Edição 374 | 26 Setembro 2011

A síntese e a vivência de quatro razões

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Márcia Junges



IHU On-Line – Como era Lima Vaz enquanto intelectual e como ser humano? Que lembranças tem da época em que foi seu orientador?

Marly Carvalho Soares – No percurso biográfico de Lima Vaz, ou seja, de 1921 até 2002 tive o privilégio de participar desta trajetória uns 18 anos de 1984 até a última despedida. Se não tivesse conhecido Lima Vaz a minha vida estaria mais pobre de sentido e de conhecimento, pois enriqueci com a sua vida, tanto humana cristã como a acadêmica. Testemunho universal de todas as pessoas que privaram da sua sabedoria e convivência, seja como sacerdote, seja como formador e professor. Ao ser comunicado do seu falecimento, senti uma dor única e uma lágrima brotou na minha face, e, como de imediato, anunciando que a Filosofia particularmente no Brasil e além fronteiras perdia o seu grande amante, que dedicou anos e anos, renúncias e renúncias, alegrias, tristezas a essa ciência que ele escolheu e amou para chegar à única verdade e ao sentido da vida, que não é uma ideia, mas uma Pessoa: Jesus Cristo. Ele encontrou o vértice da razão, como homem de razão e de fé, ao contrário daquele, ou daqueles, que preferem não mergulharem no mistério que a razão não consegue penetrar até o âmago.

Por que Lima Vaz morreu? Permita-nos expressar com esta pergunta o sentimento de perda que nos acompanhará no exercício do filosofar. Estamos mais pobres. A sua imagem de filósofo não mais nos seguirá com sua orientação e seus escritos originais não mais chegarão às nossas mãos. Porém deixou-nos virtudes, artigos e livros que nos guiarão nesta caminhada em busca do sentido último da vida. Somos gratos ao mestre por suas dádivas, que só os gênios deixam nas pegadas da sua existência. O senhor foi um “indivíduo histórico”, para usar uma expressão hegeliana, que soube perscrutar a história sem desfalecer diante das irracionalidades que ora campeiam os rumos da nossa civilização invadida por uma onda de violência e de ceticismo.
Lima Vaz era um amante da filosofia, e com que rigor intelectual ele defendia esta ciência, investigando e provando que é impossível a não existência e o não uso da filosofia. O interesse pela filosofia era notável. Esta aventura se materializou na sua docência, na sua pesquisa e produção bibliográfica e na sua extensão universitária. No percurso filosófico Lima Vaz se situou nos três planos da originalidade filosófica, a saber: o da constituição de perspectivas; o da formulação de sistemas e, finalmente, o da consideração dos problemas. Esta postura e habilidade foram reconhecidas pelas gerações anteriores no contexto do cenário filosófico brasileiro, ao comentar a sua vida e o seu filosofar. De tal maneira que ao ler os seus escritos que são tantos, somos conduzidos por um procedimento dialético de perguntas e respostas que vão crescendo para além dos seus textos e nos coloca em diálogo com todo o universo filosófico.

Como orientanda e amiga tive a felicidade de dialogar com alguém que era capaz de descer da montanha do saber e das virtudes e brincar nas planícies com os iniciantes que também desejam trilhar o caminho não só da filosofia, mas também da sabedoria. Com que espírito de partilha e ajuda colocava à nossa disposição os seus manuscritos e, ainda mais a grande biblioteca do antigo ISI – hoje FAJE. Depois da orientação era convidada a ir ao refeitório e apreciar os jardins, que estavam na sua memória e ele me falava: “Belo Horizonte antigamente era um Jardim e hoje... Aqui é o lugar para se estudar. Rio e São Paulo têm muitas diversões e Porto Alegre fica isolado do resto do Brasil”. Passei três anos convivendo bem de perto e, no dia da defesa da dissertação, para admiração de todos, foi até onde eu morava – Instituto Santa Teresa, participar dos festejos comemorativos – coisa que não era mais habitual na sua vida. Depois desse momento fecundo continuei partilhando com ele as minhas aspirações acadêmicas e filosóficas e recebendo suas orientações através de cartas e telefonemas. E quantas vezes no frio tremendo da Europa, motivada pelas suas lições e sentimentos, quando batia o cansaço, ele me falava: espere o sol chegar, que certamente será mais forte do que no Nordeste e virá novamente a alegria... Com o passar do tempo e, ele já doente, era sempre uma alegria poder visitá-lo e contar as nossas histórias. Obrigada, Lima Vaz.

IHU On-Line – O que é a Rede de Estudos Vazianos? Pode contextualizar seu surgimento e atividades?

Marly Carvalho Soares – A pesquisa filosófica de Lima Vaz já estava consolidada no Brasil e no exterior. Seu nome e a análise de sua obra têm lugar assegurado nas publicações nacionais e internacionais dedicadas à filosofia. Esta certeza é comprovada pela imensa bibliografia de livros, artigos, teses, dissertações, eventos, grupos e projetos que se acrescentam a cada dia a seu pensamento. Após a sua morte inesperada (2002), várias iniciativas e atividades surgiram em busca de tornar mais conhecido esse cabedal de conhecimentos, essa vasta cultura científica e humanista que talvez ainda se restringisse à academia e à Igreja. Hoje, através desta Rede de Estudos Vazianos, aproveitando da tecnologia, fruto da modernidade, que ele tanto refletiu e exaltou, a sua riqueza filosófica, o seu testemunho de intelectual cristão invade o espaço histórico e avança para o além, onde fé e razão se encontram na mesma onda planetária. Por exemplo, temos como estratégia para tecer o seu pensar filosófico, os sítios eletrônicos. Cabe a nós alimentarmos este Memorial Padre Vaz com o objetivo ainda de explicitar o implícito que se mantém oculto e que só mentes brilhantes pelo seu rigor metodológico e filosófico poderão desvendar essa riqueza da civilização ocidental. Temos o compromisso ético de configurar a matriz filosófica do seu pensamento, as categorias fundantes da sua reflexão e descobrir qual é a preocupação que permeia a sua criação filosófica. Temos ainda a tarefa de fazer frutificar a razão filosófica muitas vezes sacudida nos seus próprios fundamentos pela onda de violência, que é exatamente a recusa da racionalidade. Os sítios têm como objetivo tornar conhecido todo o material elaborado por Lima Vaz e, a partir dele, o cabedal de conhecimento de toda tradição filosófica. Parabéns a àqueles que tiveram essa bela iniciativa.

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