Edição 222 | 04 Junho 2007

Rûmî no contexto da mística e da tradição islâmica

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

Ao se referir à poesia de Rûmî, o professor William Chittick, especialista no pensamento sufi e em filosofia e literatura islâmica, descreve: “Sua linguagem é bela, sua imaginação é cativante, suas similitudes e analogias inspiram amor; quando sua poesia é bem recitada ou cantada em persa, ela é tão bela que embriaga os ouvintes. De vez em quando, a beleza da alma de Rûmî brilha através de sua poesia e de seus ensinamentos, e é isso que ateia fogo nos corações do povo”. O professor fez essa e outras afirmações na entrevista exclusiva que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, onde também relacionou a crença muçulmana em Deus com o poeta que inspira a  matéria de capa desta edição.  No entanto, para Chittick, um dos problemas é que “Rûmî é geralmente percebido como alguém que apareceu na história apesar do Islã, e não por causa dele. Enquanto ele não for recolocado em seu contexto histórico e cultural, as pessoas continuarão a lê-lo como outra voz excepcional de generosidade, uma singularidade na história islâmica”.

Chittick nasceu em Connecticut, EUA, e cursou Ph.D. em literatura persa na Universidade de Teerã em 1974. Ensinou religião comparada no departamento de Humanidades da Tehran's Aryamehr Technical University e é professor na State University of New York at Stony Brook. É autor e tradutor de vinte livros e mais de cem artigos sobre o pensamento islâmico e sufismo. De suas obras  citamos The Sufi Doctrine of Rumi: An Introduction (Tehran, Iran: Aryamehr University, 1974) e The Sufi path of love: the spiritual teaching of Rumi (New York: State University of New York Press, 1983).

IHU On-Line - Rûmî tem algo de significativo a dizer para alguém que vive no mundo moderno e deseja engajar-se numa “busca mística”?
William Chittick -
Se Rûmî foi um místico, deveríamos entender que ele conquistou um nível de conhecimento e iluminação que o põe em constante contato com a sabedoria divina, tornando-o um condutor de graça e orientação. Poderia Rûmî oferecer alguma ajuda a quem quisesse ser místico hoje em dia? Ele certamente pode providenciar orientação, como, por exemplo, para o objetivo da busca, os riscos do passado e as linhas de orientação que precisam ser seguidas para evitar danos. Porém, para ser mais específico do que isto, eu precisaria escrever um livro detalhando seus ensinamentos, o que eu já fiz – brevemente em The Sufi doctrine of Rumi  e, com mais detalhes, em The Sufi path of love .
 
IHU On-Line - O que desperta admiração na poética de Rûmî?
William Chittick –
Geralmente, é a beleza. E o que faz Rûmî tão especialmente atraente é sua ênfase na importância da beleza, não só teoricamente – já que ele expõe sua importância com muitos detalhes –, mas também na prática. Sua linguagem é bela, sua imaginação é cativante, suas similitudes e analogias inspiram amor; quando sua poesia é bem recitada ou cantada em persa, ela é tão bela que ela embriaga os ouvintes. De vez em quando, a beleza da alma de Rûmî brilha através de sua poesia e de seus ensinamentos, e é isso que ateia fogo nos corações do povo.
 
IHU On-Line - Como descrever a paixão dos muçulmanos por Deus?
William Chittick –
Poderia parecer a estranhos, quando ouvem algo sobre os fundamentos do Islã, que a teologia islâmica é seca e estéril e bem pouco inspiradora. “Eu desejo um Deus que eu possa envolver e abraçar”, diz um teólogo cristão amigo meu. Esta é uma interpretação totalmente errônea da compreensão dos muçulmanos sobre Deus, baseada amplamente nas teologias racionais produzidas por certo tipo de influentes apologetas sobre a história islâmica. Contudo, não foram estas teologias que inspiraram os fiéis muçulmanos, mas, antes, a beleza de Deus, que o Corão celebra de diversas formas e que é cantada quase constantemente na poesia islâmica e, não por último, na de Rûmî.

Quando o povo ouve que o ensinamento fundamental do Islã é tawhîd , a asserção da divina Unidade, e que tawhid é expresso na sentença “(Não há) deus(es), mas Deus”, ele se admira o quanto esta branda asserção pode despertar paixão e amor. Eles precisam entender que isso não é propriamente um dogma, ou uma asserção sobre o modo como as coisas são, mas muito mais um guia sobre como pensar a respeito de Deus e como desenvolver a própria relação com Deus. Tais pessoas deveriam prestar atenção para as meditações de Rûmî e de incontáveis outros muçulmanos sábios e santos que explicam a natureza da Unidade.

Deus assim nos fala: o Corão possui “os mais belos nomes” (al-asmâ al-husnâ), como Uno, Vivo, Conhecedor, Misericordioso, Compassivo, Poderoso, Desejoso, Amante, Perdoador. Todos estes nomes podem ser adequadamente inseridos na fórmula da Unidade, já que a divina Unidade significa que “não há nada realmente uno senão Deus, nada vivo senão Deus, nada conhecedor senão Deus, nada amante senão Deus”, e assim por diante. Sob certo aspecto, isso significa que somente Deus é real, e todas as qualidades reais, toda a realidade pertence exclusivamente a Deus. Sob outro aspecto, isso significa que cada vestígio de realidade encontrado em qualquer coisa só pode ser uma concessão de Deus. Na linguagem corânica, cada coisa que existe é um “sinal” (âya) de Deus. Na linguagem filosófica, o cosmo e tudo o que ele contém é “contingente” em relação a Deus, e somente Deus é Necessário, o que significa que somente Deus é por Si mesmo, com nada a apoiá-lo.

O Corão se refere à contingência de tudo o que existe como “pobreza”, como a eterna necessidade de todas as coisas por Deus que é unicamente o “Rico”. Por isso, o Corão diz, num versículo que explica porque os “místicos” muçulmanos se chamam a si mesmos de “povo pobre” (faqîr, darvish): “Ó povo! Vós sois os pobres diante de Deus, e Deus é o Rico, o digno de louvor” (35:15). Isto é para dizer que, em nossa situação atual, nada temos por nós mesmos. Porque carecemos de conhecimento e compreensão, nós pensamos que temos algo e nos apegamos à “nossa” existência, “nossas” posses, família, amigos, amados, carreiras etc. Porém, nossa “necessidade” por essas coisas é de fato nossa necessidade por Deus. Além disso, nossa pobreza diante dos outros é de fato nossa pobreza diante de Deus, pois os assim chamados “outros” nada são senão sinais e contingências do Uno. Rûmî nos recorda constantemente que todos os nossos amores e desejos são, de fato, um só amor e um só desejo.

Assim, a paixão de Rûmî pelo Uno está enraizada em sua compreensão de que existe apenas Uma Realidade. Ele direciona todas as suas paixões, todos os seus amores, todos os seus desejos, todas as suas necessidades, toda a sua fome, sua sede e suas aspirações, e enfoca tudo isso num único Ponto, que é o Uno, aquele que Só Ele É. Esta fonte da paixão de Rûmî é simplesmente sua compreensão do caminho que as coisas são, e sua compreensão de que as necessidades humanas são feitas segundo a imagem de Deus, e que estas vontades e desejos nada mais são do que a manifestação do infinito Desejo do Uno de torná-lo conhecido.

A senda da “mística” é exitosa para o nível no qual eles estarão aptos a erradicar de sua visão os falsos desejos e aspirações, substituindo-os pelo amor ao Uno. Este é precisamente o tawhid na prática, um ponto que Rûmî esclarece nestas linhas, que empregam a fórmula do tawhid:

A alegria e a mágoa dos amantes é Ele,
Seu ordenado e salário pelo serviço é Ele.
Se eles contemplarem algo diverso do Amado,
Isso não seria amor, mas inútil paixão.
O amor é a chama que, quando se incendeia,
Queima tudo, exceto o Eterno Amado.
Ele usa a espada do “não deus” para tudo eliminar, a não ser Deus.
Olha cuidadosamente: após o “não deus”, o que resta?
Permanece o “porém Deus”, o resto se foi.
Bravo, Ó grande Amor, incinerador de ídolos!

(Mathnawi V 586-590)
 
IHU On-Line - Qual é a importância do amor na poesia de Rûmî?
William Chittick –
Eu já respondi a esta questão, quando mostrei que o amor é o fogo que reaviva a fórmula da Unidade, erradicando do coração e da mente tudo o que não é Deus. Porém, deixe-me expandir isso um pouco. Nós podemos entender o lugar do amor em termos de quatro princípios básicos da cosmovisão de Rûmî (que geralmente é a cosmovisão de todas as formas da teologia islâmica que tem uma apreciação da compreensão humana dos “mistérios”).

O amor é divino
Em primeiro lugar, o amor é um atributo divino. Somente por derivação, ou metaforicamente, ele pode ser considerado um atributo humano. Antes que possamos entender o que significa o amor humano – e antes que possamos experimentar seu real poder –, nós precisamos entender o que ele significa no contexto divino. Num versículo a que Rûmî se refere com freqüência, o Corão diz: “Ele os ama, e eles O amam” (5:54). Amando os humanos – “Ele os ama” – Deus é o amante. Sendo amado pelos humanos – “eles O amam” – Deus é o amado. Dado que não há deus[es], senão Deus, também não há verdadeiro amante senão Deus e não há verdadeiro amado senão Deus. Este é o ponto básico de Rûmî sobre o amor. O amor “é na realidade um atributo de Deus, e ele pertence aos humanos metaforicamente” (Mathnawi II, introdução à prosa).

A beleza é amável
Segundo: a beleza por definição é amável. O amor não pode ser discutido à parte da beleza, porque a beleza é o objeto do amor, e a beleza não pode ser entendida à parte do amor, porque o amor é a resposta humana à beleza. Quem quer não sentir amor ante o belo carece de compreensão humana e plenitude. Eu não estou dizendo que a beleza possa ser definida. Ela não pode ser definida mais facilmente do que o amor. Mas podemos entender a importância da beleza logo que lembrarmos que a beleza é também essencialmente um atributo divino e é apenas derivadamente um atributo das criaturas. Assim como não há verdadeiro amante nem verdadeiro amado senão Deus, assim também não há verdadeira beleza senão Deus. Este é o sentido do famoso hadith : “Deus é belo, e Ele ama a beleza”. Se pudéssemos entender nossa real situação, haveríamos de conhecer e sentir que cada amor que brota em nosso coração é, de fato e na verdade, amor pelo Belo, uma vez que não há nada belo senão Ele.

A orientação dos profetas e santos
Um terceiro ponto básico é que não podemos amar verdadeiramente o Belo, o único objeto real do amor, sem a orientação dos profetas e dos santos. Especificamente, no contexto de Rûmî, isso significa a orientação do profeta Maomé e dos grandes mestres Sufi. Aqui, o Corão é plenamente explícito. O Livro se refere a Maomé [Muhammad] com estas palavras: “Dize: ‘Se você ama Deus, siga-me, e Deus o amará’ ” (3, 31). Não há dúvida de que os seres humanos sejam sempre objeto do amor de Deus, porém este amor não se torna transformador sem que o povo lhe responda. Deus nos ama, ou, caso contrário, Ele não nos teria criado e Ele não teria revelado os caminhos de orientação e guia. Não obstante, dizer que Deus ama a nós todos é exatamente o mesmo que dizer: “Ele está contigo, onde quer que estejas” (Corão 57: 4). De fato, Deus está conosco onde quer que estejamos; nosso problema é que nós não estamos com Ele. De fato, Deus nos ama; nosso problema é que nós não O amamos em resposta. No sentido de estarmos como Ele e no sentido de O amarmos como Ele deseja ser amado, nós devemos seguir a orientação profética que nos permita expressar nosso amor adequadamente e isso resulta em Seu amor por nós individualmente e especificamente. Isso somente acontecerá se nós nos engajarmos sincera e vigorosamente na senda que Shams-i Tabrizi chama, com freqüência, a senda do “seguimento” (Mutãba`at), uma palavra que derivou precisamente do “seguimento” mencionado no versículo Corânico – “Se amas Deus, segue-me”. Como Shams o coloca numa passagem de seu Maqãlãt , “Aflição para aqueles que deixam de seguir Maomé!”.

Deus vai amar-nos
Isso nos conduz ao quarto ponto básico: o fruto do seguimento de Maomé é que Deus vai amar-nos, e o fruto do amor de Deus é que nós estaremos com Deus da mesma forma como Ele está conosco. Revendo estes quatro pontos: o amor é atributo de Deus, e o amor humano existe como reflexo do amor de Deus. A beleza é atributo de Deus, e todo amor divino e humano é dirigido a Deus como o Belo. Quando os seres humanos entendem que seu amor é de fato direcionado para Deus, eles não têm outra escolha senão seguir a orientação profética, de modo a agirem como o amante agiria para com seu amado. Somente então eles poderão colher o fruto de serem amados por Deus. Este fruto é o que Rûmî chama freqüentemente de “união”, isto é, quando Deus ama Seu servo, o servo descobre que Deus está presente com ele, e ele está presente com Deus. Deus é o ouvido através do qual ele escuta, a visão através da qual ele vê.

IHU On-Line - Como entender, na poesia de Rûmî, o tema do coração? De que modo esta questão auxilia a reflexão mística do sufismo?
William Chittick –
A compreensão de Rûmî sobre o coração (qalb, dil) é inteiramente direcionada para a compreensão corânica do coração, e esta visão está apoiada em diversas tradições, incluindo a antiga tradição judaico-cristã, a tradição hindu, e, talvez mais famosamente, a tradição chinesa. De qualquer modo, no caso da China, os estudantes traduziram tipicamente a palavra chinesa xin por “mente”, embora sua primeira designação seja “coração”, ou seja, o órgão físico. O coração é, em termos islâmicos, a realidade subjacente e unitária que nos torna humanos e esta se bifurca em mente e corpo. O coração não é apenas a sede das emoções e dos sentimentos – como no Ocidente moderno –, mas também, e primariamente, a sede da inteligência e do amor, isto é, amor verdadeiro, amor real pelo Real.

De todas as criaturas de Deus, somente os seres humanos foram feitos à Sua imagem e somente eles têm a capacidade de contemplá-lo nele mesmo, porém unicamente na raiz de seus próprios corações. O verdadeiro conhecimento e despertar da consciência é, portanto, conhecimento do coração, não conhecimento da mente. A senda do Sufi é freqüentemente explicada como o processo de “polimento do coração”. A fonte corânica da imaginação (que também se encontra em outras tradições) é uma referência à ignorância e negação daqueles que têm “ferrugem” em seus corações (83: 14). O coração é um espelho de aço que deveria refletir a luz de Deus, já que o homem é feito à sua imagem. Mas, quando o espelho fica enferrujado, já não podemos mais perceber Deus em nossos corações, e assim caímos no erro e na desorientação.

IHU On-Line - Rûmî se distingue como um dos místicos que mais acentuou o traço da generosidade divina. Qual é a importância desta questão nestes tempos de fundamentalismo religioso?
William Chittick –
Rûmî e o fundamentalismo não andam juntos e isso ajuda a explicar em geral a razão por que os muçulmanos “fundamentalistas” são hostis para com o sufismo, para não mencionar a arte, a música, a filosofia e, basicamente, alguns ensinamentos islâmicos que não podem ser interpretados como apelo ao ativismo político. Para aqueles que já se decidiram, é demasiado tarde para apelar a Rûmî. Mas, para aqueles que estão em busca de um Islã alternativo – isto é, um Islã tradicional que não caia no estereótipo que nos é dado pela mídia –, Rûmî pode alertá-los sobre o fato de que o Islã produziu grandes santos, generosos corações e interpretações da situação humana que reconhecem o amor de Deus pela diversidade e Seu apelo a todos os Seus filhos, não necessariamente muçulmanos, cristãos, ou quaisquer que sejam.

Um dos problemas aqui é, por exemplo, que Rûmî é geralmente percebido como alguém que apareceu na história apesar do Islã, e não por causa dele. Enquanto ele não for recolocado em seu contexto histórico e cultural, as pessoas continuarão a lê-lo como outra voz excepcional de generosidade, uma singularidade na história islâmica; de fato, no entanto, ele representa a corrente islâmica principal e os assim ditos “fundamentalistas” são as singularidades históricas. Eles acabaram totalmente imersos nos objetivos políticos e ideológicos visados por várias formas de modernidade e eles se tornaram completamente excluídos das vias da tradição islâmica.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição