Edição 374 | 26 Setembro 2011

A síntese e a vivência de quatro razões

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges



Aporia não resolvida

Essa complexidade filosófica de Kant, como foi posta anteriormente, influencia o pensamento de Lima Vaz na elaboração das suas obras: Antropologia filosófica I e II, quando tenta novamente tecer o espaço conceptual no qual se inscreve o ser homem através das seguintes coordenadas: conceito de estrutura, conceito de relação, conceito de unidade. Essas coordenadas se interligam e se formam seguindo um movimento dialético que parte da ordem do dado para a ordem do conceito. De tal maneira que cada coordenada é demonstrada na sua tríplice inteligibilidade formando, assim, um todo coerente e sistemático. Daí que, partindo da estrutura do ser homem (corpo, mente e espírito) mediatizada pelas relações (objetividade, intersubjetividade e transcendência), chegaremos a uma visão unitária do ser humano (categoria da realização e categoria da Pessoa). Essa ideia unitária do ser humano é construída pela ideia de Pessoa como um Todo aberto à transcendência. Daí se conclui que a ciência do indivíduo-homem é subordinada à filosofia do homem-espiritual e, mais tarde, da filosofia da pessoa. Essa, por sua vez, é constituída no campo analógico que a orienta para o equilíbrio teológico – que ultrapassa os limites do conhecimento científico. Com efeito, como quer que seja a pessoa é sempre referida à interioridade espiritual, o indivíduo à exterioridade corporal.
A ideia de sujeito na filosofia moderna pretende resgatar da contingência e do destino de um lado, e de outro, elevá-lo à dignidade de causa e razão da própria existência do seu ser racional – sujeito. Porém Kant, segundo Lima Vaz, não resolveu essa aporia entre o empírico e o racional, o natural e o transcendental. O âmago dessa aporia é ter colocado o sujeito como causa sui, suprimindo qualquer comunidade analógica com o Absoluto transcendente, colocando sobre a pessoa humana o enorme peso ontológico de ser a criadora de si mesma e de seu mundo de verdade e de bem, dos valores e dos fins.
Esse é o destino problemático da pessoa no horizonte da pós-modernidade. A pós-modernidade proclama, pois, a dissolução dos princípios fundadores e ordenadores desses discursos, tanto os transcendentes como Deus e as nações “transcendentais” da tradição clássica, como os imanentes, como o sujeito e sua atividade a priori na filosofia moderna. Deu-se, portanto “a morte do homem”. É inacreditável que, no momento em que a modernidade eleva a pessoa humana como fonte de valor e direitos, a pós-modernidade empreende essa multiforme desconstrução da ideia de homem.
A categoria da pessoa, elaborada por Lima Vaz não somente mostra o homem aberto à universalidade do ser, a partir da particularidade da sua atuação corporal no aqui e agora do mundo, mas mostra-se como o lugar na concretude da sua singularidade onde se entrelaçam as linhas que procedem de todas as regiões do ser: do sensível e do inteligível, do contingente e do necessário, do possível e do atual, do relativo e do absoluto e, finalmente, do universo e de Deus. A unidade dos opostos é assim, ao mesmo tempo, a marca da finitude e a comprovação de que nela se realiza a perfeição mais alta do universo.

Vencer os dualismos kantianos

Para tal reflexão e procedimento a respeito da ideia do homem, Lima Vaz lança mão da seguinte metodologia, que compreende os passos: a pré-compreensão própria da experiência natural – o pré-texto; a compreensão explicativa; o mundo dos múltiplos aspectos do fenômeno humano – ciência e a compreensão filosófica que supera todos os campos particulares e apresenta a compreensão sistemática do homem em vista da constituição de uma ontologia do ser humano capaz de responder ao problema clássico da essência: O que é o homem?
A filosofia contemporânea que podemos registrar dos tempos pós-kantianos aos nossos dias, ou seja, do século XIX e XX é fecundada por uma razão teórica tanto na sua vertente idealista como na sua vertente positivista, como também por uma razão histórica. Essa conjuntura também é invadida pelos problemas ou de questões sobre o próprio estatuto da filosofia, sobre sua razão de ser. Nesse contexto surge toda uma produção intelectual – denominada idealismo alemão, só comparado com a Grécia de Platão a Aristóteles. Os representantes dessa época tiveram um gigantesco esforço em organizar um sistema para vencer os dualismos kantianos, partindo da obra de Johann Gottlieb Fichte , avançando em novas direções com a obra de Friedrich Wilhelm Joseph Schelling  e atingindo finalmente seu ápice e seu termo com a obra de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Essas filosofias são caracterizadas como filosofias da liberdade, que tentam reatar a tradição dos grandes sistemas da filosofia clássica. Mas é em Hegel que essa tentativa de articular o Todo alcança uma adequada expressão conceptual quando articula sistematicamente os momentos do Lógico, da Natureza e do Espírito num clima filosófico marcado pela primazia da subjetividade sobre o Ser. Cada momento desses é movimentado numa tríplice dialética, que comporta tantas outras oposições e unidades na reconstituição da Razão como unidade na multiplicidade. Esse roteiro é alicerçado no terreno do inteligível, no caminho dialético que permite superar ou suprassumir as oposições.

Em Hegel, Lima Vaz identifica tanto a validade e o uso do procedimento dialético como o renascer de um novo paradigma no pensamento ocidental, considerando-o, por isso mesmo, um clássico inaugural, na medida em que algumas de suas ideias fundamentais passam a presidir ao desenvolvimento da filosofia já desde o final do século XIX como a ideia de sistema, um todo articulado na existência de oposições, o pensar dialético-especulativo no sentido que a forma não se separa do conteúdo, formando a cada momento um novo silogismo, que supere as oposições, em busca da compreensão do Todo, pois o Todo segundo Hegel é o verdadeiro. O movimento dialético tem seu termo último numa ideia última que integra todos os momentos. Lima Vaz põe em evidência essa nova concepção de racionalidade nos temas que marcaram seus escritos mais recentes: o ser humano, a ética, o mundo, a história, a cultura e a transcendência. Nessa forma são elaborados também os escritos da Antropologia filosófica e Introdução à ética filosófica II, que podem ser denominadas, como o próprio Lima Vaz reconhece, “Ontologia da pessoa humana” e “Ontologia do agir humano”, em que exatamente ele afirma que “o ser e o agir em nós, sendo por essência finitos, estão implicados numa presença do infinito que se manifesta em diferentes formas”. Portanto, a oposição finito/infinito é constitutiva do ser humano e de seu agir. Na dialética do ser, o sujeito é orientado para o Absoluto e na dialética do agir, o infinito já está presente no ponto de partida como norma primeira do agir sob a razão transcendental do Bem. Daí que a síntese das categorias do discurso que envolve estruturas e relações da antropologia filosófica é a pessoa humana (ser finito) e abertura à transcendência, e começa o novo movimento que é a orientação para o Bem – que se constitui como pessoa moral. É a dialética que permite reconstituir esses dois caminhos do logos, para a Pessoa e para o Bem.

Consciência histórica

A influência hegeliana ainda é considerada por Lima Vaz em muitos outros aspectos. Quando na sua palestra sobre os 150 anos da morte de Hegel intitulada Por que ler Hegel hoje? ele exalta o Hegel da consciência histórica na obra Fenomenologia do espírito e a interpretação filosófica da história no texto das Linhas fundamentais para uma filosofia do direito, quando Hegel nos oferece ainda os conceitos e as regras para uma leitura filosófica daquela história que hoje vivemos e, que já no seu tempo, começara a manifestar os traços de uma história efetivamente universal. A grande dificuldade ontem e hoje é decifrar a complexa escritura da história real que se escrevia sob os seus olhos e, mais ainda, o problema da relação entre verdade e história e o problema da situação do homem no mundo histórico, superando assim a proposta do historicismo gnoseológico que reduz a verdade da história ao evento observável e contingente e, por outro lado, o historicismo antropológico que reduz a verdade ao homem como ator de toda significação que se descobre na história.

Para Hegel, não é a verdade que é histórica, mas a história que é verdadeira, isto é, a história seria norteada por uma diretriz que estrutura a história e nos permite decifrar um sentido presente na sucessão temporal do curso histórico, um sentido que não pode ser pensado senão como verdade da própria história e que nela e por ela manifesta. O tempo não é o outro do conceito, mas é o conceito no seu ser-outro, na sua exterioridade, o que torna possível a sucessão temporal como história verdadeira. A história é, pois, progresso, esse progresso se exprime em níveis de consciência e o objeto dessa consciência é a liberdade. Daí se deduz três palavras fundamentais na articulação: consciência, liberdade e progresso. A história é o progresso na consciência da liberdade. O tempo histórico é, aqui, o lugar da manifestação sempre mais nítida de um sentido que não pode ser pensado senão como manifestação da ideia que torna pensável a historicidade humana, a ideia do reconhecimento entre os homens, do consenso racional em torno da obra comum. A violência, como forma da irracionalidade que se opõe à efetivação da liberdade, é negada, nessa perspectiva.
A partir de Hegel a consciência moderna assumirá o sentido e uso da nova forma da “consciência histórica”, cujo sentido emerge de uma aguda compreensão da subjetividade como radical transcendência sobre a ordem natural do mundo e como liberdade empenhada num destino histórico. Entende-se, portanto, subjetividade como a interioridade da consciência diante da exterioridade do mundo e que se revela exatamente como sujeito das significações e valores pelos quais o homem compreende o mundo. Essa nova modalidade da consciência liberta a subjetividade das correntes estáticas do cosmos antigo e eleva ao plano das significações profundas, da visão cristã. De tal maneira que a razão que contempla é a razão que constrói e é a razão que salva. Essa síntese constitui a subjetividade cristã que não é simples reflexo de uma harmonia natural. É a interioridade propriamente espiritual da imagem de Deus, de sua relação dialógica e dramática com esse Deus, que constitui a trama da história santa, da sucessão dos seus eventos, da sua tensão voltada para o desfecho e o julgamento do fim dos tempos. Essa superação do homem em relação à natureza manifestada através de tantas formas de culturas possibilitou radicalizar que o homem é eterna transcendência, uma aventura para o Absoluto onde a significação da relação entre o “tempo do mundo” e o “tempo do homem” escapa dos projetos históricos do próprio homem. O universo se descobre, pouco a pouco, a partir da experiência histórica do “encontro com Deus”. A história é crescimento para uma plenitude tecida por um sentido de uma ação que cria uma nova história de chamado e de dom que se concretiza na existência histórica que se dá no Encontro e na Revelação de Jesus de Nazaré.

A consciência histórica dos tempos modernos nasceu da exaltação da subjetividade como matriz do projeto de “humanização” da natureza construída pela ciência e pela técnica e a consciência cristã nasceu de uma confirmação da subjetividade criadora como liberdade ética. A história é o chão da salvação e da perda.

IHU On-Line – Como se situa a filosofia de Lima Vaz dentro do panorama brasileiro e internacional?

Marly Carvalho Soares – Sabemos que Lima Vaz constitui um dos mais significativos representantes do pensamento humanista contemporâneo no Brasil. Esse testemunho provém de uma geração madura de intelectuais nacionais e internacionais, como também de geração de jovens que passaram por sua orientação em centenas de dissertações e teses dialogando com os seus textos e com os seus discursos. De modo que o seu nome e a sua obra são indispensáveis na literatura filosófica de antes, de agora e do futuro.
Na importância da sua filosofia ao longo das nossas leituras gostaria de registrar três aspectos. O primeiro seria o interesse e o exercício pela razão filosófica na sua história como na sua sistemática desde as grandes tradições e tendências da filosofia ocidental. Entre essas culminâncias do pensamento humano, merecem destaque Platão na Antiguidade, Tomás de Aquino, na Idade Média e Hegel, na era moderna. Dominar esse contexto filosófico é uma das tarefas mais desafiadoras do passado e do presente. O segundo aspecto é ter trilhado o caminho hegeliano no seu método, na sua sistematicidade, nas suas categorias e a partir desse contexto abrir novas perspectivas para o filosofar e o existir humano. Pensar vazianamente é pensar Hegel, e pensar Hegel é pensar dialeticamente. Tal verdade se deve e se confirma nos seus leitores e amigos – como bem afirma Paulo Meneses : “Creio que Henrique Vaz é o melhor intérprete de Hegel que já houve no Brasil e nas Américas. E ainda posso relatar a minha própria experiência nos espaços europeus, quando ouvi o mesmo reconhecimento de Peter Henrici  – decano de filosofia da Universidade Gregoriana: ‘o estudo de Vaz é sério e digno de confiança’”. O terceiro aspecto é ter exaltado a modernidade como a condição de possibilidade da formação de uma consciência histórica e, consequentemente, do emergir da consciência cristã onde se manifesta não só o sentido da vida humana, mas a própria vida do Absoluto.
O seu pensamento filosófico é acolhido e investigado por centenas de pessoas convencidas da grandeza de sua reflexão, do rigor dos seus métodos e das inúmeras perguntas envolvidas nas suas temáticas nessa exposição do encontro da matéria com o Absoluto.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição