Edição 371 | 29 Agosto 2011

A heurística do temor e o despertar da responsabilidade

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges



IHU On-Line – Em que aspectos é possível aproximar a ética da responsabilidade de Jonas e a ética da amizade, de Nietzsche?

Jelson Roberto de Oliveira – Apenas num ponto de vista generalista: ambos os conceitos e autores servem de crítica à modernidade e aos grandes valores éticos da modernidade. Nietzsche criticou Kant pela via da crítica a Schopenhauer  no que tange ao seu projeto crítico que, segundo o filósofo de Sils Maria, acabou deixando entrar pela porta dos fundos aquilo que tentara expulsar pela porta da frente: ou seja, ao tentar criticar a razão metafísica, reconhecendo seu limite no que tange ao conhecimento de uma verdade última do mundo, Kant acabou, segundo Nietzsche , colocando-se num lugar seguro e inquestionável. Jonas também critica os limites da ética kantiana, mas obviamente por outros motivos. Isso posto, é preciso reconhecer que, no que tange a Kant, Nietzsche e Jonas estão em lugares infinitamente distantes quanto aos motivos dessa crítica. Mesmo assim, ambos elaboram sua filosofia como uma crítica às éticas tradicionais e também como crítica ao modelo de racionalidade eleito como paradigma no Ocidente. Ambos são grandes críticos dos ideais modernos.

IHU On-Line – Poderia contextualizar a compreensão do conceito de vida por Hans Jonas?

Jelson Roberto de Oliveira – A questão da vida é central no pensamento de Hans Jonas, seja em termos absolutos seja quando pensamos no fundamento da sua ética da responsabilidade. Esse problema remete à sua obra Princípio Vida e se relaciona diretamente ao problema da relação entre necessidade e liberdade. Se a tradição moderna ligou a primeira à natureza e a segunda apenas ao reino da racionalidade, Jonas, como resultado de suas pesquisas em torno de uma filosofia da biologia, chega à afirmação de que a liberdade é uma característica presente em todo o mundo orgânico – e não apenas no humano. O que ele pretende é superar o dualismo ontológico reinante na filosofia e na ciência ocidental moderna que não passaram de um erro de avaliação a respeito do fenômeno da vida por limitarem-se a uma leitura materialista da vida, deixando para a religião o problema do espírito e a dimensão interior que marca a história da vida. Para Jonas, por estarem presentes também no homem, as características espirituais só podem ter derivado das demais formas de existência orgânica. Ou seja, o homem seria apenas um resultado do progresso que liga o “primitivo” ao “evoluído”, vindo a representar, pela consciência e pela busca da verdade, o degrau mais elevado desse desenvolvimento. Não é possível mais pensar segundo esse dualismo: o homem não está separado e desligado das demais formas de vida, mas justamente se liga a elas pelo processo evolutivo. Essa foi, segundo ele, a maior consequência filosófica do darwinismo.

Metabolismo inicial

Jonas precisa voltar, então, ao problema da origem da vida que, segundo ele, fora esquecido pela ciência moderna, cujo modelo mecanicista buscou na natureza apenas as estruturas já prontas, presentes no mundo e nele em funcionamento, atendo-se ao desafio da explicação da matéria e do movimento. Por isso, ao se perguntar sobre a origem, a ciência moderna logo se deu conta de seu limite e passou a reconhecer a origem e a existência como estados anteriores e posteriores de um mesmo substrato, como diferenças meramente cronológicas. Não há causa diferente do efeito. A organização tardia não passou de um resultado da instabilidade primordial de todo ser orgânico e é nesta etapa que deve ser reconhecida e buscada uma explicação para a origem do espírito. É como prolongamento desse estado inicial, portanto, que o espiritual deve ser entendido. Por isso, ao perguntar sobre a origem do espírito do homem, é preciso reconhecer necessariamente que ele já é antecipado nas formas mais primordiais da vida. Essa é a consequência mais radical do darwinismo. Para ele, é pela via da hereditariedade que cada “pequenino passo do acaso” acumula “informações” que se manifestam, através do tempo, em “grandes e completos genótipos” até alcançar a sua plenitude na forma de vida humana. É no metabolismo inicial dos seres que Jonas reconhece o primeiro gesto de liberdade da vida: “esse tema, comum a toda a vida, buscaremos acompanhá-lo através do crescente desenvolvimento das capacidades e funções orgânicas: metabolismo, movimento e apetite, sensação e percepção, imaginação, arte e conceito – uma escala ascendente de liberdade e risco que culmina no ser humano”, escreve o autor no seu Princípio Vida.

IHU On-Line – Qual é a maior contribuição desse pensador para a construção de uma ética da responsabilidade?

Jelson Roberto de Oliveira – Acredito que a proposta ética de Jonas não esconde suas dificuldades quando pensamos nos seus fundamentos. Mesmo assim, o tamanho, a originalidade e a coragem que ela guarda, é incomparável. É justamente pela grandiosidade e pela urgência do projeto que esses problemas aparecem. Devemos evitar, a meu ver, dois extremos: recusar o modelo em função de seus limites; exacerbar seus méritos fechando os olhos para esses problemas. Jonas conseguiu condensar, em seus escritos, um dos problemas mais fundamentais de nosso tempo: a relação entre o afã da técnica, o poder do homem e as consequências no campo da natureza. Ética, técnica e natureza se articulam numa obra de grandeza inegável, cujo impacto foi (é) muito relevante nos anos posteriores à sua publicação até os nossos dias.
Gosto de pensar que Jonas está enfrentando um problema que esteve alheio da filosofia. E o faz com a nobreza de um filósofo que acumulou, na própria vida, conhecimento e vivência suficiente para se tornar eloquente e fecundo. Trata-se de um convite para que a responsabilidade guie as ações humanas e conduza a sociedade tecnológica para um uso responsável do poder oferecido pela técnica.
Seu livro, assim, é um marco para o pensamento da responsabilidade num âmbito novo e muito grande do ponto de vista do poder de impacto desse poder. Dando-se conta de que “a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça”, Jonas faz uma experiência que o conduz a resultados realmente impressionantes do ponto de vista ético e filosófico.
O novo modelo ético sugerido (na forma de uma convocação, que é como as teses éticas geralmente se apresentam) parte, em primeiro lugar, do indeferimento da superioridade da racionalidade técnica humana sobre os demais seres vivos, o que significa uma recusa da superioridade do homo faber (homem que faz) cujo entusiasmo incoerente subjuga o homo sapiens (homem que pensa). Em segundo lugar, da supressão da fronteira entre a “cidade” ou o Estado (o mundo da pólis) e a “natureza”, já que uma e outra estão confundidas no mundo contemporâneo, já que “o natural foi tragado pela esfera do artificial”. Do primeiro caso nasce a necessidade de refletir sobre a técnica como uma vocação humana, mas despi-la desse infinito impulso e desse cego triunfo. Da segunda negação advém a exigência de que a ética pense a conservação do mundo físico de forma a garantir a existência da própria vida no futuro. E não há outra exigência mais grave, urgente e imperiosa para a ética do que a vida.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Jelson Roberto de Oliveira – Só queria dizer que Jonas coloca a ética no campo de uma futurologia, como possibilidade de criação e de alteração do futuro mesmo, hoje fornecidas pela técnica moderna. A perspectiva do futuro, presente em sua proposta, nos remete à urgência de fazermos uma escolha quanto à possibilidade de existir, quanto àquilo que queremos ser e ao mundo no qual queremos viver. É a ética e não a técnica (muito menos essa ideologia da técnica usada pelos tecnocratas a serviço das grandes corporações) que deve nos ajudar a chegar a uma resposta para essas questões.

Leia mais...

>> Jelson Roberto de Oliveira já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

•    Desolação no Paraná. Terra da soja, cana-de-açúcar, pínus e eucaliptos. Entrevista publicada em 29-03-2007

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição