Edição 222 | 04 Junho 2007

A mística de Rûmî e o ser humano autônomo contemporâneo

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IHU Online

Para o professor Carlos Frederico Barboza de Souza, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, a mística de Rûmî “aponta para uma busca em profundidade do ser humano, que gera mudanças radicais na vida da pessoa que a vive, que lhe abre para dimensões inusitadas do seu ser, que implicam num processo longo e doloroso de contato consigo, com as próprias limitações, com as pessoas e com as idéias de divindade estabelecidas”. E acrescenta: “Implica um sair de si e do controle da própria vida para abrir-se a um Mistério que não pode ser controlado, nem comparado nem manipulado”. 

Doutorando em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Carlos Frederico possui mestrado em Ciências da Religião pela mesma instituição. Atualmente, é professor de Cultura Religiosa na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Tem experiência nas áreas de Teologia, Filosofia, Antropologia, Pedagogia e Psicanálise, atuando, principalmente, com os seguintes temas: islã, sufismo, espiritualidade, estudos sobre mística, mística comparada e diálogo inter-religioso. Carlos Frederico Barboza de Souza é autor de Construindo a vida (São Paulo: FTD, 2001). Ele comentou o filme O grande silêncio, de Philip Gröning, no artigo publicado nas Notícias Diárias do sítio do IHU em 19-03-2007.

IHU On-Line - Como avaliar o significado e a atualidade de Rûmî para a mística contemporânea?
Carlos Frederico -
A mística contemporânea se defronta com realidades que a sociedade atual lhe propõe. Neste sentido, penso que algumas situações com as quais esta mística tem que se defrontar e, de certa forma, dialogar ou responder, podem ser resumidas em alguns tópicos. O primeiro diz respeito a alguns elementos presentes em grande parte de nossa cultura ocidental, ou seja, o caráter individualista que marca nossa concepção de ser humano e nossas autopercepções e ações; o hedonismo consumista e centrado no ‘ter’; a lógica da eficácia e produtividade que nem sempre abre portas a espaços de gratuidade; a privatização das coisas e pessoas, que diminuem seu investimento com a solidariedade e as dimensões coletivas de uma comunidade; e, por fim, o imediatismo, superficialidade, valor às aparências e rapidez que marcam nossa cultura influenciada por uma certa concepção de mídia e comunicação.

É claro que estes elementos presentes na nossa sociedade se refletem profundamente na forma de viver e pensar das pessoas concretas e, conseqüentemente, na forma de se expressarem religiosamente e viverem suas experiências do Sagrado. Neste sentido, muitas vezes estas experiências acabam sendo ou banalizadas ou ao menos limitadas pelos padrões sociais vigentes. Neste ponto, a mística rumiana adquire seu significado fundamental, pois aponta para uma busca em profundidade do ser humano, que gera mudanças radicais na vida da pessoa que a vive, que lhe abre para dimensões inusitadas do seu ser, que implicam num processo longo e doloroso de contato consigo, com as próprias limitações, com as pessoas e com as idéias de divindade estabelecidas. Implica um sair de si e do controle da própria vida para abrir-se a um Mistério que não pode ser nem controlado, nem comprado ou manipulado. E este Mistério Absoluto só se revela na gratuidade amorosa para quem persevera amorosamente na busca de encontrá-lo descentradamente de si e aberto a ser transformado por este encontro.

Dois outros elementos presentes em nossas sociedades também apontam para o significado da mística de Rûmî: o fundamentalismo e o relativismo. Quanto ao fundamentalismo, os místicos, dentre eles Rûmî, nos indicam um caminho muito mais tolerante, capaz de aprender com o outro e de lidar com a verdade de uma forma não dogmática e fechada. São seres dialogais, que conseguem ver a manifestação divina em setores não-religiosos e até nas religiões que não a sua. Por outro lado, o relativismo tende a encarar as religiões como sendo semelhantes entre si. E esta semelhança, na perspectiva relativista, abole a diversidade existente entre elas e pode gerar uma vinculação religiosa frágil, incapaz de propiciar o vínculo exigido para uma experiência mística profunda. A riqueza do que Rûmî nos revela é que ele consegue viver esta vinculação radical sem ser exclusivista na sua forma religiosa de crença. Ou seja, ele é capaz de encontrar os traços e as manifestações do Mistério em todas as religiões e experiências humanas e no cosmo.

Por fim, a experiência de vida rumiana é muito marcada por sofrimentos advindos da realidade sociopolítica (passou por situações de guerra e exílio) por ele vivida e também pelas tragédias que marcaram sua história pessoal, como a morte de sua esposa, sendo ele ainda jovem e pai de dois filhinhos, e o assassinato de seu grande amigo, Shams de Tabriz , com a possível participação de um filho seu e de discípulos enciumados. Nisto tudo, como nos diz Eva de Vitray-Meyerocivtch, grande tradutora de suas obras para o francês, “Rûmî testemunha que a vida tem um sentido, que o amor e a alegria transcendem o sofrimento, e que definitivamente nada é absurdo” (Rumî e o Sufismo, p. 7) .

IHU On-Line - Qual é a razão que motivou a UNESCO a dedicar o ano de 2007 a Rûmî?
Carlos Frederico -
Como se encontra escrito no sítio da Unesco, Rûmî, como místico e poeta, defendeu a tolerância, racionalidade e acesso ao conhecimento através do amor. Com isto, suas obras marcaram pessoas e religiões para além da Turquia, terra onde se radicou, e para além do Islã, sua religião. Estas suas características são fundamentais para a construção de uma sociedade mais pacífica, na qual as pessoas possam desenvolver suas relações e potencialidades e serem felizes.
 
IHU On-Line - O que provoca tanta admiração na poética de Rûmî?
Carlos Frederico -
Primeiro, sua poética, como toda poética mística, é um texto ‘inspirado’, ou seja, vem marcado por uma lógica que não é a lógica da racionalidade, que tudo mede, controla e delimita. Esta lógica mística se utiliza das palavras para tentar dizer o que em si é indizível, inenarrável. O místico lida com experiências de uma ordem de riqueza ilimitada, que é difícil de ser traduzida na ordem da linguagem limitada. Por isto, lança mão de inúmeros recursos para que seja capaz de “dizer o que não pode ser calado”. Alguns destes recursos podem ser resumidos da seguinte forma: a utilização constante de paradoxos, indicando sempre a complexidade da realidade e da experiência de vida feita; o uso polissêmico das palavras, de modo que as mesmas significam muitas coisas, apontam para dimensões variadas da experiência mística; ao mesmo tempo, uma mesma experiência, devido à sua riqueza, tenta ser traduzida de formas diversas, através da utilização de vários conceitos tentando realçar dimensões diferentes presentes nesta mesma vivência; a utilização de termos ‘técnicos’, cunhados nas diversas tradições religiosas e que foram ‘provados’ e vividos e enriquecidos por uma gama de pessoas que as disseram e transmitiram, propiciando densidade às mesmas; a utilização de tempos verbais variados ou de marcações espaço-temporais também variáveis, como dentro-fora, subir-descer, tudo indicando a ‘flutuação’ e liberdade do que é vivido pelo místico; por fim, a utilização de expressões de grande densidade espiritual, nascente quase no mesmo momento da realização da experiência e que se traduzem em interjeições, exclamações, expressões de dores e alegrias.

Por outro lado, os relatos e poesias místicos não apenas falam de uma experiência, mas a comunicam, de alguma forma, aos seus interlocutores, pois são expressões lingüísticas nascidas de uma forma vivência interior, que gerou transformação pessoal e que acaba sendo traduzida em frases ou poemas que fazem afirmações diretas, existenciais, fortes, gerando grande impacto nos seus leitores.

Por fim, gostaria de ressaltar que, como diz Vitória Peres , a poesia mística – e a de Rûmî se insere também neste quesito – desempenha o ‘papel de umbral entre dois mundos’: o do cotidiano aprisionante, fragmentado, múltiplo, corriqueiro, rotineiro, ordinário e o mundo da experiência mística que alarga o tempo e o espaço, inflaciona-os, abrindo às pessoas uma série inusitada de possibilidades ou, no dizer de Faustino Teixeira , “afirmando a cidadania de um outro mundo que habita o mundo, e que é ‘impermeável às palavras’”.
 
IHU On-Line - Como decifrar a paixão de Rûmî pela Unidade? E como ele articula esta paixão com sua abertura generosa à pluralidade do real?
Carlos Frederico -
A paixão de Rûmî pela Unidade se encaixa dentro da paixão muçulmana pela mesma Unidade. Para o Islã, a Unidade marca toda e qualquer experiência religiosa e de vida, pois Deus é único, e nada se associa à Sua divindade. É a afirmação do monoteísmo que, empregada de forma negativa (não existe divindade fora de Deus – ou esta mesma afirmação atualizada num formato mais dialógico e nem sempre aceita por todos os muçulmanos: não existe divindade que não seja Deus), indica que Ele é o Absoluto e somente Ele é. Todo relativo a Ele está ligado e por isto tudo deve ser visto n’Ele, tudo tendo sua origem e finalidade n’Ele. O seguidor do Islã, neste sentido, sente-se como um convocado a fazer o Tawhid , a profissão da unicidade divina e a vivê-la em seu cotidiano, na junção entre fé e vida.

Porém, fugindo a concepções panteístas, esta afirmação da unicidade divina não exclui a existência da pluralidade e diversidade cósmica. Aliás, não só não a exclui como a integra de forma muito rica. Na concepção rumiana, a pluralidade cósmica tem um sentido fundamental. Primeiro, ela é reflexo da própria pluralidade da riqueza infinita que habita o Real (forma com que muitas vezes Deus é nomeado no meio súfico . Esta palavra é uma das traduções do árabe Haqq ). Este é único, mas diverso em facetas, o que já é indicado pela bonita concepção islâmica dos 99 nomes divinos. Além do mais, tudo o que existe no cosmo é uma manifestação, uma teofania, uma expressão do Real. O cosmo, neste aspecto, é um espelho que deve ser polido para manifestar o Real em toda sua riqueza. E, mais, este espelho cósmico só existe porque é mantido na existência pela presença invisível e escondida do Real nele. E pode manifestar o Real porque de alguma forma é Ele também. Neste sentido, o cosmo é habitado por uma ambigüidade rica: tudo é Ele e não Ele ao mesmo tempo. Tudo abre para a experiência do Real e ao mesmo tempo esta experiência deve levar à transcendência de tudo. O Real, assim, é, utilizando-me de conceitos árabes, tashbih e tanzih, ou seja, tudo é semelhante a Deus e ao mesmo tempo tudo é infinitamente incomparável a Ele.
 
IHU On-Line - Como dimensionar o lugar do amor na obra poética de Rûmî?
Carlos Frederico -
O amor é central na obra rumiana. Ele é a inspiração da flauta de bambu que lamenta porque foi separada de sua raiz primordial, sentindo-se desterrada. Perdendo sua Unidade com o Real, perde a raiz de sua vida, de seu existir. E o que pode levá-la a reencontrar-se com esta sua raiz é justamente o amor. Por isto ele é tão fundamental. E não é qualquer amor: é um amor embriagado, inflamado, que queima e arde, impelindo o amante a entregar-se totalmente ao Amado. Por isso, ele é dotado de uma força inexplicável, capaz de “fazer o mar ferver como uma chaleira, estilhaçar a montanha, fender o céu e fazer tremer a terra”. No dizer de Rûmî: “O que quero é um incêndio no meu coração – é este incêndio que é tudo, mais precioso que o império do mundo, pois ele chama a Deus secretamente no meio da noite” (Mathanawî, III, 203) . É a vivência deste amor que propicia perseverança e doçura na busca do Amado, mesmo secretamente no meio da noite. Daí a importância, para Rûmî, da prática da religião do amor. Ao mesmo tempo, este amor se encontra presente no Real, que é profundamente generoso, que a tudo cria misericordiosamente e se faz próximo a toda criatura.
 
IHU On-Line - Como entender, na obra de Rûmî, o tema do coração e qual a centralidade desta questão para a reflexão mística do sufismo?
Carlos Frederico -
O tema do coração também é central na mística de Rûmî, assim como é central na tradição islâmica. Porém, esta temática tem que ser bem entendida, pois o coração (qalb) na tradição muçulmana adquire contornos não presentes em nossa tradição ocidental. Primeiro de tudo, o coração é o órgão da experiência mística e do conhecimento místico, da gnose (ma’rifa). Assim, ele é um órgão da fisiologia mística que abre portas para as sutilezas e delicadezas de mundo espiritual, não sensível. E ele é capaz de propiciar o acesso a esta dimensão da vida porque não é como o conhecimento racional, que conhece através da fixação de conceitos, da classificação dos mesmos, da sua delimitação etc. O coração é um órgão flutuante, dinâmico, em contínuo movimento e transformação. É um órgão fluídico (aqui, ele se associa à palavra taqallub, da mesma raiz trilítera de qalb, e que quer dizer perpétua transformação). Portanto, o coração está em contínuo movimento, adequando-se sempre ao contínuo movimento das manifestações infinitas e perpétuas do Real. Mas, para adquirir esta fluidez, o mesmo deve ser purificado, polido. E isto implica em passar pelo processo de aniquilação (fana’), através do qual o coração morrerá a si mesmo, às suas estruturas fixas, delimitadas e delimitantes, e assumirá uma estrutura próxima à estrutura das manifestações teofânicas. A isto se dá o nome de baqa’, ou seja, ele passa a subsistir no Real e é, de certa forma, transformado neste mesmo Real para ser capaz de receber e espelhar todas as suas formas. No dizer do próprio Rûmî, o coração é “como uma pena no deserto, que nasceu prisioneira dos ventos; o vento a leva por toda parte ao acaso, ora para a direita, ora para esquerda, em direções opostas” (Mathnavi III, 1641-1644). Por outro lado, a importância do coração em Rûmî também diz respeito à temática do amor, pois possuir um coração puro, no dizer de Faustino Teixeira, é possuir uma capacidade de “acolher a diversidade, de atuar movido pelos dons do cuidado, da generosidade, da delicadeza e cortesia para com os outros. Num coração que se encontra embriagado pela presença do Bem-Amado não há lugar para nada que não seja amor e misericórdia”.
 
IHU On-Line - Qual é a incidência do Corão na obra de Rûmî?
Carlos Frederico -
Na vida de qualquer muçulmano o Corão possui um valor essencial, pois ele é o milagre supremo do Islã, o livro da grande teofania que é a revelação mesma de Allah, a Palavra ‘enlivrada’, possuindo o mesmo significado para a tradição islâmica que a encarnação de Jesus Cristo tem para os cristãos. Ele indica, assim, a presença do Altíssimo no meio da humanidade, pois a raiz trilítera da palavra revelação é a mesma da palavra descer (n-z-l). Com isso, ele indica que o Real, através do Corão, desce ao coração dos crentes. Portanto, o Corão possui um espaço muito forte na experiência religiosa e mística islâmica e se constitui como fonte primordial desta experiência. A recitação continuada do Corão, a rememoração de suas frases e palavras, a meditação nas mesmas, acabam por fazê-lo parte fundamental do cotidiano e da vida de um muçulmano a ponto de se buscar um ideal de coranizar a própria vida. Rûmî não é diferente. O contato freqüente e qualitativamente forte com o Corão é expresso em todo seu texto e o informa completamente, aparecendo como citações explícitas, ou através de termos e expressões técnicos nascidos do texto sagrado ou até nas concepções presentes em seu pensamento. Entretanto, é importante se observar que Rûmî não o trabalha de forma fundamentalista, pois é sempre capaz de descobrir sentidos novos e diversos, muitas vezes inusitados e para além da interpretação tradicional, no próprio texto.


“Busca a sua Beleza na beleza
e segue intrépido, sem vacilar...”


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