Edição 371 | 29 Agosto 2011

A heurística do temor e o despertar da responsabilidade

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Márcia Junges



IHU On-Line – Nesse aspecto, como compreender a crítica ao marxismo que advém da filosofia de Jonas?

Jelson Roberto de Oliveira – Para Jonas o marxismo é um tipo utópico de proposta política que não se deu conta dos limites das condições materiais. Ao ser embasado numa esperança redentora através do materialismo, leu errado os limites da tolerância da natureza e da sua oferta. É a determinação material da proposta marxista que está em jogo. Portanto, por creditar à determinação material as benesses da sua proposta utópica, o marxismo acabou dando de ombros para a responsabilidade, por não ter se dado conta desses limites. Se, como afirma Jonas nas primeiras linhas do capítulo intitulado A crítica da utopia marxista, do seu O princípio responsabilidade, “a primeira condição da utopia é a abundância material, de modo a satisfazer as necessidades de todos; a segunda condição é a facilidade em adquirir essa abundância” na busca do lazer, alcançado pelo conforto promovido pelo acesso aos bens de consumo que tornam a “abundância” algo rapidamente acessado pela maior parte da sociedade, mesmo a parcela proletária, então essa foi a viseira vestida pelos marxistas.

Se o lazer, chamado por Jonas de “essência formal da utopia”, remete à liberdade da servidão do trabalho, então não é estranho reconhecer nessa a chave de entrada no modelo proposto por Marx. A “radicalização da técnica” oferece a possibilidade (ainda que ilusória) para o alcance dos bens de consumo em cujo seio vem, embrulhados, os ideais essenciais do lazer e do conforto associados à felicidade. O marxismo, então, constituiu-se como “agressão intensificada” à natureza na medida em que se estabeleceu sobre essas bases. Esqueceram-se, os marxistas, de perguntar: até onde a natureza pode suportar? E dessa resposta dependeria todo o futuro dessa proposta. Marxismo e liberalismo, proletários ou burgueses, países desenvolvidos ou subdesenvolvidos igualam-se quanto à gravidade dessa pergunta e à urgência dessa resposta. Nesse sentido, a crítica de Jonas não é uma crítica política efetivada como crítica a um regime político-econômico, mas, antes, uma crítica ao ideal que serviu de motor para a maioria dos regimes políticos e ao erro a que estiveram submetidos.

IHU On-Line – Como analisa a herança kantiana no pensamento desse autor?

Jelson Roberto de Oliveira – Jonas reconhece em Kant um modelo exemplar do modo de pensamento ético vigente no Ocidente. Nesse sentido, trata-se, mesmo, de um reconhecimento, no sentido de dar aceitar a importância e o prestígio dessa filosofia. Mas isso não o impede (como jamais é o caso na filosofia!) de mostrar o quanto a tese kantiana é insuficiente para dar conta da nova realidade. Insuficiente, quer dizer, não significa que Jonas afirme a não validade da ética kantiana. O que ele propõe é um novo modelo ético em função dos novos saberes, frente aos quais a ética não pode mais fechar os olhos. Como se ampliaram o conhecimento científico e o poder de intervenção da técnica, é necessário e urgente que também a ética alargue a sua perspectiva de análise. É preciso superar limite da visão existente no século XVIII, o século do Iluminista, que fundou muitas das teorias da liberdade e da abundância, a despeito da responsabilidade.
O imperativo categórico de Kant seria limitado à perspectiva do conhecimento e ao tamanho da técnica existentes em seu tempo. Em Kant, Jonas reconhece um vazio ético no que tange ao problema dos riscos de extinção do homem, de alteração de sua essência, de cuidado com a natureza, de uma marca profundamente antropocêntrica da ética, de uma ausência do problema do futuro e das exigências que ele traz em termos de garantia de sua factibilidade.

IHU On-Line – Qual é o fundamento da rotulação antropocêntrica da filosofia de Jonas se pensarmos nessa herança kantiana?

Jelson Roberto de Oliveira – Jonas acusa Kant de ter permanecido num modelo antropocêntrico de ética, por reconhecer a natureza como um campo eticamente neutro e porque sua ética esteve limitada ao âmbito humano, tratando da relação ser humano/ser humano. Essa crítica parte da concepção de que a ética kantiana (como modelo daquilo que Jonas chama, em termos gerais, de éticas tradicionais) esteve reservada ao âmbito da “cidade”, ou seja, do artefato criado pelo ser humano e dele dependente. A ética seria a reflexão para a vida dentro dos muros da cidade, que foi erguida, no geral, de costas para a natureza, como uma forma de proteção e esconderijo, de conforto e segurança no meio do reino natural. Isso se deu porque a natureza foi tida sempre como um campo selvagem, violento, inimiga que ou cuidava de si mesma, ou era cuidada por “Deus”, ou melhor: que fosse mesmo reprimida ou domesticada, com vistas ao seu enfraquecimento. Frente à natureza, o homem se comportava como detentor de uma arma de domínio e exploração (com vistas à domesticação e usufruto das condições materiais): a razão amplamente elogiada e examinada na teoria kantiana. Com racionalidade, o ser humano quis decifrar e inventar formas de domínio da natureza sem que, em algum momento, tenha se colocado o problema das consequências negativas que adviriam desse processo. A partir da cidade, o ser humano iria à natureza pela via do domínio e da exploração, sem se dar conta do tamanho do seu impacto e sem prever (como prognóstico negativo) o que poderia acontecer depois de sua passagem.
Kant, então, formulou uma ética centrada na “cidade”, na qual o ser humano deveria construir uma vida feliz a partir do reconhecimento de si mesmo como “reino dos fins”. Nenhuma perspicácia de longo alcance, nenhum conhecimento para além do âmbito da urbes, nenhuma preocupação para além do âmbito imediato e presente da ação: Kant foi reducionista e seu imperativo categórico recusou os saberes que se revelavam como braço humano que se alongava para além do domínio da cidade, atingindo de forma catastrófica a natureza como um todo.

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