Edição 360 | 09 Mai 2011

“Se a Doutrina Social da Igreja quiser permanecer viva, precisa se renovar continuamente”

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Moisés Sbardelotto

“O mundo mudou muito nesses 50 anos que nos separam da Mater et Magistra”, afirma o teólogo jesuíta espanhol Ildefonso Camacho Laraña. “A Doutrina Social da Igreja reflete essa mudança: não trata hoje os mesmos temas que em 1961, nem os trata da mesma maneira”

A Mater et Magistra não pode ser entendida fora do ambiente respirado pela Igreja na década de 1960: “décadas obscuras de um enfrentamento fechado com o mundo moderno e de um centralismo romano” que “começam a dar sintomas de esgotamento”, na opinião do teólogo jesuíta espanhol Ildefonso Camacho Laraña. Nesse sentido, afirma, a encíclica de João XXIII “é um bom expoente” desse ambiente.
 É um documento que inova – segundo o teólogo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line – “em seu tom e em seu estilo”. “Ele revela uma nova atitude da Igreja perante a sociedade”, afirma. “O mundo mudou muito nesses 50 anos que nos separam da Mater et Magistra. A Doutrina Social da Igreja reflete essa mudança: não trata hoje os mesmos temas que em 1961, nem os trata da mesma maneira”. É aí que radica a riqueza e a limitação da Doutrina Social: “Se quiser permanecer viva, precisa se renovar continuamente”, defende.

Ildefonso Camacho Laraña é jesuíta, professor e reitor da Faculdade de Teologia de Granada e da Faculdade de Ciências Econômicas e Empresariais da Universidade de Córdoba - ETEA, na Espanha. É também o responsável pela futura Universidad Loyola Andalucía, a primeira universidade privada da região da Andaluzia, na Espanha, projetada pela Companhia de Jesus. Dentre suas obras, destacamos Doutrina Social da Igreja: Abordagem Histórica (Ed. Loyola, 1995) e Creyentes en la Vida Pública: Iniciación a la Doctrina Social de la Iglesia (Ed. San Pablo, 1995).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – A que conjuntura mundial e período histórico o Papa João XXIII buscou responder com a publicação de sua encíclica Mater et Magistra, sobre a questão social, em 1961?

Ildefonso Camacho –
O ano de 1961 ainda está próximo do final da Segunda Guerra Mundial, porém as coisas mudaram muito nesses 15 anos. O mundo entrou em uma fase econômica claramente expansiva, em parte como consequência da reconstrução pós-bélica, fortemente apoiada pelo Plano Marshall.  Os países que mais diretamente sofreram o açoite da guerra (Europa central) estão fazendo um esforço imenso para voltar à normalidade. E esse esforço está dinamizando e impulsionando toda a economia mundial. A fase expansiva que, com alguns altos e baixos, se manterá até a entrada da década de 1970, supõe um ritmo de crescimento econômico sustentado que repercute sobre todos os países do mundo.

A isso se unem os processos de descolonização que se multiplicam depois da guerra e abrem as antigas colônias da África e da Ásia à independência política. Independência política e expansão econômica permitem alentar expectativas de desenvolvimento em todos os países economicamente mais atrasados. Poderia parecer que era a dependência política dos territórios coloniais o principal obstáculo para o desenvolvimento desses povos (a história logo se encarregaria de demonstrar que, sendo um obstáculo, não era nem o único nem o mais importante).

Todos esses fatores explicam o fato de o ambiente que se respira aos 15 anos da finalização da guerra ser positivo e esperançoso. Por isso, dizemos que as coisas mudaram muito nesse intervalo de tempo. A trágica experiência da guerra, vivida como um grande fracasso da humanidade em seus esforços por conseguir uma convivência em paz, foi cedendo terreno à abertura de novos horizontes, à medida que as feridas também foram se estancando: esse passado que vai se afastando é história que não se pode ignorar (a história, mestra da vida). Porém, não pode atormentar a humanidade, nem, menos ainda, converter-se em paradigma para o futuro. Um novo futuro está por ser construído e há razões para confiar que será melhor.

Todo esse ambiente também é respirado pela Igreja. As décadas obscuras de um enfrentamento fechado com o mundo moderno e de um centralismo romano pouco atento ao pluralismo de situações na Igreja universal (o que Karl Rahner  denominou a “etapa plana”) começam a dar sintomas de esgotamento. João XXIII é o melhor expoente dessa nova situação: em sua pessoa e em suas atitudes se refletem muitas expectativas e muitas iniciativas nem sempre bem vistas ao longo dos anos já transcorridos do século XX. Tudo isso começa a bulir com novo vigor desde que, em janeiro de 1959, João XXIII anuncia, perante a surpresa de seus colaboradores mais próximos, que vai convocar um concílio ecumênico. A Mater et Magistra não pode ser entendida fora desse contexto: é mais, é um bom expoente dele.


IHU On-Line – Que pontos o senhor analisa como as grandes novidades do documento, visto depois de 50 anos?

Ildefonso Camacho –
A primeira novidade do documento reside em seu tom e em seu estilo. Pode parecer superficial começar por esse aspecto. Mas não o é na medida em que ele revela uma nova atitude da Igreja perante a sociedade. Após anos de distanciamento e de falta de compreensão, João XXIII mostra uma atitude positiva que busca identificar o que há de valioso na realidade socioeconômica, embora tampouco falte uma crítica do que é menos aceitável. Porém, o negativo não ocupa o primeiro plano, mas sim o positivo.

No que se refere às questões econômicas, o documento mantém como pano de fundo a confrontação entre os dois grandes sistemas, o capitalismo e o coletivismo, em um mundo que vai se configurando em torno dos dois blocos. Nisso ele segue a trajetória das duas encíclicas às quais faz referência na primeira parte: Rerum Novarum (de 1891) e Quadragesimo Anno (de 1931). Mas com um importante matiz diferenciador: não se concentra na crítica cerrada do coletivismo e do socialismo, nem é feita tampouco uma crítica sistemática do capitalismo, mas se põe a atenção nas possibilidades de um sistema misto.
No documento, tem prioridade a iniciativa privada a partir da liberdade, porém completada e processada pela intervenção dos poderes públicos. Aposta-se em um sistema misto de economia, que é o que está se desenvolvendo a partir das reformas introduzidas no modelo capitalista como consequência da crise de 1929 e, de modo mais sistemático, depois da Segunda Guerra Mundial: o que logo se tendeu em chamar de Estado social.


IHU On-Line – Alguns conceitos-chave emergem na encíclica, como propriedade, bem comum, subsidiariedade, solidariedade, justiça, equidade. Como se define uma ética econômica de inspiração cristã? Como conciliar o “desenvolvimento econômico” e o “progresso social”, nas palavras de João XXIII (n. 73)?

Ildefonso Camacho –
A Mater et Magistra, seguindo a tradição dos documentos que a precederam, utiliza antes um tipo de discurso e de argumentação de caráter ético natural. Embora a inspiração cristã de fundo seja indubitável, sua explicitação é menor do que o será nos documentos posteriores ao Concílio Vaticano II. Nesse, como em outros aspectos, João XXIII representa uma transição: situa-se na tradição anterior que nasce com Leão XIII e se prolonga até Pio XII (embora este papa não tenha publicado nenhum grande documento social nessa forma mais solene de encíclica). Porém, já inicia com enfoques novos que se imporão com mais força a partir do Concílio.

Esse tipo de discurso, baseado em uma filosofia natural, responde à convicção do Magistério de que sua doutrina social tem um fundamento seguro em uma ética natural e revelada: tal concepção é explicável em uma época em que a Igreja está em aberta confrontação com a mentalidade moderna, que quer fazer da fé algo legítimo, porém não universalizável, fruto somente de uma opção pessoal. Sem embargo, na época do Concílio, essa orientação irá sendo substituída por outra que quer antes acentuar o que seria próprio e específico da fé cristã e da Igreja.
Conceitos tais como propriedade, bem comum, subsidiariedade, solidariedade, justiça ou equidade são empregados na Mater et Magistra, mas sem esforço explícito de mostrar seu enfoque cristão: quase tudo o que se diz deles também pode ser dito a partir de uma ética natural.

A própria afirmação de que é preciso unir desenvolvimento econômico e progresso social (n. 73) é feita a partir de uma ética natural e indo passo a passo com o que está ocorrendo no mundo nesses momentos: assiste-se a um crescimento econômico sustentado praticamente em todos os países do mundo (países desenvolvidos e em desenvolvimento). Mas os frutos desse desenvolvimento não são distribuídos de forma equitativa entre todos.

Aqui, o “progresso social”, quando se analisa o texto, refere-se à participação de todos os grupos sociais nos resultados do desenvolvimento. Poucos anos depois, o Concílio, em sua Constituição sobre a Igreja no mundo de hoje, enriquecerá esse posicionamento para afirmar que o autêntico desenvolvimento deve ser, ao mesmo tempo, integral e solidário: ou seja, deve abranger todo o ser humano (e não se limitar ao bem-estar material entendido em função da renda econômica e da disponibilidade de bens) e chegar a todos os seres humanos (a todos os povos, a todos os grupos sociais de qualquer sociedade).


IHU On-Line – O senhor já fez referência a algumas inter-relações entre a Mater et Magistra e o Concílio Vaticano II, convocado no mesmo ano, em dezembro de 1961. Que aspectos a encíclica já prediz ou destaca sobre os debates que ocorreriam no Concílio?

Ildefonso Camacho –
Com relação ao que precede, esta pergunta já está de algum modo respondida. Volto a sublinhar o tom positivo, de diálogo com a sociedade moderna, de valorização de tudo o que nela há de positivo e de promissor. Supõe uma virada esperançosa que preanuncia o que será o Concílio.

Mas a Mater et Magistra se move em um terreno mais limitado do que o Concílio: o dos problemas socioeconômicos. Todavia, caberia destacar dois aspectos que adiantam coisas que no Concílio ficariam muito mais desenvolvidas. Por uma parte, a Mater et Magistra, quando identifica alguns problemas novos do momento, centra sua atenção nas diferenças e desigualdades que se dão em âmbitos muito diferentes, embora sempre em relação ao socioeconômico: entre regiões, entre setores econômicos (é muito interessante a longa seção que é dedicada à marginalização do setor agrícola) e entre povos inteiros. Aqui já está anunciado qual vai ser, a partir do Concílio e mais ainda com Paulo VI (Populorum Progressio, de 1967), o tema central da Doutrina Social da Igreja: o problema Norte/Sul, que substitui em grande parte o que até então havia sido o tema central (capitalismo/socialismo (marxismo)).

Outro aspecto novo, que adianta desdobramentos ulteriores do Concílio, é o compromisso dos cristãos nessas tarefas e no trabalhar junto a pessoas com outras convicções religiosas ou ideológicas. João XXIII fala de “realidades temporais”, um campo muito adequado para o compromisso cristão, que o Concílio retomaria com um enfoque muito mais elaborado, a fim de reconhecer o papel insubstituível dos leigos nessas tarefas.


IHU On-Line – Partindo de encíclicas anteriores (Rerum Novarum e Quadragesimo Anno), a Mater et Magistra também serve de base para textos posteriores (Pacem in Terris e Gaudium et Spes). Como o senhor examina, em traços gerais, as questões levantadas por esses documentos oficiais da Igreja e suas interconexões com relação à questão social?

Ildefonso Camacho –
A Rerum Novarum (1891) é considerada o primeiro grande documento da Doutrina Social da Igreja. Pretende responder aos excessos do sistema socioeconômico que se desenvolveu no século XIX nos países industrializados, do qual as classes proletárias desses países são vítimas. E também se ocupa de prevenir perante a ameaça do socialismo revolucionário que se organiza em torno das Internacionais Operárias.

A Quadragesimo Anno (1931) se situa no momento da grande crise econômica que eclodiu em 1929: nela, convergem as crises cíclicas do modelo liberal capitalista, os efeitos da Primeira Guerra Mundial e a ameaça do modelo comunista já instaurado na Rússia. Talvez seja o documento mais duro com o sistema capitalista, o que não o faz voltar-se mais benevolamente ao socialismo: sugere antes uma terceira via, concretizada no corporativismo (um modelo que chegaria a extremos inaceitáveis nas mãos da ideologia fascista).

João XXIII significa uma virada que se inicia: não só por seu enfoque mais positivo e construtivo, mas também por ampliar os horizontes para abrir-se em duas direções: a socioeconômica, mudando de enfoque para centrar a atenção às diferenças mundiais; mas, ademais, introduzindo a perspectiva política (Pacem in Terris) para fixar-se tanto na política nacional como na dimensão mundial da política (conceitos como autoridade mundial e bem comum universal são de grande interesse nesta última encíclica sobre a paz). João XXIII abre, com isso, caminhos pelos quais avançarão o Concílio, Paulo VI e João Paulo II.


IHU On-Line – De acordo com o Papa, “os problemas humanos de alguma importância, qualquer que seja o seu conteúdo, científico, técnico, econômico, social, político ou cultural, apresentam hoje dimensões supranacionais e muitas vezes mundiais” (n. 200). A proposta de um governo mundial – para além da ONU – se renova com a publicação de Caritas in Veritate, de 2009. À luz da Doutrina Social da Igreja, qual seria a melhor solução para os desafios da globalização?

Ildefonso Camacho –
Essa distinção feita pelo texto em português é recolhida pela versão espanhola como problemas que “afetam necessariamente muitas e algumas vezes todas as nações” (n. 201). A ideia de fundo é a mesma: os problemas de hoje ultrapassam o âmbito de um país e, portanto, as competências de um Estado: afetam pelo menos vários países, porém muitas vezes chegam a ser problemas que afetam a humanidade (“a todas as nações”). E isso significa – é o que interessa destacar – que só podem ser eficazmente abordados a partir da colaboração e do compromisso de todos, e nunca a partir de iniciativas de governos isolados, que resultarão insuficientes.

Isto é, no entanto, em germe, aquilo que chamamos de globalização. Esse processo que caracteriza nosso tempo supõe, em uma primeira aproximação e falando, porém, antes em termos econômicos, uma progressiva unificação de todos os mercados, antes separados pelas fronteiras e por legislações muito restritivas, que agora se integram em um único e de dimensões planetárias.
Mas o mercado exige – a experiência o demonstrou – uma instância de controle que os contenha e estabeleça certas regras do jogo. Digo que a experiência o demonstrou porque os países que se desenvolveram no século XIX e começos do século XX, segundo o paradigma do capitalismo liberal (mercado livre, mínima intervenção do Estado), entraram em uma crise que só foi superada com a instauração de um modelo de capitalismo misto (mercado + poderes públicos). O mercado único globalizado também parece exigir uma instância reguladora, porém agora de dimensões planetárias.
Não é fácil projetá-la, nem vale extrapolar o modelo do poder do Estado em escala mundial. Mas o fato de não ter o modelo concreto dessa instância não anula a consciência aguda de sua necessidade, inclusive de sua urgência. E a recente crise, que estourou em 2008 nos mercados financeiros norte-americanos para logo estender-se como a pólvora, tem suscitado um forte clamor em favor da instauração de um organismo que ponha ordem no caos que é hoje a economia mundial. O protagonismo que, nestes últimos três anos, vem adquirindo o G-20  confirma isso, por mais que suas iniciativas defraudem por serem insuficientes e timoratas.
E Bento XVI apostou decididamente em favor dessa instância mundial (ele a chama de “autoridade mundial”) em sua encíclica Caritas in Veritate: é, talvez, uma das propostas mais concretas e mais taxativamente formuladas de todo o documento.


Esse método não é uma novidade de João XXIII. Mas tem, sim, origem cristã, já que foi criação da Juventude Operária Católica – JOC, um movimento especializado da Ação Católica: concretamente, quem primeiro o empregou foi a juventude operária católica da Bélgica, sob a inspiração do Cardeal [Josef-Léon] Cardijn. É interessante, todavia, que João XXIII o tenha tornado seu na Mater et Magistra, propondo-o como um instrumento para a aplicação dos “princípios gerais da doutrina social”.

Seu valor reside na harmonização desses três momentos. Começar pelo “ver” significa deixar-se impactar pela realidade e, além disso, tentar fazer uma análise dela: compreender os mecanismos que nela atuam. É ainda mais importante pelo fato de nós, cristãos, sermos muito propensos a projetar nossos ideais sobre essa realidade (ideais muito elevados, por outra parte), sem levar em conta as resistências que esta oferece à mudança.

O momento doutrinal (“julgar”) vem depois: é aí que projetamos nossos critérios e nossa visão cristã de entender a vida sobre a realidade analisada. E, para que não fiquemos nesse juízo, que muitas vezes se limita a ser uma crítica sem compromisso de um estado de coisas, pede-se-nos que avancemos mais um passo: descer a formas concretas de atuação consequentes com nossas ideias (“agir”).
Assim descrito, esse método continua sendo perfeitamente válido hoje para defrontar-nos com a realidade. E mais, também pode ser aplicado a partir de uma postura não crente: nesse caso, o julgamento da realidade será feito a partir dos pressupostos de uma ética natural, não cristã. Em todo o caso, estamos diante de um caminho comum a ser percorrido por crentes e não crentes, embora uns e outros possam separar-se nos critérios que põem em jogo.

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