera do Esse absoluto e com ela a articula pela via da causalidade. Penso que na fase final de sua jornada filosófica, Lima Vaz tornou-se reticente quanto ao projeto hegeliano e, sem dúvida, quanto à própria modernidade pós-cristã.

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